Com a Covid-19 podendo ser considerada doença ocupacional, a necessidade da contratação do seguro para o atleta parece ter ficado mais evidente
Por Thiago Francisco de Oliveira
A pandemia provocada pela Covid-19 fez as relações trabalhistas entre empregado e empregador mudarem muito nos últimos meses obrigando uma atenção maior para essa seara.
No Brasil, as mudanças mais impactantes se deram após a publicação das Medidas Provisórias 927 e 936, em que o Governo Federal, pensando em reduzir os efeitos da crise nas empresas e, consequentemente, nos empregados, implantou novos regramentos para férias, horas extras, salários, teletrabalho, jornadas e suspensões de contratos de trabalho, realizando alterações significativas na CLT.
Tais medidas, que em parte foram subsidiadas pelo Governo, de fato contribuíram para que a situação não ficasse pior, já que deram aos atores da relação empregatícia “folego” para se manterem ao menos de forma básica em meio a grave crise.
Importante destacar que, esses novos regramentos, ainda que, mesmo com força de lei e aplicação imediata, sejam em primeiro momento apenas provisórios atingem todos os setores da economia e atividades empresariais, não tendo sido diferente com o esporte.
Ainda que se possa afirmar que a Medida Provisória de maior impacto para o esporte em meio a pandemia tenha sido a de número 984, já que, de maneira inesperada e sem muita relevância para o momento vivido, alterou as regras do direito de arena e o prazo mínimo de duração do contrato de trabalho do atleta, não é errado dizer a que a decisão do STF que considerou o artigo 29 da MP 927 inconstitucional pode ter mais reflexos nos clubes do que eles imaginam, principalmente, quando o assunto é riscos a que os atletas estão expostos.
Isso porque o artigo 29 da MP 927 previa que “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”, ou seja, atribuia ao empregado o ônus de provar que teria sido contaminado no ambiente de trabalho.
Porém, com a decisão do STF[1], as empresas correm o risco de assumir a responsabilidade pela contaminação do empregado caso não provem que o contagio teria se dado fora do ambiente de trabalho.
Obviamente que, para uma Entidade de Pratica Desportiva o risco do contágio de seus empregados (atletas) no ambiente de trabalho é muito maior do que, por exemplo, os empregados de uma indústria têxtil, daí o motivo da preocupação.
Os atletas, ao desempenharem suas funções, estão em contato constante com outros colegas de trabalho, sem que o clube possa adotar qualquer medida para evitar isso, o que aumenta consideravelmente a possibilidade de contaminação.
Sem contar que, são poucos os clubes do nosso país que possuem uma estrutura grandiosa em seus Centros de Treinamento, ou recursos financeiros adequados para que possam proporcionar aos atletas condições mínimas de segurança como realização de testes da doença diários e cuidados com a higienização de ambientes como vestiários, academias e salas internas de treinamento.
Isso se soma, ainda, ao fato de que os clubes, mesmo orientados para tanto, não possuem condições para vigiar cada atleta seu 24 horas por dia, ou seja, ele não sabe em que ambiente seu empregado tem circulado ou com quem o atleta tem tido contato.
Inegável, portanto, que o atleta, em seu ambiente de trabalho, corra mais riscos de ser contaminado pelo vírus do que qualquer outro trabalhador, fator preocupante para os clubes que podem acabar tomando para si a culpa pela contaminação de um empregado seu.
Pensando nisso, vem à tona uma questão quase sempre esquecida pelos clubes, principalmente, os menos favorecidos financeiramente, a obrigatoriedade pelo clube na contratação de seguro de vida e acidentes pessoais para o atleta, conforme o artigo 29, §6º, inciso III, artigo 45 e artigo 82-B, todos da Lei 9615/98 (Lei Pelé).
O artigo 29, §6º, inciso III[2] da Lei Pelé fala que o contrato de formação deve conter obrigatoriamente “garantia de seguro de vida e acidentes pessoais para cobrir as atividades do atleta contratado”. Entretanto, sabemos que muitas vezes isso não acontece, ausência que deixa o atleta e sua família, num eventual infortúnio, à sua própria sorte.
O citado artigo 45 também disciplina a questão da contratação do seguro, dessa vez, impondo ao clube obrigatoriedade da contratação para os seus atletas profissionais, sendo especificamente claro que o objetivo é “cobrir os riscos a que eles estão sujeitos”.
