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A exigência de brasileiro detentor de 20% do capital social dos operadores de aposta esportiva no Brasil: alcance, constitucionalidade e desdobramentos

1. O problema da exigência de brasileiro ser sócio das empresas de aposta

A Lei 14.790/23, ao regulamentar as apostas esportivas no Brasil, trouxe detalhamentos de como deve se dar a exploração da atividade em território nacional e previu requisitos para os operadores interessados em obter a licença brasileira. Dentre os requisitos impostos pelo legislador, o artigo 7º, §1º, inciso IX, estabelece que a empresa licenciada deve ter brasileiro como sócio detentor de ao menos 20% do seu capital social.

O §2º do mesmo dispositivo, traz regra para evitar conflito de interesse do sócio ou acionista controlador da empresa operadora no Brasil, proibindo sua participação em clube desportivo. Confira-se o teor do artigo e os parágrafos citados:

“Art. 7º Somente serão elegíveis à autorização para exploração de apostas de quota fixa as pessoas jurídicas constituídas segundo a legislação brasileira, com sede e administração no território nacional, que atenderem às exigências constantes da regulamentação editada pelo Ministério da Fazenda.

§ 1º A regulamentação de que trata o caput deste artigo disporá, pelo menos, sobre:

(…)

IX – exigência de ter brasileiro como sócio detentor de ao menos 20% (vinte por cento) do capital social da pessoa jurídica.

§ 2º O sócio ou acionista controlador de empresa operadora de loteria de apostas de quota fixa, individual ou integrante de acordo de controle, não poderá deter participação, direta ou indireta, em Sociedade Anônima do Futebol ou organização esportiva profissional, nem atuar como dirigente de equipe desportiva brasileira.”

A previsão acima descrita suscitou uma dúvida de imediato no mercado. Quem pode ser o sócio brasileiro detentor de pelo menos 20% do capital social da casa de apostas autorizada a operar no Brasil? Somente uma pessoa física? Ou seria possível ter também uma pessoa jurídica na sociedade?

2. Uma interpretação possível: sócio pessoa física ou jurídica

Para poder responder a essa questão com propriedade é preciso examinar em detalhes o artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23.

O inciso IX estabelece apenas que há a necessidade de um sócio detentor de 20% do capital social da empresa operacional. Nada fala sobre ele ser uma pessoa física ou uma pessoa jurídica. O §2º, ao impor restrições ao sócio ou acionista controlador de empresa operadora de loteria de apostas de quota fixa, novamente não especifica se ele deve ser uma pessoa física ou uma pessoa jurídica.

Ou seja, o inciso IX do §1º e o §2º parecem indicar a possibilidade de a casa de apostas licenciada no Brasil ter como sócio tanto uma pessoa natural quanto uma empresa. Afinal, o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, concede para as pessoas de direito privado a liberdade de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Mas para validar essa hipótese interpretativa, é preciso avançar na análise.

3. Lei Complementar 95/98: diretrizes hermenêuticas

A interpretação legislativa não pode se dar de forma aleatória ou de acordo com o livre arbítrio do seu leitor, deve observar algumas diretrizes hermenêuticas. A Lei Complementar 95/98 estabelece regras claras que orientam o processo construtivo e interpretativo das normas no Direito brasileiro, A lei destaca a necessidade de se buscar a compreensão do texto normativo em sua totalidade, de modo que nenhum trecho da lei seja interpretado de maneira isolada ou dissociada do conjunto normativo ao qual pertence.

Nessa linha, o artigo 11 da Lei Complementar 95/98, ressalta a importância dos parágrafos serem interpretados de forma vinculada ao caput. Os parágrafos, como coloca o legislador, fornecem um complemento ao caput. Confira-se:

“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

(…)

III – para a obtenção de ordem lógica:

a) reunir sob as categorias de agregação – subseção, seção, capítulo, título e livro – apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;

b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;

d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.”

A Lei Complementar 95/98, ao dispor sobre a elaboração e redação das leis, estabelece que, visando à obtenção de ordem lógica, expressa-se por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida.

