Por Hélio Lucena
As tensões envolvendo Ucrânia e Rússia atingiram seu ápice no último dia 24, quando este invadiu aquele País sob os mais diversos pretextos, buscando dar legitimidade a uma ação nitidamente ilegal e desproporcional.
A tensão entre os dois estados soberanos data de 2014, quando o Presidente russo, Vladimir Putin, ordenou a invasão da Criméia, embora os laços históricos envolvendo russos e ucranianos, que remete ao surgimento daquelas duas nações, no século IX, em Kiev, capital ucraniana, e à independência da república ucraniana da antiga União das Republicas Socialistas Soviéticas, em 1991, torne a situação ainda mais complexa.
Com o fim da polarização política, característica principal da Guerra Fria entre EUA e URSS, diversos países que faziam parte do bloco comunistas procuraram estreitar laços políticos, comerciais e militares com o Ocidente, capitaneados pelos americanos e lideranças europeias. Panorama politico que, tal como se pode imaginar, não agradou a Rússia, cada vez mais isolada no cenário internacional.
Essencialmente alheia ao contexto político supramencionado, por sua vez, a “Lex Sportiva”, caracterizada pela autonomia das entidades desportivas e pela origem não-estatal das normas de organização do esporte, rege as relações dos “Estados-nação” na seara desportiva.
O próprio Estatuto da FIFA, em seu art. 14, ressalta a obrigatoriedade das entidades a ela filiadas a manterem a neutralidade política, independente do cenário político local aonde estiverem sediadas, sob pena de sanções que podem variar de pesadas multas pecuniárias até a suspensão de seu quadro de filiados. Restando, dessa maneira, em plena consonância com os ditames fundamentais da Lei Esportiva, detalhada em linhas acima.
Entretanto, esse ideal de neutralidade política não necessariamente se materializa na prática, pois o mundo real é composto por pessoas, sentimentos variados e opiniões distintas a respeito do conceito e do papel do esporte no contexto global.
Dessa maneira, no panorama das Eliminatórias europeias para disputa da Copa do Mundo que será realizada no Catar em 2022, as três seleções que, em tese, disputariam com a Rússia a última vaga restante – Polônia, República Tcheca e Suécia – se recusam a enfrentá-la, em face da agressão russa à Ucrânia. Outras federações nacionais parecem seguir na mesma linha de pensamento, como é o caso na Federação Francesa de Futebol.
Hoje, dia 28 de fevereiro, atendendo a tais pedidos a FIFA suspendeu a Federação de Futebol da Rússia. A decisão, tomada em conjunto com a Uefa, abrange todas as seleções russas: as de base, a feminina e a masculina. Atinge, também, clubes filiados à federação local e contratos de patrocínio de empresas russas mundo afora.
Além do que esse movimento que se inicia nos campos de futebol (em verdade, fora deles) pode motivar outras federações de outras modalidades a seguirem pelo mesmo caminho. Há rumores, por exemplo, de que nas próximas horas a seleção russa de hóquei no gelo – esporte mais popular do País – também será suspensa das atividades da IIHF (Federação Internacional de Hóquei no Gelo) até cessarem as atividades militares contra Kiev.
Tal qual sanções econômicas às empresas russas e embargos comerciais ao País, o objetivo de tais medidas, nos mais variados segmentos socioeconômicos, é, obviamente, pressionar o governo russo, gerando uma pressão popular interna contrária aos atos de hostilidade injustificados frente ao vizinho ucraniano.
Diante tudo o que fora explicitado acima, especialmente no que tange à essência da “Lex Sportiva”, impreterível é o questionamento: cabe às Federações, nacionais e internacionais, punirem a entidade de administração de futebol russos por conta do comportamento governo local?
Por mais nobres que sejam os motivos alegados pelas entidades de administração desportivas em questão em exercer uma pressão indireta no governo da Federação Russa, a ação nos parece desvirtuar da natureza básica do esporte, a qual, conforme explicitado em linhas pretéritas, rechaça a ideais e ações políticas do seu núcleo fundamental.
Além de ser contrário à essência esportiva pura e simples, abrir-se-ia um precedente perigoso, que deveria ser seguido em toda e qualquer situação semelhante ou equivalente. Aliás, por amor ao debate e, claro, entendendo as diferenças dos contextos e das justificativas dadas pelos países envolvidos em cada situação aqui mencionada, não se viu, por exemplo, a mesma comoção e empenho de entidades desportivas quando os Estados Unidos da América declararam “guerra do terror” no Iraque e Afeganistão.
A equidade é um princípio basilar da hermenêutica jurídica, não podendo ser renegada a depender da conveniência dos agentes envolvidos.
Importa, ainda, ressaltar que a Rússia, diferente da maioria dos países ocidentais, não vive um regime de plena democracia, sendo comum notícias de violações aos direitos humanos em território russo. Em contextos como este, a conduta do Estado não necessariamente reflete a vontade da população. Há, inclusive, vários relatos recentes de prisões e pesada repressão do governo às manifestações populares russas contrárias à intervenção militar na Ucrânia.
Assim sendo, que culpa têm estas pessoas pelos atos praticados por seu governante? Pois é, não nos parece razoável culpar o povo russo por isso. A mesma leitura pode ser feita na seara desportiva, para aquelas pessoas e entidades que, alheias às vontades do Estado, correm o risco de se verem punidas e marginalizadas injustamente de atividades as quais fazem direito, aos olhos da “Lex Sportiva”, inconfundível com o Direito Público Internacional e seus reflexos.
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Hélio Lucena é graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e pós-graduado em direito desportivo pela Faculdade Cers