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A Eurocopa do Nacionalismo ou dos Direitos Humanos?

Por Giulianna Selingardi

A primeira fase da Eurocopa entregou futebol. O bem jogado futebol.

Quando falamos de competições entre os melhores times do mundo ou entre seleções nacionais que contam com os protagonistas do futebol mundial e muita raça, a expectativa é sempre pelo “algo a mais”. E teve também. Um brilho no originário e eterno clássico Inglaterra x Escócia, o animadíssimo Polônia x Eslovênia, uma França desfilando em campo toda a élégance dos seus selecionáveis, uma batalha de seis gols em Portugal x Alemanha, a Itália voltando a ser, tão, somente e mais que suficiente, a Itália. E ele, sempre ele: Cristiano Ronaldo, traduzindo com a força de cinco gols e a delicadeza de um chapéu, tudo o que amamos no futebol. Que sorte a sua, Rüdiger.

Porém, os acontecimentos fora de campo também fizeram barulho.

Os que já se desamarraram das 4 linhas e agora contam com uma lente macro que não os permite enxergar o futebol sem a geopolítica e a sociologia, souberam logo no primeiro jogo que a competição seria, no mínimo, animada.

Dia 11 de junho a Eurocopa estreou com Itália x Turquia no palco histórico do Stadio Olimpico di Roma. Entre as autoridades Gianni Infantino, presidente da FIFA e Sergio Mattarella, presidente da Itália, estavam presentes. Mas, a ausência de Erdoğan, presidente da Turquia e um declarado apaixonado por futebol, escancarou a crise de relacionamento entre os dois países.

O episódio que ficou conhecido como Sofagate foi o motivo do presidente turco enviar seu filho para representa-lo. Em abril, Erdoğan recebeu na Turquia o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e a chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para conversas diplomáticas na qual o turco, em ato deliberado de machismo, disponibilizou apenas uma cadeira e era para Charles Michel. Ursula teve que sentar no sofá. Uma resposta bem ríspida veio da Itália, nas palavras do Primeiro Ministro Mario Draghi, que o chamou de ditador. Erdoğan era persona non grata no Olímpico e não viu sua seleção.

Também tivemos expressivas manifestações geopolíticas de viés nacionalista em uniformes.

A camisa da Ucrânia traz no peito um mapa do país que inclui a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 e motivo pelo qual os dois países brigam até hoje, em meio às investidas separatistas e demonstrações bélicas de força fronteiriça. Oleg Matytsin, Ministro do Esporte da Rússia, solicitou explicações da UEFA e da FIFA enquanto Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, postava uma selfie com a camisa nas suas redes sociais. Ato curioso, uma vez que o presidente é filho de judeus e a camisa também traz os dizeres: “Glória à Ucrânica! Glória aos heróis!”, saudação militar e lema de uma organização fascista que ajudou a devastar a Polônia na Segunda Guerra Mundial.

A UEFA, como reguladora, determinou que a Seleção da Ucrânia retirasse o slogan, entendendo este como ato político, mas permitiu o desenho do mapa incluindo a Crimeia, entendendo como genérico e alusivo às raízes do país.

Ainda tivemos a “pequena coincidência” da combinação de cores do uniforma da Áustria, com preto e azul turquesa, as mesmas cores do Partido Popular Austríaco, do atual chanceler Sebastian Kurz e com quem Leopold Wintdner, presidente da Federação austríaca de Futebol, tem fortes ligações. A Seleção da Macedônia do Norte que estampou em sua camisa as siglas “FFM”, ou seja, “Federação de Futebol da Macedônia”. Desta vez, quem não gostou foram os gregos. Lefteris Avgenakis, Ministro dos Esportes da Grécia, também protocolou na UEFA uma reclamação formal, alegando que a sigla era militância nacionalista e que o correto seria incluir, em algum lugar, o Do Norte. Os dois países têm um acordo diplomático firmado em 2018, depois de muita briga, concordando que a Macedônia passaria a ser oficialmente Macedônia do Norte.

Legalmente falando, a UEFA agiu em outros casos de manifestações nacionalistas que, não raramente, são acompanhadas de racismo, xenofobia, homofobia e outras hostilidades que ferem os Direitos Humanos.

