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A hermenêutica jurídica desportiva e a evolução tecnológica

Por Vinícius de Almeida Rodrigues

No último dia 13.07.2021, ocorreu em Assunção a primeira partida do confronto entre Cerro Porteño e Fluminense valida pela fase de oitavas de final da Copa Libertadores da América 2021. Embora o jogo tenha tido vários elementos interessantes do ponto de vista esportivo, como por exemplo, gols bonitos, jogadas bem sincronizadas, defesas assombrosas, rivalidade etc., a protagonista, mais uma vez, foi a equipe de arbitragem, em especial, os designados como árbitros de vídeo (VAR).

Nesse sentido, é oportuno fazer um enlace histórico sobre a implantação do VAR no futebol. A gênese dessa ideia surgiu após a partida realizada no ano de 2009 como classificatória para a Copa do Mundo FIFA do ano seguinte entre as seleções da França e da Irlanda. Na segunda partida que aconteceu em Paris, após a França ter vencido o primeiro jogo pelo placar mínimo em Dublin, a Irlanda surpreendia e vencia pelo mesmo placar os anfitriões, levando a decisão para a prorrogação. Nesta etapa, o atacante francês Thierry Henry impediu a saída da bola pela linha de fundo com as mãos e fez uma assistência para seu companheiro marcar o gol da classificação francesa, haja vista a confirmação do tento pela equipe de arbitragem.

Após esse imbróglio, iniciou-se um movimento na IFAB (International Football Association Board), com o apoio da Irlanda, que por sua vez é uma das quatro integrantes permanentes do quadro de membros, com o objetivo de criar um mecanismo capaz de revisar alguns lances do jogo por meio da tecnologia. Essa ideia foi efetivada na 130ª Reunião Geral Anual da IFAB, realizada no dia 05.03.2016, que aprovou pelo período de dois anos a utilização do árbitro de vídeo em caráter experimental. Após rigorosos estudos no estágio probatório, a IFAB, em sua 132ª Reunião Geral Anual realizada em 03.03.2018, decidiu pela implantação definitiva do árbitro de vídeo nas Regras do Futebol.

Retomando o ponto ensejador desta reflexão jurídica, no minuto 41 do 1º tempo, a equipe paraguaia marcou o primeiro gol da partida com o atleta Mauro Boselli. No entanto, o árbitro assistente o invalidou, pois, em tese, o mencionado jogador estava em posição de impedimento, o que por sua vez gerou uma série de polêmicas e discussões acerca deste lance.

Tomando por base as imagens utilizadas pelo VAR e veiculadas pela televisão, é unânime o entendimento de que o árbitro principal assinalou o impedimento após a bola atravessar por completo a linha do gol. Logo, a jogada já estava encerrada e, assim, o árbitro assistente observou o protocolo do VAR delineado pela FIFA e pela IFAB e a contribuição tecnológica estava apta para intervir na partida para afirmar se a jogada era lícita ou ilícita.

Nesse sentido, é importante trazer à baila alguns pontos racionalizados pela IFAB no momento da implementação probatória do árbitro de vídeo e ratificados no Manual de Implementação do VAR em Competições Oficiais da CBF de outubro de 2019. Primeiramente, a incorporação do árbitro de vídeo no futebol segue a filosofia da “mínima interferência – máximo benefício”. Ademais, o princípio 7 do Manual afirma que “a precisão é mais importante que a pressa”.

Todavia, esses conceitos foram totalmente negligenciados no caso em tela. Inicialmente, percebe-se que não houve a “mínima interferência”, pois a partida foi interrompida por infindáveis minutos para que os árbitros assistentes pudessem verificar as imagens. Em ato contínuo, também não ocorreu o “máximo benefício” e o privilégio a “precisão” ao invés da “pressa”, tendo em vista que a decisão final prolatada pelo árbitro principal foi escandalosamente equivocada apesar da indubitável presença da tecnologia.

Nota-se pelas imagens que o atleta Samuel Xavier do Fluminense fornecia larga e contundente condição de jogo para o jogador da equipe do Paraguai. Entretanto, os árbitros do VAR utilizaram uma imagem equivocada, pois ela estava muito fechada, e assim, não enxergaram o atleta tricolor, e por consequência, invalidaram um gol flagrantemente legal.

Nesse ponto que reside a problemática: em casos análogos, não seria alvissareiro a intervenção do Direito Desportivo incumbido do seu escopo finalístico que é alcançar a justiça e a pacificação social através da aplicação da norma própria deste campo, como por exemplo, os princípios da legalidade, moralidade e do espírito desportivo (art. 2º, VII, VIII e XVIII do CBJD)?

Tendo como base a “lex sportiva” brasileira, a equipe prejudicada poderia tentar anular a partida/modificar o resultado através da ação de impugnação tipificada no art. 84 do CBJD. Para tanto, é necessário traçar as distinções entre erro de fato e erro de direito.

O erro de fato ocorre quando o árbitro enxerga equivocadamente um lance, ou seja, existe um erro na premissa em função de uma deturpada análise da realidade. Por outro lado, no erro de direito acontece o inverso, ou seja, o árbitro percebe perfeitamente a verdade do lance, mas concede a esse fato uma consequência jurídica proibida pela norma. Logo, há um descumprimento de um preceito legal, o que por sua vez pode gerar a impugnação do jogo. Vejamos o ensinamento do Prof. Álvaro Melo Filho:

Em suma, é possível concluir-se, de um lado, que o erro de fato é o engano ou falta de observação do árbitro a respeito da circunstância material do lance ou jogada, correspondendo a ato discricionário possibilitando ao árbitro interpretação subjetiva do fato ou da regra; e, de outra parte, o erro de direito decorre do descumprimento, desrespeito ou incorreta utilização da regra de jogo, correspondendo a ato vinculado na medida em que não outorga nem permite ao árbitro flexibilidade ou margem de interpretação.[1]

Mediante ao advento do VAR, não há mais espaço para qualificar o equívoco materializado na citada partida como erro de fato, pois a tecnologia suprime de forma holística a limitação humana. O que se nota a partir deste episódio é que os árbitros de vídeo envolvidos nesse episódio não conhecem a inteligência da regra do impedimento ou, na melhor das hipóteses, são ineptos para manusearem o aparelho tecnológico que integra atualmente as regras do jogo. Independentemente da motivação, o resultado é evidente, pois trata-se de um incontestável erro de direito concretizado a partir, nas palavras de Álvaro Melo Filho, de uma incorreta utilização da regra do jogo.

Portanto, os Tribunais Desportivos necessitam alterar o entendimento jurisprudencial para casos semelhantes tendo este como o seu “leading case”, haja vista que a evolução tecnológica impõe total submissão a razão. Assim sendo, em situações análogas, os escatológicos erros provenientes dos árbitros de vídeo devem ser adjetivados como “erro de direito” e, por consequência, devem ensejar a anulação da partida, porque só assim o conceito de justiça e os sustentáculos do Direito Desportivo como a legalidade, moralidade e o “fair play” estarão devidamente homenageados, observados e aplicados.

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Vinícius de Almeida Rodrigues é advogado, pós-graduado em Direito Regulatório e Infraestrutura pela FGV/RJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo do Ibmec RJ (GEDD Ibmec).

[1] MELO FILHO, Álvaro. Novo código brasileiro de justiça desportiva: marcos jurídicos e destaques. São Paulo: Editora Executiva, p. 28-29.

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