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A escalada da violência no futebol francês

A temporada de 2021/2022 prometia bastante. Afinal, era a volta definitiva do público aos estádios depois de um longo período de pandemia, que assolou os cofres dos clubes, afastou os torcedores das suas maiores paixões (futebol e o time do coração) e prejudicou milhares de profissionais. Contudo, especificamente em um país a temporada era muito aguardada.

Em uma das transferências mais surpreendentes da história, a Liga Francesa recebeu um dos maiores de todos os tempos e jogador dominante nos últimos 15 anos, Lionel Messi. Essa contratação pelo Paris Saint Germain provocou expectativa em todo o mundo. Quais seriam os impactos de um jogador dessa magnitude para o esporte praticado no país?

Rapidamente, o valor do campeonato subiu, as audiências pelo planeta aumentaram, o número de seguidores e visualizações nas redes sociais decolou, os contratos internacionais de retransmissão do campeonato cresceram consideravelmente, chegando a mais de 200 países ao redor do mundo.

Para aproveitar esse momento favorável, o grande desafio da Liga Francesa passou a ser a monetização da chegada dessa estrela e expansão da marca para fora das suas fronteiras. Nessa mesma temporada, foi firmado um acordo com o fundo de investimentos CVC Capital Partners que trará um capital totalmente necessário aos clubes para investimentos em tecnologia, inovações, modernização, marketing, estrutura interna e fortalecimento do elenco. Essa avença já foi relatada por este autor em outra oportunidade.[1]

Não obstante o aparente crescimento econômico e midiático da Liga Francesa, esse ano futebolístico ficou marcado negativamente pelo excesso de violência, dentro e fora dos estádios, que colocou em risco a integridade de jogadores, membros das comissões técnicas e torcedores. Imagens assustadoras que circularam o mundo todo e levantaram dúvidas quanto à capacidade dos franceses em receber eventos de grande porte. Desse modo, passamos aos fatos.

Em janeiro de 2021, em uma amostra do que estava por vir, os ultras do Olympique de Marselha invadiram o centro de treinamento, munidos de fogos de artifício e sinalizadores, causando ferimentos leves no jogador Álvaro González. Os casos foram se multiplicando no decorrer da temporada 2021/22.

No início de agosto, os ultras do Montpellier provocaram a suspensão momentânea da partida contra o Marselha, após atirarem uma garrafa, que acabou atingindo o meio campista Valentin Rongier na boca. Um mês depois, o clássico do Norte, entre Lens e Lille, teve que ser interrompido por uma hora devido a brigas nas arquibancadas. Além disso, em uma outra partida, torcedores do Angers e do Marselha invadiram o campo e começaram a brigar entre eles.

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu durante o clássico da Costa Azul, entre Nice e Olympique[2], quando a torcida do Nice atirou uma garrafa em Dimitri Payet, que revidou, atirando de volta o mesmo objeto. Os torcedores, revoltados, invadiram o gramado e iniciaram uma autêntica batalha campal com os jogadores e membros das comissões técnicas. A partida foi interrompida e remarcada para uma data posterior.

Duas semanas depois, a Liga Francesa sancionou os envolvidos com: perda de pontos para o Nice (equipe local), além de uma partida com portões fechados e, por sua vez, no Marselha, o zagueiro Álvaro González recebeu uma suspensão de duas partidas e Dimitri Payet foi suspenso por um jogo. O auxiliar técnico Pablo Fernandez ficou proibido de participar de qualquer atividade da Ligue 1 pelo resto da temporada, até 30 de junho de 2022[3].

Até o final de novembro, dez partidas da primeira e segunda divisões haviam sido interrompidas por confusões nas arquibancadas. O mais marcante desse mês, ocorreu no clássico contra o Lyon, em que Payet voltou a ser atingido por uma garrafa pela torcida adversária. Após uma parada de duas horas, a partida foi interrompida definitivamente, pois os jogadores do Marselha se recusaram a retornar ao campo de jogo, tendo em vista a falta de segurança da praça desportiva.[4] O Lyon foi sancionado com uma partida com portões fechados.

Àquela altura, a ministra dos Esportes já havia externado sua preocupação com a crescente violência nos estádios, afirmando que a Federação Francesa e a Ligue 1 deveriam adotar medidas mais enérgicas e urgentes para coibir os atos violentos, sob risco de prejudicar o modelo econômico do esporte e a internacionalização do campeonato.