Portanto, a análise da norma deve se dar de forma ordenada, partindo-se do caput para os parágrafos e demais subclassificações, evitando o exame isolado de seus elementos e interpretações que possam conduzir a contradições internas que desconsiderem o propósito global do artigo.

4. Uma interpretação coerente: somente sócio pessoa física

A interpretação de que o sócio brasileiro da empresa autorizada a operar no mercado de apostas esportivas no Brasil pode ser uma pessoa física ou jurídica, é uma análise que decorre do exame isolado de dois parágrafos, o §1º (inciso IX) e o §2º. A previsão do caput do artigo 7º acaba ignorada, o que não pode acontecer em vista da orientação interpretativa firmada pelo artigo 11 da Lei Complementar 95/98.

A desconsideração da técnica interpretativa não só afronta a Lei Complementar 95/98, mas também acaba por deixar sem sentido a previsão do artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23. Se seguirmos com a interpretação inicial de que o legislador se referiu no inciso IX do §1º, e mesmo no §2º, a sócio pessoa física ou jurídica de empresa de apostas, acabaremos incorrendo em uma contradição de termos.

Isso porque a leitura do §1º, inciso IX e do §2º, deve ser feita em conjunto com o caput do artigo 7º, como determina o artigo 11 da Lei Complementar 95/98. O caput do artigo 7º, prevê que serão elegíveis à autorização para exploração de apostas esportivas apenas as pessoas jurídicas com sede e administração no território nacional. Em suma, para operar no Brasil, o caput requer a constituição de uma empresa brasileira.

Agora voltemos ao inciso IX do §1º. Qual o sentido de se exigir que uma empresa de apostas tenha como sócio uma outra empresa brasileira detentora de ao menos 20% do seu capital social? Respondo, nenhum.

O caput já exige que a empresa operacional seja brasileira, qual a finalidade de o legislador requerer que essa empresa brasileira tenha como acionista (detentor de ao menos 20% do seu capital) outra empresa brasileira? Seria basicamente demandar do operador de apostas no Brasil a criação de duas empresas no País para poder exercer uma atividade econômica. Completamente descabido e ilógico esse raciocínio. Mais do que isso, tal precedente não encontraria nenhum paradigma na mesma linha em nosso ordenamento jurídico.

Seguir por esse caminho interpretativo leva a uma conclusão sem propósito. Obriga o operador a ter duas empresas para a mesma finalidade: uma empresa operacional e outra que teria em seu objeto social apenas a função de deter participação nessa empresa local. Torna o texto legal vazio de sentido, o que, como vimos, deve ser evitado por expressa orientação da Lei Complementar 95/98.

É preciso buscar uma interpretação coerente, fiel à intenção do legislador e em conformidade com os princípios gerais estabelecidos pela Lei Complementar 95/98.

O artigo 11 da referida lei põe o caput como o núcleo central de significado, e os parágrafos devem ser interpretados em conformidade com esse núcleo para garantir a coerência e a efetividade normativa. Se houver dúvidas ou ambiguidades no texto, a interpretação deve ser orientada para assegurar a coesão do dispositivo legal, evitando interpretações que geram contradições internas.O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Moura Ribeiro, manifestou que “a função dos parágrafos de um dispositivo é somente expressar aspectos complementares ao caput ou estabelecer exceções à regra por ele estabelecida (LC n° 95/98, art. 11, III, c). Desse modo, qualquer interpretação que implique negar vigência ao caput por meio da redação do parágrafo necessariamente estará equivocada, sob pena de negar qualquer logicidade ao texto legal” (REsp 1.545.824/RS).

Evidente, portanto, que o artigo 7º da Lei 14.790/23 representa um todo sistemático, que demanda interpretação conjunta e coerente das normas do caput e dos respectivos parágrafos.

