Pesquisar
Close this search box.

A história da janela de transferências

O mês de janeiro se aproxima e os rumores sobre as contratações de futebolistas começam a tomar conta dos noticiários esportivos. Isso porque, nessa data, é aberto o período de registro de jogadores do futebol europeu, principal mercado do mundo, que é popularmente conhecido como janela de transferências.

Com efeito, ela ocorre duas vezes por ano e sempre é capaz de gerar muitas dúvidas nos leitores. Afinal, qual o motivo para existir um período específico para poder registrar um jogador? Por que um atleta não pode assinar com o outro clube? Quando meu time pode contratar um jogador? Por que a maioria das equipes deixam tudo para a última hora?

Primeiramente, para uma melhor compreensão da janela de transferências, é impositivo discorrer sobre o contexto histórico, que influenciou na implementação dessa medida. No início dos anos 2000, a FIFA sofria fortes pressões de órgãos da União Europeia, alavancados pelo emblemático Caso Bosman, para criar um sistema de transferências que pudesse promover o desenvolvimento do esporte e, concomitantemente, gerar uma segurança jurídica para todos os seus membros.

Com o advento do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ)[1], foram introduzidas regras globais e vinculativas a todos. Essa normativa tratava, principalmente, sobre a transferência de jogadores entre diferentes associações, a elegibilidade para participar do esporte organizado, a proteção dos menores e a relação entre clubes e futebolistas. Um dos principais pilares era o princípio da estabilidade contratual.

Para isso, a entidade suíça ditou normas para o cumprimento dos contratos, que, em via de regra, não podem ser terminados antes do prazo, salvo por comum acordo entre as partes ou na existência de justa causa, já explicada aqui em outro artigo[2].

A propósito, o período de registro de futebolistas para os clubes veio justamente para fortalecer esse princípio, uma vez que impediu que as equipes pudessem contratar quando quisessem. Logo, o jogador também já não poderia sair durante todo o ano desportivo e sim somente durante um determinado intervalo de tempo.

Igualmente, a FIFA estava preocupada com a manutenção da integridade e estabilidade das competições, pois as contratações têm o condão de alterar significativamente a qualidade técnica e, consequentemente, o rendimento esportivo de uma equipe. Nessa esteira, um atleta poderia, a qualquer tempo, sair de um time para outro que disputa o mesmo campeonato, levantando muitas suspeitas, se, por exemplo, fosse feito nas rodadas finais.

A título de exemplo, na Premier League[3], antes da implementação da janela, os jogadores podiam ser negociados até 31 de março, ou seja, ao longo de aproximadamente 80% do campeonato. Desse modo, uma equipe que estivesse lutando pelo primeiro lugar poderia, repentinamente, adquirir jogadores de um clube que já não tivesse maiores ambições no final da temporada, submetendo-os a contratos de curto prazo. Tudo isso, se configurava em uma ameaça ao espírito de uma competição de liga, que deveria fazer jus a um trabalho desenvolvido durante o ano.

Sob esse viés, não podemos olvidar que o futebol é um produto global, que envolve cifras milionárias e detém um viés comercial, que não deve ser desprezado. Portanto, a estabilidade do elenco e a manutenção da integridade da competição, sustentadas pela limitação do período de contratações, trouxeram confiança e segurança para os componentes do mercado.

Dentre as principais situações e partes beneficiadas, podemos destacar: os patrocinadores da competição e dos clubes, para o momento de negociar os direitos televisivos com as redes de transmissão, para os próprios torcedores, que passam a criar uma identificação com o atleta, bem como para os possíveis investidores. É uma reação em cadeia, que deu azo ao aumento dos benefícios econômicos e desportivos para todas as partes envolvidas no esporte.

Ocorre que, todavia, a imposição de um período específico para o registro de um atleta e, automaticamente, para o exercício de sua profissão, já que um jogador só está apto para jogar se estiver registrado, poderia implicar em aspectos restritivos à liberdade de circulação dos trabalhadores, o que é tutelado pela Legislação Europeia. Evidentemente, esse tema foi levado até a Corte de Justiça Europeia, porém não foi devido ao futebol.

O jogador de basquete finlandês Lehtonen[4] saiu de uma equipe do seu país natal para participar da fase final do campeonato belga pelo Castors Braine, fora do período estabelecido pela FIBA (Federação Internacional de Basquete). Não obstante o aviso da Federação Belga, o clube o escalou e acabou punido com a perda da partida. Irresignados, a entidade e o atleta acionaram a Justiça Belga para que se retirasse a sanção e para que o jogador pudesse atuar o restante da temporada e o caso acabou chegando ao Tribunal Europeu.

