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A humanidade contra os incidentes na Espanha: Os aspectos jurídicos do caso Vini Jr.

A palavra humanidade pode possuir diferentes significados. Em um primeiro momento, nos desperta, rapidamente, o significado de conjunto de seres humanos, a existência comum de uma espécie. Em seguida, nos remete diretamente à natureza do ser humano, a sua essência, o seu modo de agir, para o bem ou para o mal. Por último, vem a parte mais subjetiva, aquela que nos convida para o lado interno, o humano, da capacidade de se nutrir um sentimento de compaixão.

Todos esses significados tomaram uma dimensão única, colidiram e se opuseram aos lamentáveis e contumazes eventos que vêm ocorrendo na Espanha, com um único alvo: o jogador brasileiro Vinícius Junior. Nesse sentido, não foi a primeira vez que, no Brasil, se debateu sobre esses atos repugnantes e rotineiros no Campeonato Espanhol, mas, decerto, antes tarde do que nunca, se alcançou uma comoção global.

Como é notório, na partida entre Valencia e Real Madrid, no estádio Mestalla, em Valência, antes, durante e após a partida, dentro e fora do recinto desportivo, foram entoados cânticos e realizados gestos de cunho racista contra a principal estrela do Real Madrid. A partida chegou a ser paralisada pelo árbitro, seguindo os protocolos estabelecidos pela FIFA, que, infelizmente, não foram suficientes.

Com a continuidade e o aumento incontrolável dessas condutas repugnantes por parte da torcida mandante, o desportista brasileiro, irresignado e dotado de uma sensação de impotência plena diante do enésimo fato idêntico vivenciado e sofrido, acabou sendo expulso de campo injustamente.

Imediatamente após a partida, vídeos e imagens de todos os eventos circularam nas redes sociais e foram divulgados pelos veículos de comunicação, causando indignação e um impacto considerável, talvez pela primeira vez em nível mundial, sobre os incidentes.

Sob esse viés, impossível não se solidarizar com um menino, negro e de origem pobre, que passou por diversas dificuldades e barreiras imposta pela vida para poder chegar aonde chegou, no topo do futebol mundial, sendo um dos expoentes do esporte no país. No lado pessoal, foi capaz de proporcionar um futuro melhor aos seus familiares e implementar uma instituição de caridade para ajudar os jovens que passam por situações semelhantes.

Ademais, Vinícius Junior, dono de uma postura combativa, como deve ser, tem levantado uma pauta fundamental para o esporte e para a sociedade: não basta não ser racista, para extirpar esse mal, é necessário ser antirracista. Em outras palavras, se engajar e lutar pela causa, jamais se calando ou omitindo diante de situações calamitosas como aquelas vivenciadas pelo atleta.

Essa sensação de pertencimento com a causa e comoção pelos eventos ocorridos na Espanha podem ter sido um marco muito importante para um dos países mais tradicionais do futebol, lugar da segunda Liga mais importante do mundo. Perdoem-me o truísmo, porém a humanidade impulsionada pelo seu lado humano, na sua mais íntima humanidade, exigiu condutas humanas e positivas a serem adotadas na Espanha.

Desde então, a LaLiga, organizadora do Campeonato Espanhol, e as autoridades públicas espanholas foram colocadas no centro das atenções. Afinal, como tantos casos de discriminação racial relatados não resultaram em absolutamente nenhuma punição aos responsáveis? Como tantas denúncias foram arquivadas pelos órgãos competentes, como o Ministério Público, por exemplo?

Prontamente, o presidente de LaLiga, Javier Tebas, em uma tentativa desesperada de desconstruir a mácula causada à imagem da competição organizada pela empresa, bem como à própria instituição, gerada pelos reticentes atos racistas, para se evitar perdas econômicas, se olvidou de contemplar o lado humano.