Assim, a única interpretação consistente do disposto no caput e §§ 1º e 2º do artigo 7º, da Lei 14.790/23 é que quando o legislador se referiu a sócio ou acionista da empresa brasileira operadora de apostas esportivas, ele fez menção apenas a pessoa física. O legislador pretendeu com a norma fazer com que toda empresa que tem interesse em operar de forma regular no Brasil, esteja não só sediada no país, como também tenha uma pessoa natural detendo 20% do seu capital social.

A interpretação de que o sócio referido artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23 é o sócio pessoa física é reforçada pelo disposto no artigo 269, parágrafo único da Lei 6.404/76 (Lei das S/A). Referido dispositivo prevê que um grupo de sociedades é considerado sob controle brasileiro se a sua sociedade de comando está sob o controle de (a) pessoas naturais residentes ou domiciliadas no Brasil, (b) pessoas jurídicas de direito público interno; ou (c) sociedade ou sociedades brasileiras que, direta ou indiretamente, estejam sob o controle das pessoas referidas nas letras ˜a˜ e ˜b˜.

Do dispositivo aplicado subsidiariamente à Lei 14.790/23, tem-se o reforço de que o sócio brasileiro detentor dos 20% do capital social é uma pessoa física ou, no mínimo, uma pessoa jurídica que, direta ou indiretamente, esteja sob o controle de pessoa natural brasileira.

A regra contida na Lei 14.790/23, apoiada no artigo 269 da Lei das S/A, traz norma protetiva com clara pretensão de criar uma reserva de mercado para brasileiros. Busca-se, declaradamente, favorecer os brasileiros diante dos estrangeiros. Esse é o propósito da norma e a única interpretação coerente e adequada do que consta no artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23.

5. A inconstitucionalidade existente no artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23

Compreendido o contexto interpretativo do artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23 e feita uma análise alinhada do caput, parágrafos e incisos, tem-se que somente um brasileiro, pessoa natural, pode ser sócio de um operador de apostas licenciado no Brasil. A norma, como dito, provoca um tratamento anti-isonômico não justificado e proporciona uma reserva de mercado, beneficiando brasileiros frente a estrangeiros. A regra traz uma proteção desnecessária ao nacional.

O artigo 7º da Lei 14.790/23 contém clara afronta ao disposto no caput do artigo 5º, da Constituição Federal, que proíbe o tratamento discriminatório entre nacionais e estrangeiros sem que haja fundado motivo para isso. Mais do que isso, incorre a Lei 14.790/23 em  violação ao princípio da livre concorrência, previsto no artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal.

O ideal da livre concorrência representa uma opção do constituinte pela economia de mercado, assentada na crença de que a competição entre os agentes econômicos, de um lado, e a liberdade de escolha dos consumidores, de outro, produzirão os melhores resultados sociais: qualidade dos bens e serviços e preço justo. É contrário a esse regime de livre competição a criação de reservas de mercado em favor de atores econômicos  locais.

Como já reconheceu o Ministro Luis Roberto Barroso, “cabe ao Estado preservar o mercado em condições de livre competição. Afinal, a garantia individual de iniciar e gerir uma atividade econômica impõe um correlato dever ao Estado de se abster de instituir restrições desproporcionais que impeçam os agentes de atuar e competir” (RE 1.054.110/SP).

Não há dúvidas que o artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, fere frontalmente o texto constitucional e isso ocorre em decorrência de uma desconfiança que ainda existe no Brasil em relação à iniciativa privada.

Paira no imaginário de parte da população que vivemos um capitalismo tupiniquim que requer para qualquer atividade concessões e favorecimentos aos locais. Nota-se uma grande aversão por parte do empresariado brasileiro a riscos e à concorrência diante da igualdade entre os atores econômicos, elemento-chave do capitalismo. Prefere-se o financiamento público e a reserva de mercado.

Acontece que o “capitalismo sem risco, concorrência ou igualdade, isto é, financiado por dinheiro público, protecionismo e vantagens competitivas, não é capitalismo, mas socialismo com o sinal trocado”. Para o Ministro da Suprema Corte, Luis Roberto Barroso,  o Brasil precisa mesmo “é de mais sociedade civil e de capitalismo verdadeiro, com risco privado, concorrência, empresários honestos e regras claras, estáveis e propiciadoras de um bom ambiente de negócios”.

