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A história de Marquinhos: como os cegos aprendem a jogar futebol

Marquinhos está aprendendo a chutar de primeira. O desafio é encher o pé apenas posicionando o corpo de modo que possa dar um arremate tão fulminante quanto discreto em direção ao gol.

Tal movimento, se executado com perfeição, o fará ser reconhecido pela habilidade e eficiência em um jogo em que os sentidos valem muito mais do que naqueles que o público está acostumado a acompanhar na TV e nos estádios.

Marquinhos é cego e há um ano descobriu o futebol de cinco, nome dado à modalidade praticada pelos cegos. A alguns, custa acreditar que cegos possam jogar bola ou até mesmo bater de primeira mesmo sem enxergar o campo, o adversário, as traves, a bola.

Mas, sim, é possível.

E abaixo, relato como tornar isso possível a partir da experiência de Marquinhos.

Marquinhos nasceu 14 anos atrás, em um hospital de Santo Amaro, na zona sul da cidade de São Paulo. Ao sair do ventre da mãe, aspirou mecônio, que, em outras palavras, significa ingerir fezes no parto. Isso comprometeu a visão do garoto, entre outros problemas de saúde que foram gerados. A família entendeu que não seria fácil cuidar da criança na cidade grande e deixou São Paulo, onde morava, para buscar ajuda dos parentes em Campo Alegre, cidade de 30 mil habitantes a 70 quilômetros de Maceió, Alagoas.

Mas durou apenas um ano a vida da família no Nordeste.

“As pessoas não acreditavam que Marquinhos era cego”, contou-me com naturalidade impressionante Maria Gilma da Silva, mãe do garoto, dentro do ônibus que liga o Centro de Treinamento Paralímpico, na Rodovia dos Imigrantes, ao Terminal Jabaquara, numa noite chuvosa do mês de novembro.

“Diziam que era frescura ou que ele enxergaria com o tempo”, continua. “Eu dizia ao povo e ninguém acreditava. Quando ele chorava não saía lágrima; um dia lá secou, não caía um pingo de água do olho dele quando chorava. Pior foi quando ele deu com a cabeça numa estrutura de metal e perdeu muito sangue, porque não enxergava um palmo à frente do nariz”, relatou Gilma.

Marquinhos foi atendido num hospital da cidade e recuperou-se do acidente doméstico prontamente. Mas a família assustou-se com a situação. Após esse episódio, dona Gilma e o marido entenderam que deveriam voltar para São Paulo e buscar tratamento adequado para o filho.

Buscaram tratamento no Hospital das Clínicas, já em São Paulo. Gilma era analfabeta. Aprendeu a ler para identificar os ônibus e linhas de metrô que os levariam ao médico.

Marquinhos passou por um par de cirurgias na primeira década de vida na tentativa de recuperar a visão.

Em vão.

Já era muito tarde.

Estudos comprovam que, se o cérebro humano não receber informação da visão no primeiro mês de vida, são muito pequenas as chances de o indivíduo ter acuidade visual. Foi o caso de Marquinhos.

Em São Paulo, foi matriculado no Padre Chico, um instituto de ensino para crianças e adolescentes com deficiências visuais, administrado pelas Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo e fundado em 1928, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Aprendeu a ler braile, desenvolveu a memória e os outros sentidos, como o tato e a audição. Também conheceu o futebol, por intermédio de amigos de escola.

De lá para cá, já foi até convocado para a inédita seleção brasileira de futebol de cinco (para cegos) sub-15, que se reuniu para uma semana de treinos pela primeira vez em São Paulo, no início de 2018. O repórter Adriano Wilkson, do portal UOL, publicou em março uma reportagem sobre esta garotada. Antes disso, ainda em janeiro, dona Maria Gilma deu um relato emocionante em vídeo do Comitê Paralímpico Brasileiro sobre como Marquinhos a convenceu a ingressar no futebol.

Pelo menos duas vezes por semana, dona Maria Gilma e Marquinhos deixam o Jardim Selma, onde moram, próximo à Represa Billings, Zona Sul de São Paulo, e vão ao CT Paralímpico, no Jabaquara, para o garoto treinar com a equipe do Cesec (Centro de Emancipação Social e Esportiva de Cegos).

Às vezes, bate bola em meio aos adultos, outras, só com garotos da mesma idade, alguns até enxergam. Mas há aqueles dias, como na quinta-feira da semana que passou, em que Marquinhos joga sozinho. A bola do futebol de cegos tem guizos dentro, que orientam os jogadores. É por ele que os atletas são guiados na cancha.
Nesses dias em que está sem companhia, Marquinhos treina condução, localização e chute a gol. Quando está entediado, pede à mãe para ir ao gol enquanto ele treina os chutes de primeira (vídeo de marquinhos treinando sozinho). “Noutro dia eu levei tanta bolada dele que já disse que não vou ficar mais pegando bola dele”, disse, dando risada, Gilma.

No fim da tarde da última quinta-feira, encontrei-o treinando chutes de primeira, um movimento muito difícil para os cegos. Trocamos passes, e ele deu alguns chutes ao gol. Timidamente, contou que jogou as Paralimpíadas Escolares representando o estado de São Paulo, uma semana antes, no CT Paralímpico, mas que não marcara gols.

Não parecia triste ou abalado por isso.

Mas pensou, “quem sabe quando aprender a bater de primeira?”.

……….

Foto: Daniel Zappe/CPB/Mpix.

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