Ao tentar negar os fatos, se pronunciando de maneira totalmente inoportuna e equivocada, e ao não solidarizar ao drama sofrido por um dos principais expoentes, portanto, um produto de LaLiga, o mandatário não somente desgastou ainda mais a imagem da competição, como também prejudicou o aspecto financeiro que se intentava proteger.

Sob esse viés, como uma entidade que não defende seu principal produto e tenta ignorar acontecimentos concretos será vista sob a ótica de seus patrocinadores e investidores? Em um mundo cada vez mais profissional e, ao mesmo tempo, atento ao lado humano como fator diferencial, onde as melhores práticas empresariais estão em conformidade com políticas socioambientais e baseadas nos princípios de direitos humanos, esse posicionamento não merece prosperar, em qualquer aspecto.

Posto isso, se parte para uma análise estritamente jurídica de todos eventos relacionados à discriminação. Em primeiro lugar, se enfrentará a questão da competência disciplinar desportiva, à luz do Direito Espanhol e das Normativas existentes, de maneira bastante aprofundada. Por fim, se examinará as possíveis repercussões contratuais para o vínculo empregatício do jogador.

Em primeiro lugar, pelo Direito Espanhol e pelas normativas privadas do esporte daquele país, cumpre esclarecer que Laliga não tem competência para sancionar nesse caso, cabendo a ela reunir elementos probatórios e realizar as denúncias, para que sejam apreciadas pelo Comitê de Competição da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), que é órgão que detém a competência exclusiva para tratar do tema.

Isso porque, de acordo com antiga Lei do Esporte (Lei 10/1990[1]), que estava em vigor até esse ano, determinava, no artigo 33, que pertencia à Federação a competência disciplinar para punir. A atual Lei Geral do Esporte (Lei 39/2022)[2], no artigo 50, importou a mesma disposição.

Além disso, ficou estabelecido no Convenio de Coordenação[3] entre RFEF e Laliga, válido em princípio até o meio de 2024, vários temas, dentre eles arbitragem, divisão de recursos financeiros, inscrição de jogadores e disciplina desportiva, com a composição dos órgãos sancionadores e procedimento de denúncias em casos de racismo.

Entretanto, frise-se que a ausência de competência disciplinar de forma alguma pode eximir Laliga de realizar medidas preventivas, educacionais e de desempenhar o seu trabalho institucional para evitar a ocorrência desses fatos gravíssimos. Não somente isso, como também impor o aumento e a melhora no serviço do pessoal responsável por verificar, apurar e registrar atos discriminatórios dentro dos estádios.

Por sua vez, o Comitê de Competições da RFEF agiu, em conformidade com o seu Código Disciplinar, sancionando o Valencia com o fechamento de um setor da arquibancada por cinco partidas, bem como multa pecuniária no valor de 45 mil euros. Essa parte da arquibancada, além de fechada, deverá mostrar uma mensagem que condene os atos e condutas violentas e racistas, com uma descrição de apoio ao fair play. O recurso do Valencia foi rejeitado pelo Comitê de Apelação da RFEF.

Nesse contexto, as sanções previstas no Código Disciplinar são as previstas na Lei 19/2007, que trata do combate à violência, ao racismo, xenofobia e intolerância no esporte, que inclusive contém penas mais graves para essas infrações. Não é, portanto, por falta de previsão expressa ou necessidade de novas leis que os casos não vinham sendo enfrentados.

Com efeito, inclusive há a possibilidade de 3 vias de resolução, totalmente independentes. A desportiva pela RFEF, a administrativa ao órgão do Estado (a depender do tipo de sanção), podendo variar entre Ministério do Interior, Conselho de Ministros, Secretária de Segurança do Estado, de acordo com o artigo 28 da Lei 19/2007, e, por último, mas não menos importante, ressalte-se que os indivíduos identificados podem sofrer repercussões também na esfera penal.

Essa última, inclusive, foi tema debatido constantemente na Europa, que cobrou mais pró atividade dos órgãos acusatórios, como o Ministério Público, bem como dos próprios juízes que determinaram o arquivamento de diversos casos. Esse pedido foi reforçado pelo Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, feito oficialmente pelos órgãos do governo às autoridades espanholas.