Ocorre que, entretanto, os fatos continuaram a acontecer. Na Copa da França, no intervalo da partida realizada na capital francesa, entre Paris F.C. e Lyon[5], torcedores do Lyon encapuzados atiraram sinalizadores na torcida adversária. Houve um início de confusão com os seguranças no local, o que levou o público a invadir o gramado para fugir do confronto, impedindo a continuidade da partida. Ambas equipes foram eliminadas da competição e o Lyon teve que pagar uma multa, além de ter a sua torcida proibida de entrar nos estádios, como visitante, em todas as competições francesas até o final da temporada.[6]

No último final de semana, dois episódios contribuíram muito para o aumento das dúvidas quanto à capacidade dos franceses em organizar eventos de grande porte. No cenário nacional, seguindo uma triste rotina, após a confirmação do rebaixamento do recordista de títulos franceses, o Saint-Étienne, centenas de torcedores invadiram o gramado para agredir os jogadores, dirigentes e staff técnico, atirando sinalizadores e bombas na direção dos membros do clube, que tiveram que correr rapidamente para os vestiários para evitar uma catástrofe maior.[7]

Em dimensões internacionais, a cidade de Paris recebeu a final da Liga dos Campeões, torneio de clubes mais importante do mundo. O início da partida teve que ser postergado devido a uma série de ocorrências nos arredores do estádio. Milhares de torcedores sem ingresso tentaram invadir o estádio. Outrossim, relatos de agressões, roubos, furtos, dezenas de detenções e confusões com os policiais foram divulgados na imprensa do mundo todo, configurando-se em uma típica praça de guerra.[8]

Com efeito, muitos torcedores, principalmente os ingleses, que tinham ingresso para o jogo mais importante do ano, não puderam entrar no estádio devido a violência policial e ao fechamento dos portões. A polícia de Paris suspeita de uma fraude maciça de bilhetes falsos, o que teria implicado na super lotação dos arredores em 30 mil pessoas acima daquilo que era previsto pelas forças policiais. [9]

Por seu turno, a ministra dos Esportes e o ministro do Interior da França eximiram os franceses de qualquer culpa nos incidentes, alegando que a culpa era dos ingleses pela desorganização, posto que milhares viajaram sem ter um ingresso e que do lado espanhol tudo funcionou na mais perfeita consonância. Ademais, afirmaram que, devido a solicitação da UEFA, as entradas passaram a ser admitidas também em formato impresso, o que teria contribuído para as inúmeras fraudes.[10]

A UEFA, como organizadora do campeonato e detentora do mando da final, foi instada a se manifestar sobre todo o ocorrido. Imediatamente, informou que vai solicitar um relatório independente sobre a confusão que marcou a finalíssima da principal competição de futebol da Europa e somente depois avaliará os próximos passos[11].

Com efeito, todos os eventos relatados ao longo dessa temporada ameaçam o andamento das competições. Não podemos olvidar que Paris será a sede das próximas Olimpíadas e Paraolimpíadas, em 2024. Nesse sentido, em uma reunião de crise na segunda-feira, a ministra do Esporte e o ministro do Interior anunciaram a criação de um grupo de trabalho específico sobre a prevenção e combate à violência nos estádios, com a participação de todos os intervenientes e profissionais qualificados.

Paralelamente, decidiram pela reativação do organismo nacional de torcedores (INS em francês), cuja proposta, a princípio, era estimular, a nível nacional, uma dinâmica destinada a criar condições favoráveis ​​ao estabelecimento de um diálogo real entre todos os intervenientes, incluindo os torcedores, sobre qualquer reflexão, proposta ou desenvolvimento relacionado com as próprias torcidas. Esse órgão é composto por cerca de trinta membros, representantes de associações de torcedores de diversos esportes (futebol, rugby, basquetebol, handebol), além de representantes de clubes, parlamentares e especialistas.

Decerto, o problema da violência nas praças esportivas, crescente no território francês, extrapola totalmente a esfera desportiva, envolve o Estado, que deve possuir um planejamento para coibir, prevenir e punir esses eventos, seja individualmente ou em grupo, como também envolve o aspecto social.

O presidente da Ligue 1 afirmou que a organização só tem a sua disposição as sanções esportivas, que não são suficientes. Por fim, pontuou que não é responsável pela crise que afeta a população, não podendo atuar sozinho pela segurança dentro e fora dos estádios.[12]

Nesse contexto, ressalte-se que a França vive uma crise imigratória, com o aumento do desemprego e da pobreza entre os seus cidadãos, catalisada pela crise econômica gerada pela pandemia, sendo um dos países mais afetados economicamente e sanitariamente da Europa.

