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A FIFA saiu da neutralidade: comentários acerca da punição sofrida pela Rússia

Nos últimos dias, o medo de uma nova guerra mundial tomou conta de todos os noticiários com a invasão do território ucraniano pelas tropas russas. Rapidamente, a iniciativa russa provocou uma retaliação de toda a comunidade internacional. Afinal, um conflito bélico é capaz de gerar danos incalculáveis para a população, para os direitos humanos e para os envolvidos, que dificilmente serão recuperados ao longo do tempo.

Com efeito, diante da morte de centenas de pessoas e de imagens impactantes, foram impostas algumas sanções de cunho econômico e diplomático pela União Europeia, pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos aos russos. A pressão foi tanta que se alastrou para terrenos inimagináveis até então, como o esporte.

Nesse sentido, não podemos olvidar que a Carta Olímpica[1], o principal documento do desporto, preza pela neutralidade política, como forma de evitar conflitos, vedando qualquer tipo de manifestação política e religiosa, criando-se, assim, um ambiente saudável para a disseminação dos ideais desportivos, tais como a unidade, a harmonia internacional e interação entre os povos. Para tanto, todos os membros deveriam respeitar a diversidade de cada um. Tudo isso, foi replicado pelas Federações Internacionais, Nacionais e demais partes presentes no sistema piramidal em suas normativas.

Ocorre que, entretanto, essa neutralidade, muito das vezes confundida com passividade ou alienação aos problemas globais, tem sido posta em discussão. A pandemia, evidentemente, foi catalisadora e protagonista de diversos temas políticos e científicos que mexeram com a população mundial. Diversas vezes, isso era sustentado pelo argumento da liberdade de expressão, que, frise-se, nunca deve ser ilimitada e irrestrita.

Paralelamente, o movimento antirracismo, com a influência do caso George Floyd nos EUA, maior potência mundial, ganhou uma força considerável, sendo capaz de flexibilizar as normas do Comitê Olímpico Americano, que anunciou que não iria mais punir quem fizesse protestos pacíficos durante as competições e cerimônias de entrega de medalhas.[2]

Por conseguinte, o Comitê Olímpico Internacional (COI) resolveu abrir uma consulta junto aos atletas sobre a possibilidade de flexibilizar o artigo 50 da Carta Olímpica. Um pouco antes da realização dos Jogos, o COI divulgou novas diretrizes, permitindo que os desportistas pudessem expressar suas opiniões nos locais de competição antes do início da disputa ou durante a apresentação individual ou da equipe, sempre que a expressão ou o gesto fosse coerente com os princípios olímpicos.

Outrossim, as manifestações não poderiam ser direcionadas, direta ou indiretamente, contra pessoas, países, organizações ou sua dignidade e não poderiam ser feitas durante o hino nacional ou a apresentação de outros atletas e equipes, de modo a não interferir na concentração ou preparação.[3]

Criou-se, portanto, um importante precedente, indicando que o esporte deveria sim dialogar com o mundo e se atentar aos problemas sociais que afligem a sociedade e a ordem mundial. Sob este viés, para uma melhor compreensão do tema, faz-se necessário traçar uma linha história, contando como o COI reagiu historicamente aos conflitos armados.

Nas últimas décadas, as guerras vinham sendo tratadas com neutralidade, furtando-se de punições pesadas aos países envolvidos, com exceção, do sucedido nas já longínquas Primeira Guerra (Áustria, Alemanha, Polônia, Hungria, Bulgária e Turquia não foram convidadas para os Jogos da Antuérpia, em 1920) e Segunda Guerra (exclusão de Alemanha e Japão dos Jogos de Londres, em 1948).[4]

Praticamente, ao longo dos anos, houve muitos boicotes a várias edições dos Jogos Olímpicos, por conjuntura da Guerra Fria e de outros conflitos. Um dos banimentos exemplares foi aplicado pela FIFA e pelo COI a África do Sul, devido ao regime de segregação racial do Apartheid, ficando de fora das competições internacionais por quase 30 anos.[5]

Ultimamente, a FIFA e o COI se mantiveram alheios à diversos embates ocorridos, punindo inclusive atletas pelas suas condutas e Federações por atos de sua torcida, em virtude de protestos contra invasões, guerras, boicotes e separações, por exemplo. Se punia a mensagem e o mensageiro.