Por outro lado, ao longo dessa última semana se levantou a hipótese da rescisão do contrato de trabalho do atleta devido aos acontecimentos rotineiros e, até então, passividade do clube empregador em tomar medidas mais enérgicas para evitar as condutas criminosas sofridas pelo Vinicius Junior.

A propósito, a Espanha é um país pouco usual devido a sua legislação, que possui muitas particularidades, como a impossibilidade de submeter os conflitos laborais à arbitragem e à normativa privada, tal como a da FIFA, não importando a nacionalidade do jogador.

Esse corpo normativo, através do Real Decreto 1006/1985[4], que regula as relações trabalhistas dos desportistas profissionais, nos seus artigos 13, 15 e 16, apresenta caminhos, embora muito difíceis e pouco prováveis, para a construção de uma resolução do contrato por justa causa. Nesse sentido. estabelece no art. 13 a hipótese de extinção do contrato de trabalho por vontade exclusiva do atleta. Ou seja, quando o clube não deu causa à rescisão contratual.

Ato contínuo, o artigo 16, no segundo parágrafo, institui que a resolução do contrato solicitada pelo atleta profissional, com fundamento em qualquer das causas indicadas no artigo 50 do Estatuto dos Trabalhadores, produzirá os mesmos efeitos de uma demissão improcedente cabendo à entidade indenizá-lo de acordo com o pactuado no contrato ou, caso não haja nenhuma previsão, o valor deverá ser fixado pelo juiz, com valor mínimo de duas remunerações.

Para tanto, como exposto anteriormente, devemos observar a Real Decreto Legislativo 2/2015, conhecido como Estatuto dos Trabalhadores[5], que preceitua que qualquer descumprimento contratual grave do empregador daria azo ao pleito do atleta nesse caso.

Contudo, ainda é muito difícil criar um cenário de justa causa, segundo a legislação espanhola, pois os infelizes e criminosos atos racistas ocorreram de torcidas de outros clubes, assim como as condições de trabalho proporcionadas pelo Real Madrid continuam as mesmas, bem como tudo aquilo pactuado no contrato.

Some-se a isso o fato de que possíveis omissões de Laliga, RFEF ou o próprio clube empregador no combate ao racismo não seriam suficientes, do ponto de vista legal, para uma resolução com justa causa. O caminho mais lúcido seria o comum acordo entre as partes, como preceitua o artigo 13 do Real Decreto 1006/1985.

Outrossim, há se avaliar, sempre, o cenário para a continuidade do crescimento e desenvolvimento do atleta, as projeções de carreira e o quanto isso pode afetar o seu rendimento desportivo, sem deixar de considerar que se trata de um dos maiores clubes do mundo, que sempre proporcionará conquistas ou nível de competitividade bem alto.

Da mesma forma, observando a jurisprudência e os regulamentos da FIFA, permitam-me tecer breves comentários sobre essa possibilidade à luz do Direito Internacional Desportivo. No início dos anos 2000, diante da pressão da União Europeia e das crescentes demandas dos protagonistas do esporte, a FIFA emitiu o Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ), uma normativa que visava promover o desenvolvimento do esporte, criando uma segurança jurídica para todos os seus membros.

Para isso, a entidade máxima do futebol estabeleceu regras globais e vinculativas a todos, que tratavam, principalmente, sobre a transferência de jogadores entre diferentes associações, a elegibilidade para participar do esporte organizado, a proteção dos menores e a relação entre clubes e futebolistas.

O principal desafio e objetivo dessa normativa era determinar bases mínimas, amparadas no Direito Suíço e em conformidade com o Direito Europeu, que pudessem garantir a estabilidade contratual, ou seja, que os contratos fossem cumpridos em sua totalidade.