Da mesma forma, é importante mencionar que nos últimos anos, as forças de segurança foram dedicadas, em sua grande maioria, para o combate ao terrorismo e aos protestos recorrentes do movimento dos coletes amarelos, que promove protestos, nem sempre pacíficos, entre outros, contra as reformas fiscais, sociais e em prol da classe trabalhadora.

Sob o ponto de vista comercial, a violência é péssima para o futebol francês, como produto a ser vendido, explorado e internacionalizado. Sua imagem e segurança jurídica ficam totalmente prejudicadas, desvalorizando aquilo que pretendem vender e afastando investidores, patrocinadores, jogadores que podem ser contratados e somar em qualidade técnica, além do público nos estádios e consumidores do espetáculo.

A conscientização e ação do Estado é essencial. Podemos tomar como exemplo a Inglaterra, que conseguiu conter o hooliganismo, investindo pesado na prevenção, através da tecnologia, modernização dos estádios e inteligência policial. Passa-se, então, a desmiuçar como se deu essa evolução inglesa.

Em vez de tentar conter os baderneiros depois ou durante os confrontos, a polícia passou a identificá-los previamente. Todas as equipes inglesas tiveram de instalar em seus estádios sistemas de monitoramento por câmeras. Com esse aparato, o corpo de segurança consegue fazer uma varredura virtual em busca de torcedores suspeitos.

Desse modo, assim que um hooligan é localizado, é retirado do estádio. O embate entre policiais e aficionados foi substituído pelo trabalho discreto de inteligência. Há um oficial escalado para estudar o comportamento dos torcedores de cada clube profissional inglês, informando à polícia a identidade daqueles potencialmente mais perigosos.[13]

Some-se a isso, o endurecimento das penas para as pessoas que forem detidas brigando nos estádios, podendo chegar a ficar afastadas de 3 a 10 anos dos estádios. Para garantir o cumprimento da pena, o torcedor deve se apresentar a uma delegacia enquanto seu time joga. Quando a seleção inglesa atua fora do país, o vândalo é obrigado a entregar seu passaporte cinco dias antes do confronto. Essa medida foi replicada em vários países europeus.

Conforme o exposto, a violência no futebol é um problema que excede as quatro linhas, que reproduz e é influenciado pelos problemas da própria sociedade, ambos são inseparáveis. Como na Inglaterra, o governo francês deve assumir o papel de protagonista, em parceria com os clubes e a Ligue 1. Somente assim se dará uma resposta efetiva, que possa, assim como no caso da Premier League, desencadear um crescimento salutar de um produto atraente, como é o caso da liga francesa.

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[1][1] Investidores nas Ligas: o fundo CVC ataca novamente – Lei em Campo – última consulta: 31.05.2022

[2] Nice x Olympique é encerrado após invasão, confusão e só um time em campo – 22/08/2021 – UOL Esporte – última consulta: 31.05.2022

[3] Briga generalizada em Nice x Olympique termina com punição e novo jogo marcado | Goal.com Brasil – última consulta: 31.05.2022

[4] Lyon x Olympique de Marselha: novo episódio de violência em campo ofusca campeonato francês – 22/11/2021 – UOL Notícias – última consulta: 31.05.2022

[5] Lyon e Paris FC são eliminados da Copa da França após atos de violência das torcidas (tntsports.com.br) – última consulta: 31.05.2022

[6] Lyon e Paris FC são eliminados da Copa da França após atos de violência das torcidas (tntsports.com.br) – última consulta: 01.06.2022

[7] Saint-Étienne é rebaixado e torcida invade gramado com sinalizadores – 29/05/2022 – UOL Esporte – última consulta: 01.06.2022

[8] Liverpool x Real Madrid: final da Champions atrasa após confusão e invasão no estádio | liga dos campeões | ge (globo.com) – última consulta: 01.06.2022

[9] Champions: polícia de Paris fala em fraude maciça de ingressos falsos (uol.com.br) – última consulta: 01.06.2022

[10] Francia culpa a la “desorganización” inglesa y al fraude “masivo” de entradas (msn.com) – última consulta: 01.06.2022

[11] UEFA commissions independent report into events surrounding UEFA Champions League Final | Inside UEFA | UEFA.com – última consulta: 01.06.2022

[12] Violences dans les stades : « Il manque en France une politique globale de gestion des supporters » | Public Senat – última consulta: 01.06.2022

[13] Como a Inglaterra acabou com a barbárie das torcidas | Placar – O futebol sem barreiras para você (abril.com.br) – última consulta: 01.06.2022

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