6. Os limites constitucionais do Poder Executivo

Em que pese a inconstitucionalidade patente do artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, a Administração Pública e, ao que interessa ao caso, o Ministério da Fazenda está adstrito a observar os ditames legais, ainda que inadequados.

A Constituição Federal, em seus artigos 37, caput; 5º, incisos II e XXXV, e 84, inciso IV, preceitua que a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá ao princípio da legalidade.

A atuação administrativa deve estar estritamente conforme a lei, importa em subordinação do administrador à legislação, devendo ser realizadas as finalidades normativas, posto que só é legítima a atividade do administrador público, se estiver compatível com as disposições legais.

Logo, observa-se que o Ministério da Fazenda, na condição de ente integrante do Poder Executivo, não pode sanar um vício de constitucionalidade constante do artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, por meio de portaria ou qualquer outro ato executivo. Para a Administração Pública, enquanto não reconhecida a inconstitucionalidade de uma norma, ela goza da presunção de legitimidade e deve ser cumprida. Em princípio, todo ato legislativo é válido e assim permanece, salvo se sua inconformidade com o sistema jurídico for reconhecida pelo Poder Judiciário.

Portanto, o Ministério da Fazenda concorde ou não com a reserva de mercado proposta pelo artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, e mesmo ciente das distorções que eventualmente a medida pode trazer ao mercado, ele deverá reconhecer, via ato administrativo, que a empresa operadora de apostas esportivas no Brasil deverá ter sócio pessoa física (apenas) que seja detentor de ao menos 20% do seu capital social.

O Ministério da Fazenda, com suporte no artigo 269, parágrafo único, da Lei das S/A, pode, no máximo, esclarecer que os 20% do capital social do operador de apostas, poderá ser detido por sociedade ou sociedades brasileiras que, direta ou indiretamente, estejam sob o controle das pessoas naturais brasileiras.

O Ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, reconhece que “embora a missão confiada aos atos normativos infralegais não seja apenas a de repetir mecanicamente o conteúdo de lei em sentido restrito, ‘regulamentar’ não possui o mesmo significado de ‘inovar ampla e totalmente’ a ordem jurídica” (AgrReg REsp 1.560.441/PR).

Logo, caberá aos operadores prejudicados com tal medida se socorrerem ao Poder Judiciário (nada podendo fazer Executivo) para reverter essa inconstitucionalidade que dispensa tratamento anti-isonômico entre nacionais e estrangeiros e gera uma indevida reserva de mercado aos brasileiros, sem que haja fundamento para isso.

7. Conclusão

O artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, só permite uma interpretação coerente e em observância com a técnica interpretativa prevista no artigo 11 da Lei Complementar 95/98:  o sócio brasileiro que deve deter ao menos 20% do capital social da empresa licenciada para operar apostas no Brasil deve ser uma pessoa física, não sendo admitido sócio pessoa jurídica. Com base no artigo 269, parágrafo único, da Lei das S/A, admite-se, no máximo, que o operador licenciado no Brasil para operar apostas, possa ter 20% do seu capital social detido por sociedade que direta ou indiretamente seja controlada por sócio pessoa física brasileiro.

A norma, entretanto, é de flagrante inconstitucionalidade, pois contradiz o artigo 5º, caput, da Constituição Federal que veda tratamento discriminatório entre nacional e estrangeiro e o artigo 170, inciso IV, do mesmo texto constitucional que defende a livre concorrência. Contudo, a superação dessa inconstitucionalidade só será possível por ordem judicial ou novo ato legislativo que corrija esse vício legal, cabendo ao Poder Executivo, enquanto isso, apenas observar as diretrizes do artigo 7º, §1º, inciso IX, da Lei 14.790/23, que enquanto não forem declaradas inconstitucionais ou revogadas, gozam da presunção de legitimidade, própria dos atos legislativos e, assim, são de observância mandatória pelo Poder Público.

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