Apesar de reconhecer o aspecto restritivo da normativa, a decisão afirmou que se tratava meramente de um assunto de interesse desportivo, sem a presença de um fator econômico. Segundo o Tribunal, a fixação de prazos para transferências de jogadores cumpria o objetivo de garantir a regularidade das competições, já que as operações podiam alterar substancialmente a força de uma ou de outra equipe no decorrer do campeonato. Assim, se questionaria a atuação dos participantes, e, consequentemente, o bom funcionamento dele como um todo.

Fortalecido pelo entendimento da Corte, o RSTJ, detidamente no artigo 6º, impôs duas janelas de transferência: uma mais longa, que pode durar até 12 semanas e outra que dura, no máximo, 4 semanas, que normalmente ocorre na metade da temporada. Na Europa, a mais longa é chamada de mercado de verão, que movimenta as maiores cifras. Por sua vez, a da metade da temporada é conhecida como mercado de inverno, do qual falaremos um pouco mais adiante.

A obrigação de estabelecer as datas dos períodos de registro é das Federações Nacionais, segundo a particularidade do campeonato disputado em seu país, com uma antecedência mínima de 12 meses. Essas datas podem ser alteradas somente em caso de circunstancias excepcionais.

Outrossim, o período de contratações deve valer tanto para as internacionais como para as nacionais, não podendo haver nenhuma diferença entre elas. Essa semana, a CBF acatou uma exigência da FIFA para que aplicassem essa uniformidade entre os períodos nacionais e internacionais em sua normativa, o que deverá entrar em vigor já no ano que vem[5].

Da mesma forma, a prazo fatal para a realização dos registros é utilizada como estratégia negocial, pois os clubes esperam sempre o último momento, os últimos dias, para avaliar o mercado, a concorrência, para conseguir um preço maior para as suas vendas ou um preço menor para as suas aquisições. Paralelamente, os intermediários estão atentos às necessidades dos clubes e dos jogadores, atuando de maneira mais efusiva durante esse período

Por força dessa prática, muitas transferências são concluídas nas últimas horas e até minutos de mercado. Um cenário com nuances de suspense para os jogadores, clubes, torcedores e de muito trabalho para os advogados e funcionários das entidades envolvidas.

Nesse contexto, é fundamental explicar o mecanismo de uma operação internacional. Para que ela possa ser considerada tempestiva, a Federação Nacional do clube de destino do jogador deve requerer o Certificado Internacional de Transferência (CTI) antes do fechamento do mercado.

No entanto, para que seja solicitado o CTI, o procedimento deve passar por uma primeira etapa, na qual os clubes devem subir na plataforma do Transfer Matching System (TMS) – elaborada pela FIFA para armazenamento de dados das transferências internacionais – as informações e os documentos pertinentes a transferência, presente no artigo 4, do anexo 3 do RSTJ, como, por exemplo, a natureza da operação (permanente ou temporária), os nomes dos intermediários dos jogadores/clubes que atuaram nas negociações, os dados bancários, a remuneração do jogador na nova equipe, o mecanismo de solidariedade e a indenização por formação, os dados pessoais do atleta.

Havendo uma congruência de informações e corretude nos documentos, a Federação do país do clube contratante solicita o CTI para a Federação do clube de origem que, não existindo objeções do clube afiliado, expede o CTI, juntamente com o passaporte do jogador e informa se o jogador está com alguma sanção pendente.

Contudo, a FIFA adota uma postura mais protetiva em relação aos menores, que possuem um procedimento de transferência distinto. A aprovação da operação, que deve estar em conformidade com o artigo 19, passa pelo crivo do antigo Comitê do Status do Jogador, ora parte do Tribunal do Futebol, antes do requerimento do CTI.

Por fim, com a expedição do CTI, o jogador já pode ser inscrito e está apto para atuar. No entanto, ressalte-se que há algumas exceções para que o atleta possa ser registrado fora do intervalo fixado, dentre elas, para os agentes livres (hipótese mais comum). Nesse caso, o contrato anterior do futebolista, com o antigo time, deve ter expirado ou terminado em acordo entre as partes antes do fechamento do mercado da Federação a que pertence o novo clube.