Nesse sentido, a entidade suíça se inspirou em alguns princípios contratuais, como, por exemplo, o pacta sunt servanda (a vontade das partes, fixada em um contrato, deve ser cumprida), além da premissa de que o compromisso só pode ser resolvido após o término do prazo ou por mútuo acordo.

Com efeito, a FIFA instituiu como regra o cumprimento dos contratos, impondo mecanismos para garantir esse escopo principal, como a impossibilidade da terminação unilateral durante a temporada, sob pena de sanções esportivas a quem está terminando, ao clube (terceiro) que está induzindo a quebra contratual, bem como compensações financeiras que deverão ser pagar pelos infratores/indutores a parte prejudicada.

Entretanto, há uma exceção a estabilidade contratual, chamada justa causa. No caso da ocorrência dela, a parte que sofreu os efeitos da inexecução das obrigações poderia resolver o contrato, sem consequências de qualquer tipo (seja pagamento de indenização ou imposição de sanções esportivas). Por outro lado, quem foi inadimplente será responsável pelo pagamento de uma compensação financeira, sem prejuízo de uma sanção esportiva.

Apesar de ser de extrema importância para todos os componentes do mercado, o significado de justa causa e as condutas que dariam azo a esse tipo de terminação nunca foram esclarecidos pela FIFA em seu corpo normativo. A definição desse conceito foi sendo construída e aprimorada através das resoluções emitidas pela entidade suíça e pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS).

Nesse contexto, como é uma entidade privada de Direito Suíço, a FIFA, bem como o TAS, também localizado em solo helvético, se inspiraram no Código de Obrigações do país para nortear suas decisões. Esse dispositivo, mais precisamente no artigo 337, indica que, na existência de falta grave, os empregadores ou empregados podem resolver imediatamente o contrato.

Se entende como falta grave tudo aquilo que não permite, por razões de boa-fé, exigir do terminador que se tenha que continuar no contrato. Em outras palavras, a conduta deve ser tão grave, que culmina em uma quebra de confiança que não pode ser restabelecida, inviabilizando qualquer possibilidade de permanência da relação.

Novamente, não há uma jurisprudência que respalde a justa causa nesse contrato e, muito menos, uma conduta direta do empregador que viole ou dê motivo para a justa causa, pois os atos diretos de racismo, ainda que violem os direitos humanos, o que a FIFA se comprometeu a proteger em seu Estatuto, decorreram de terceiros alheios ao contrato de trabalho. Ao meu ver, segue muito pouco provável e possível a resolução com justa causa também quando se analisa o Regulamento da FIFA.

Por todo o exposto, após examinar juridicamente as consequências dos fatos narrados, conclui-se que a humanidade e os Direitos Humanos devem pautar toda e qualquer relação presente no esporte. São elementos cada vez mais indissociáveis e que merecem ser protegidos por todos os players do mercado e com quem trabalha com a modalidade.

Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Esperamos altivez das autoridades competentes e punição, no rigor da Lei, a todos aqueles que são desumanos. Extirpar esse mal do esporte e da sociedade deve ser um esforço em comum.

Crédito imagem: Real Madrid/Divulgação

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Antiga Lei do Esporte – BOE-A-1990-25037 Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. – última consulta: 01.06.2023

[2] Lei do Esporte atual – BOE-A-2022-24430 Ley 39/2022, de 30 de diciembre, del Deporte. – última consulta: 01.06.2023

[3] Convenio de Coordenação RFEF e Laliga – ST60 – PLAN19072908520 (laliga.com) – última consulta: 01.06.2023

[4] Real Decreto 1006/1985 – BOE-A-1985-12313 Real Decreto 1006/1985, de 26 de junio, por el que se regula la relación laboral especial de los deportistas profesionales. – – última consulta: 01.06.2023

[5] Estatuto dos Trabalhadores – BOE-A-2015-11430 Real Decreto Legislativo 2/2015, de 23 de octubre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley del Estatuto de los Trabajadores. – última consulta: 01.06.2023

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