Especificamente sobre o futebol, a transferência do local do mando de campo, vetando que o país envolvido sediasse qualquer jogo ou evento da entidade, vinha sendo a sanção comumente imposta às Federações localizadas nos logradouros que viviam situações alarmantes, do ponto de vista de segurança, tal como ocorreu com a Líbia[6] e com o Iraque[7].

Escanteadas devido a forte pressão externa, exercida pelas Federações Nacionais e jogadores, que afirmaram que não iriam enfrentar a seleção e os clubes russos, a FIFA seguiu a mesma direção de algumas decisões tomadas. Antes disso, a sede da final da UEFA Champions League já havia sido deslocada de São Petersburgo para Paris pela entidade organizadora do futebol europeu.[8]

No final de semana, a entidade suíça anunciou um pacote de punições, que incluía: proibição de a seleção competir sob a bandeira da Rússia, seu hino não poderia ser tocado nos jogos e todas as suas partidas como mandante teriam que ser disputadas em campo neutro, sem presença de público, por prazo indeterminado.[9]

Irresignadas com o peso da sanção, as Federações Nacionais mantiveram as suas posições iniciais e ganharam o apoio da FIFPRO, espécie de sindicato internacional dos jogadores, que solicitou a suspensão da Federação Russa e de seus afiliados de todas as competições internacionais.[10]

Além disso, o COI recomendou a exclusão dos atletas russos das próximas competições e que nenhum evento fosse organizado na Rússia, alegando violação à Trégua Olímpica, documento assinado no antro da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa garantir uma interrupção de todas as hostilidades e divergências, permitindo a passagem e participação seguras de atletas e espectadores das Olimpíadas.[11]

Em seguida, FIFA e UEFA voltaram atrás e emitiram, de maneira conjunta, uma nota anunciando a suspensão da seleção russa e dos clubes russos de todas as competições internacionais[12]. Não se sabe, no entanto, a fundamentação legal da decisão, pois ela é sigilosa, porém a decisão tomada pelo Conselho Bureau, que conta com a presença dos presidentes de todas as 6 confederações, nitidamente apresenta aspectos políticos.

Após uma breve introdução histórica e uma exposição de como o esporte costuma se relacionar com as guerras e com assuntos políticos, parte-se para examinar a decisão adotada pela entidade máxima do futebol e se a mesma encontra previsão legal.

Em primeiro lugar, ressalte-se que o presente artigo não discutirá o mérito da conduta do Estado Russo na invasão ao território ucraniano, muito menos fará qualquer juízo de valor sobre os motivos históricos envolvidos. O escopo do debate é exclusivamente comentar sobre a legalidade da decisão e suas consequências, sob o ordenamento privado da FIFA.

Nesse contexto, conforme já explicitado, a normativa da FIFA absorveu muitos fatores da Carta Olímpica, dentre eles, a autonomia e independência organizacional do esporte. Nesse sentido, é vedado a ingerência de terceiros, não integrantes do sistema piramidal, que não podem interferir em assuntos internos da Federação Membro. É uma obrigação do Estatuto da FIFA[13], que deve ser reproduzida nos Estatutos dos Associações Nacionais e, se violado, são passíveis de sanções, por mais que essa interferência não seja imputável à Federação.

Todavia, uma decisão estatal de entrada em uma guerra, violando princípios de direitos humanos e de Direito Internacional – também assumidos pela FIFA -, não pode ser incluída como se fosse um assunto interno de uma Federação. Ademais, a Federação Russa e os atletas não descumpriram nenhuma obrigação presente seja no Código Disciplinar, seja no Estatuto, seja no Código Ético[14]. A situação de guerra não é e não foi tipificada pela normativa FIFA, ao longo de várias décadas, justamente pelo seu teor político.

Do mesmo modo, não houve nenhuma conduta dos já mencionados membros para que se pudesse dar azo à exclusão ou suspensão do quadro de associados da FIFA, como já ocorreu com outros países, principalmente por ingerência política do ente estatal em assuntos internos. Com isso, se perde o direito ao voto e a possibilidade de manter contato com qualquer outra Federação, o que poderá acontecer somente após a análise do Congresso, através de um requerimento do Conselho.

Decerto, a Federação Russa irá recorrer da decisão da FIFA e da UEFA e a questão deve ser apreciada pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS)[15]. Em recente comunicado, os russos declararam que a punição tem caráter discriminatório e prejudica um vasto número de atleta, técnicos, funcionários, clubes e seleções e, o mais importante, milhões de russos e torcedores estrangeiros.