Além disso, em último recurso, uma medida provisória pode ser tomada pela FIFA para que se possa registrar o desportista fora do período estabelecido pela Federação Nacional. Para tanto, é necessário que o antigo clube tenha adotado um comportamento considerado abusivo, com o condão de ocasionar a ruptura unilateral da relação por justa causa.

Sendo assim, a entidade máxima do futebol prevê a possibilidade dessa medida justamente para proteger os profissionais que ficaram desempregados devido a essa conduta ilegítima do antigo empregador e que, ao mesmo tempo, se encontram incapacitados de perceber uma renda por causa das restrições impostas pelos períodos de registro fixados.

Recentemente, o lateral direito Daniel Alves, um dos mais vitoriosos da história do futebol, levantou muitas dúvidas sobre o tema central desse artigo. Em comum acordo, o jogador terminou seu contrato com o São Paulo, mas tudo isso ocorreu depois do fechamento do mercado nos principais países europeus. Desse modo, ele somente poderá ser registrado pelo Barcelona quando da abertura do mercado de inverno.

Nesse sentido, a janela de inverno tem ganhado bastante protagonismo nos últimos anos, uma característica completamente diferente da inicialmente programada. Antigamente, na primeira versão do RSTJ, as equipes somente podiam realizar contratações em caso de “razões estritamente esportivas, como ajustes técnicos ou a substituição de jogadores lesionados, ou circunstâncias excepcionais”[6]. A partir do ano de 2005, ela passou a não ter mais nenhuma limitação.

Através dos relatórios emitidos pela FIFA sobre o mercado de inverno, podemos reparar a sua constante evolução. No ano de 2017[7], os clubes movimentaram 856,3 milhões de dólares, em 3.085 transferências internacionais. Já em 2020[8], o último antes da pandemia, esse número saltou para 1,15 bilhão de dólares, com 4.108 transferências internacionais.

Some-se a isso, o fato de que a UEFA, percebendo a importância da janela de inverno, eliminou de seu regulamento das principais competições europeias um aspecto que ainda podia ser um empecilho na hora de contratar novos futebolistas no mês de janeiro. Se adequando, portanto, a uma demanda do mercado, impulsionado pelo aumento do poderio econômico dos times e pela necessidade de se reforçarem.

A partir do ano de 2020, a entidade responsável pelo futebol europeu alterou o regulamento, passando a permitir que um jogador que tivesse atuado nas fases prévias ou na fase de grupo por uma equipe pudesse participar, por outro time, nas fases finais, nos moldes do artigo 46.1, 46.3 e 44.06[9]. É o que ocorreu com Haaland e Minamino[10], que saíram do RB Salzburg para disputar as fases finais por Borussia Dortmund e Liverpool, respectivamente.

Conforme o exposto, a existência do período de registro é mais do que necessária para a manutenção da integridade das competições e da estabilidade contratual, repercutindo não somente no desempenho desportivo, como também nas finanças dos clubes. Ademais, podemos observar que o contexto das transferências não é tão simples quanto parece, podendo causar muitas discussões interessantes.

Com a recuperação econômica, ainda lenta, pós pandemia, há de se esperar uma janela de inverno ainda tímida, mas a presença de mecanismos de fomento e base jurídica demonstram que a tendência é de crescimento nos próximos anos.

……….

[1] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-agosto-de-2021.pdf (fifa.com) – última consulta: 06.12.2021

[2] A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 06.12.2021

[3] The origins of the transfer window system (premierleague.com) – última consulta: 06.12.2021

[4] Caso Lehtonen – showPdf.jsf (europa.eu) – última consulta: 06.12.2021

[5] CBF cria janela de transferências nacionais por exigência da Fifa – Jornal O Globo – última consulta: 08.12.2021

[6] Comentários ao RSTJ – Commentary-on-the-FIFA-Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-Edition-2021.pdf – última consulta: 07.12.2021

[7] TMS de Inverno 2017 – eena1vyxmsmlc2qmizui-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 07.12.2021

[8] TMS de Inverno 2020 – Big 5 Winter 2020.indd (fifa.com) – última consulta: 07.12.2021

[9] Article 44 Player eligibility • Regulations of the UEFA Champions League • Leitor • Documents UEFA – última consulta: 08.12.2021

[10] Um jogador pode participar da Champions League por duas equipes diferentes? | Goal.com – última consulta: 08.12.2021

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.