Marko Arnautović, camisa 7 da Áustria, comemorou seu gol no jogo contra a Macedônia do Norte com um gesto mundialmente interpretado como símbolo de supremacistas brancos e em direção ao jogador Alioski. A salada mista de nacionalidades é a seguinte: Arnautović é austríaco com descendência sérvia enquanto Alioski é macedônio com descendência albanesa. A briga nos Balcãs e a antiga Iugoslávia é extensa, mas neste caso específico, o nacionalismo sérvio do Arnautović clamou pelo controle do Kosovo, que declarou sua independência em 2008, ato jamais reconhecido pela Sérvia. A população de Kosovo é majoritariamente de albaneses, mas com uma parcela pequena de sérvios. Ainda neste contesto, a Macedônia do Norte também tem seus problemas com a Sérvia e seus nacionalistas, que ainda é chamada por estes de Sérvia do Sul. Resumindo a confusão: ninguém gosta muito de ninguém por ali.

A UEFA, com base no Artigo 16, 2, E do seu Regulamento Disciplinar, puniu o jogador em um jogo de suspensão, com base no exposto:

“Artigo 16 – Ordem e segurança nos jogos das competições da UEFA”

Todas as associações e clubes são responsáveis ​​pelos seguintes comportamentos inadequados por parte de seus apoiadores e pode ser sujeito à medidas disciplinares, mesmo que possam comprovar a ausência de qualquer negligência em relação à organização da partida:

e) o uso de gestos, palavras, objetos ou qualquer outro meio para transmitir uma mensagem provocativa não adequada para um evento esportivo, particularmente mensagens provocativas de natureza política, ideológica, religiosa ou ofensiva; ”

O mesmo Artigo deverá ser usado para punir a Hungria que viu seus torcedores vaiarem o hino irlandês quando os jogadores ajoelharam em protesto ao racismo e um mosaico organizado pelos ultras com os dizeres nacionalistas “Brilhe novamente em sua gloriosa luz, Hungria” e placas “Anti LMBTQ”, o nosso LGBTQ+. Os torcedores expressaram nas arquibancadas o que a população experimenta diariamente sob o governo do Primeiro Ministro Viktor Orbán, líder de um partido nacionalista conservador e extremista, que estampa regularmente manchetes nos jornais internacionais que relatam seus abusos de poder, temperamento explosivo e incontáveis violações aos diretos humanos.

A mais recente, desafiando a União Europeia e o mundo, em proposta aprovada pelo parlamento húngaro que proíbe conteúdos que se refiram à homossexualidade nas escolas e nas mídias televisivas.

A repercussão foi tamanha que a Alemanha, através do conselho legislativo de Munique, que uniu de esquerda à direita, quis pintar o Allianz Arena com as cores da bandeira LGBTQIA+ para receber os húngaros no último jogo da fase de grupos. Não contavam com a proibição da UEFA, que novamente se respaldou na neutralidade política do futebol e também não previu que sua decisão apenas inflamaria o grito de igualdade em mais de 11 mil bandeiras na torcida, posicionamento dos jogadores e diversos estádios da Alemanha que acabaram iluminados com as cores do arco íris. Resposta mais que dada.

Em meio à dança geopolítica e manifestações sociais dos seus jogadores, times, seleções e torcedores, a UEFA, e também a FIFA, ainda não demonstraram destreza em movimentar suas peças em um tabuleiro minado. A leitura dos eventos globais, das questões que as sociedades enfrentam diariamente em seus respectivos países e das relações diplomáticas se faz imprescindível para o ajuste das competições, estatutos, pronunciamentos e atos administrativos das entidades reguladores de futebol.

É preciso que se peça licença ao direito internacional para emprestarmos, sem medo, o instituto do Soft Power para emprega-lo à modalidade e encarar a realidade de que o esporte mais popular do mundo não é apenas uma expressão cultural. O futebol é, e deve ser, o começo, o meio e o fim de um caminho seguro que os Direitos Humanos podem trilhar rumo à garantia.

Há quem diga que se manifestar em prol dos Direitos Humanos não é ato político, uma vez que o direito à vida, à liberdade e à igualdade é o mínimo da existência humana. Não só concordo como me respaldo em todas as grandes manifestações humanas ao longo da história para afirmar também que não há direito que se estabeleça em uma sociedade sem políticas públicas e inclusivas.

Não há futebol sem diretos humanos.

Não há futebol sem política.

Crédito imagem: Getty Images

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Giulianna Selingardi é advogada e Pós-Graduanda em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Curso de extensão em Governança & Compliance no Futebol pela Confederação Brasileira de Futebol.

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