Por Igor Serrano
“Toda pessoa branca é racista!” – foi com essa frase que Levi Kaique Ferreira, iniciou a parte final de sua aula de encerramento da terceira turma do excelente curso “Pensando a branquitude”, ministrado pelo Portal Pretitudes (que também contou com aulas de Ana Gabriela Ferreira, Ana Carolina Fernandes, Bruna Santiago, Keilla Vila Flor e Caio Ventura), no dia 19/08/2020. A frase, a princípio, pode soar como uma acusação, para você, leitor(a) branco (a), mas nada mais é do que uma constatação óbvia de quando se analisa o racismo: “Indivíduos brancos podem ser ‘contra’ o racismo; mas ainda assim, eles se beneficiam de um sistema que privilegia os brancos como grupo” – declara Robin Diangelo em seu livro “White Fragility” (que no Brasil, lançado pela Editora Faro Editorial, recebeu a tradução de “Não basta não ser racista, sejamos antirracistas: a fragilidade branca”).
Em 2016, Colin Kaepernick, quarterback do San Francisco 49ers, antes de uma partida de pré-temporada, ajoelhou-se durante o hino nacional dos EUA, recusando-se a cantá-lo. O protesto chamava a atenção para a violência policial direcionada a população negra, após mais alguns casos de assassinatos de jovens negros resultantes de abusos de autoridade: “Não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime o povo negro e as pessoas de cor“, declarou Colin após a partida. O poderoso e simbólico gesto passou a também ser reproduzido por outros atletas da própria NFL e, também, da NBA. O quarterback, idealizador do protesto, teve seu contrato rescindido pelo 49ers e nunca mais foi contratado por outra equipe.
Após ter a carreira de árbitro encerrada precocemente por conta de ato de discriminação racial explícita sofrida antes, durante e depois de partida do Campeonato Gaúcho de 2014, Márcio Chagas manteve-se no futebol como comentarista de arbitragem. O novo ofício, no entanto, também seria interrompido de forma abrupta, mais uma vez tendo o racismo relacionado. Em 2019, em entrevista ao UOL Esporte, Márcio chamou a atenção para as manifestações racistas que recebia do lado de fora das cabines de transmissão nos estádios, gerando grande repercussão e debate no futebol sobre o tema. Em novembro daquele ano foi chamado para uma reunião onde ouviu que “seus posicionamentos estavam gerando muito desgaste” e que por isso seu chefe pensava em desligá-lo ao término do Campeonato Gaúcho 2020. “O Campeonato Gaúcho não precisou encerrar. Veio a pandemia e, com ela, meu desligamento, através de um telefonema” – declarou ao UOL Esporte em agosto de 2020.
Ângelo Assumpção é ginasta, com convocações para a Seleção Brasileira em sua carreira. Em 2015, venceu a prova de salto da etapa de São Paulo da Copa do Mundo de ginástica artística. O que era para ser uma feliz temporada, foi destruído pelo comportamento discriminatório alheio. Ângelo foi constrangido, filmado enquanto ouvia ofensas raciais de seus próprios colegas de ginástica e exposto nas redes sociais. Os ofensores foram punidos com trinta dias de suspensão pela Seleção Brasileira. Ângelo decidiu não processá-los criminalmente. O tempo passou e o racismo voltaria a impor barreiras à carreira do atleta: ofensas raciais voltaram a se fazer presente no seu dia-a-dia de clube. Desta vez, todavia, optou por não se calar e reportou a direção o que vinha enfrentando: “Teve uma situação que eu estava todo de lycra preta e de shorts branco, e eventualmente uma pessoa disse que eu estava só de bermuda, entendeu? Então são situações que para as pessoas são despretensiosas, não veem maldade, mas para a gente, que vive isso todos os dias, que entende o que é um racismo estrutural, a gente se machuca demais”. Surpreendentemente, foi suspenso num primeiro momento e posteriormente desligado. O clube, o Pinheiros, se posicionou no sentido de que o ginasta teria problemas de disciplina e técnicos que justificariam o desligamento e refutou o alegado. “A gente poderia ter entrado com qualquer ação sobre o que ocorreu em 2015 e resolvemos não fazer isso com medo de retaliação. Isso comprova que sim, quando você se posiciona alguma coisa acontece com a pessoa que foi vítima da situação” – declarou Ângelo para reportagem disponibilizada no portal Globoesporte.com .
Na obra anteriormente mencionada, Robin Diangelo detalha o que chama de fragilidade branca: “O equilíbrio branco é um casulo de conforto, centralidade, superioridade, prerrogativa, apatia raciais e de esquecimento, todos arraigados na identidade de pessoas boas livres do racismo. […] A fragilidade branca atua como uma forma de assédio. Farei com que seja tão deplorável você me confrontar – não importa o quão diplomaticamente tente fazê-lo – que simplesmente abrirá mão, desistirá e nunca mais voltará ao assunto. […] Francamente, a expressão ‘fragilidade branca’ pretende descrever um fenômeno branco muito específico. Ela é muito mais que mera atitude defensiva ou ‘mimimi’. Pode ser explicada como a sociologia da dominação”.
Em que pese a nomenclatura criada pela autora norte-americana, tal quadro já havia sido apresentado por Abdias Nascimento e Djamila Ribeiro na realidade brasileira em “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado” e “O que é lugar de fala?”, respectivamente:
“…a camada dominante simplesmente considera qualquer movimento de conscientização afro-brasileira como ameaça ou agressão retaliativa.” (p. 94).
“Falar, muitas vezes, implica em receber castigos e represálias, justamente por isso, muitas vezes, prefere-se concordar com o discurso hegemônico como modo de sobrevivência?“ (p. 79).
O goleiro Aranha e o atacante Reinaldo foram tratados como rebeldes ou problemáticos ao emitirem posicionamento e manifestarem-se contra o racismo enraizado na sociedade brasileira (mas que muitos afirmam não existir). Uma nítida tentativa de descreditar seus discursos e manter o status quo.
Diogo Silva, em sua coluna de 26/08/20, fazendo referência ao Instituto Afro Amparo e Saúde, chamou a atenção para o resultado mais comum do racismo no esporte para os atletas negros: doenças psicossomáticas e doenças emocionais, como a depressão, além de desânimo, impotência, insegurança, baixo desempenho físico, baixa autoestima e dificuldade de relacionamento.
Como diria outra autora norte-americana, Angela Davis, “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. E certamente não é silenciando quem é oprimido que se combaterá o racismo e se promoverá uma sociedade menos desigual.
A branquitude que comanda o esporte precisa compreender que não vive numa bolha alheia a sociedade na qual está inserida. Os atletas da NBA estão aí para lembrá-los disso.
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DIANGELO, Robin. Não basta não ser racista, sejamos antirracistas: a fragilidade branca. Tradução Marcos Marciolinio. São Paulo: Faro Editorial, 2018.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ª ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
https://interativos.globoesporte.globo.com/ginastica-artistica/materia/debaixo-do-tapete
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Igor Serrano é advogado especialista em direito desportivo e autor do livro “O racismo no futebol brasileiro”