Por outro lado, há de se verificar se a postura da FIFA, com forte viés e pressão política, em interferir em eventos dessa estirpe será uma tendência e se o mesmo entendimento aplicado ao caso Rússia será adotado em outros conflitos. Afinal, a “bolha” do mundo esportivo foi furada ou não? A neutralidade seguirá prevalecendo nos próximos anos?

Certamente, a violação aos direitos humanos e a outros fatores que levaram a condenação da Rússia ocorrem diariamente em outros locais e são ignorados pela FIFA. Confira-se, por exemplo, a sede da próxima Copa do Mundo (Catar) e a sede do Mundial de Clubes esse ano (Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos), que são lugares onde constantemente os direitos humanos são transgredidos.

Não deve existir um meio termo quando da violação desses direitos e muito menos da neutralidade. Em outras palavras, ou se é neutro totalmente, como a FIFA era até então, ou todas as condutas infratoras devem ser sancionadas. Por isso, podemos afirmar que a entidade máxima do futebol entrou em um terreno pantanoso, que, por si só, provocará mudanças consideráveis na condução do esporte e na maneira como é visto por todos.

Igualmente, a existência desse conflito entre Ucrânia e Rússia trará desdobramentos nos campos econômicos e contratuais, uma vez que contratos de patrocínios com empresas russas já estão sendo resolvidos por Confederações, como a UEFA[16] e por clubes[17][18]. Outrossim, por ora, os contratos de trabalho dos jogadores poderão ser revistos e reanalisados pelas partes, devido a atual situação no país ucraniano e na própria Rússia.

Além disso, se a guerra persistir por mais tempo, estariam os jogadores que atuam na Ucrânia inviabilizados de exercer sua profissão? Será motivo para rescisão de contrato? Uma futura não reapresentação dos atletas, por receio da guerra, poderia ser considerado abandono de emprego? Questões que devem ser apreciadas pela FIFA e pelo CAS nos próximos meses.

Crédito imagem: Getty Images

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[1] Carta Olímpica – ES-Olympic-Charter.pdf – última consulta: 01.03.2022

[2] COI sofre pressão para mudar regra e permitir protestos nas Olimpíadas | olimpíadas | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[3] COI permitirá manifestações de atletas nos Jogos Olímpicos – 03/07/2021 – UOL Esporte – última consulta: 01.03.2022

[4] Doping: As exclusões de outros países na história dos Jogos Olímpicos | Esportes | EL PAÍS Brasil (elpais.com) – última consulta: 01.03.2022

[5] África do Sul é banida dos Jogos Olímpicos pelo COI por não renunciar ao regime de apartheid | History Channel (uol.com.br) – última consulta: 01.03.2022

[6] Fifa autoriza realização de jogos entre seleções na Líbia – 18/04/2013 – UOL Esporte – última consulta: 01.03.2022

[7] Iraque comemora retirada de veto da Fifa para receber jogos internacionais – 17/03/2018 – UOL Esporte – última consulta: 01.03.2022

[8] Uefa tira final da Champions de São Petersburgo, e Paris é a nova sede | liga dos campeões | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[9] Jogo em campo neutro, sem hino, sem bandeira e sem torcida: o primeiro pacote de sanções da Fifa contra a Rússia | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[10] FifPro pede suspensão da Federação de Futebol da Rússia após invasão à Ucrânia | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[11] COI pede que federações cancelem ou mudem sede de competições na Rússia | olimpíadas | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[12] FIFA/UEFA suspend Russian clubs and national teams from all competitions – última consulta: 01.03.2022

[13] Estatuto da FIFA – azwxwekfmx0nfdixwv1m-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 01.03.2022

[14] FIFA Legal Handbook – FIFA-Legal-Handbook-ES.pdf – última consulta: 01.03.2022

[15] Oficial: Fifa proíbe a Rússia de disputar Eliminatórias e Copa do Mundo | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[16] Uefa rescinde contrato de patrocínio no valor de R$ 455 milhões com estatal russa de gás | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[17] Schalke 04 rescinde contrato de patrocínio com estatal russa após 15 anos de parceria | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

[18] Suspensão de competições e perda de patrocínios: veja as retaliações ao futebol russo após invasão à Ucrânia | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2022

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