Com praticamente o mesmo texto do artigo 45, o artigo 82-B da Lei Pelé também impõe essa responsabilidade de contratação do seguro às Entidades de Pratica Desportiva, só que desta vez, para seus atletas não profissionais de modalidade olímpica ou paraolímpicas.
No mesmo artigo 82-B, no inciso I, alíneas “a” e “b”, a lei obriga, de igual maneira, as Entidades de Administração do Desporto Nacional a contratar o seguro para os atletas não profissionais de modalidade olímpica ou paraolímpica que estejam representando seu país em competições ou partidas internacionais.
E ainda, a obrigação também é imposta para disputas de partidas ou competições nacionais, desde que, o atleta não profissional de modalidade olímpica ou paraolímpica não tenha vinculo com nenhuma entidade de pratica desportiva.
Para todos os casos previstos no artigo 45, dos atletas profissionais, o seguro deve ter como indenização mínima o valor correspondente à remuneração anual pactuada entre atleta e clube.
Já quanto aos casos do artigo 82-B, envolvendo atletas não profissionais, a indenização do seguro deve equivaler à no mínimo a quantia “correspondente a doze vezes o valor do salário mínimo vigente ou a doze vezes o valor de contrato de imagem ou de patrocínio referentes a sua atividade desportiva, o que for maior”.
E não para por aí, além disso, a Lei Pelé também atribui, tanto para os casos do artigo 45 quanto àqueles do artigo 82-B, a responsabilidade da entidade de arcar com todas as despesas médicas do atleta enquanto não ocorrer o pagamento da indenização pela seguradora[3].
Trazida esta situação para tempos de pandemia, a dicção dos próprios artigos citados, quando mencionam como objetivo da contratação dos seguros a frase “cobrir os riscos a que eles estão sujeitos” leva a entender que, diante das características das atividades laborais do atleta, a contaminação pelo coronavirus é sim, neste momento em que a doença atinge números impressionantes, um dos principais riscos a que este profissional esta sujeito.
De plano surge a dúvida: existe ou não cobertura destes seguros para casos de COVID-19? A regra geral era que pandemia estaria dentro do tópico “riscos incalculáveis” ou “riscos excluídos”, ou seja, assim como os desastres naturais, seria geralmente excluída da cobertura. Isso porque o seguro tem como objetivo cobrir unicamente riscos previsíveis e é com base nessa previsibilidade que é possível precificar o seguro e cobrar um prêmio.
Entretanto, diante da comoção causada no mundo inteiro pela velocidade que esse vírus atacou e destruiu famílias, grande parte das seguradoras, por mera liberalidade, decidiram incluir em suas coberturas situação advindas da contaminação pelo coronavírus. Exemplo dessas seguradoras são Itaú Seguros, Zurich Santander e BB Seguros[4].
Confirmada a cobertura, na medida em que, aos poucos, as competições esportivas vão sendo retomadas em todo o país, os clubes, federações e confederações, precisam ter consciência de que, numa eventual contaminação do atleta pelo coronavirus, em que haja a necessidade de seu afastamento por um determinado período, o seguro seria a melhor forma desta entidade não sofrer com eventuais prejuízos financeiros advindos da inatividade do empregado.
Mas este não é o único problema. É sabido que essa doença, provocada pelo vírus COVID-19, pode causar inúmeros e sérios sintomas ao portador, podendo, inclusive, na pior das consequências, levar a pessoa ao óbito. E, ainda que seja notório que o atleta possua uma condição física privilegiada perante os demais cidadãos e, portanto, mais resistentes à infecções, a verdade é que, como qualquer outro ser humano, eles não são imunes às doenças ou contaminações. Portando, sendo o atleta afetado pela pior das consequências da doença, a indenização a ser paga pela entidade aos seus familiares poderá superar em muito o mínimo estipulado pela Lei Pelé.
Aliás, já são diversos os casos de contaminação de atletas pelo mundo em meio a pandemia e a retomada parcial das atividades esportivas, fato que preocupa ainda mais. Sobre o assunto, inclusive, os especialistas Dr. Paulo M. Schmitt e Fernando Marinho Mezzadri teceram importantes considerações no “Recomendações e Orientações Gerais para o Esporte Brasileiro frente à COVID-19”[5], valendo citar dois pontos do trabalho, o primeiro onde aponta que os atletas podem ser particularmente vulneráveis à sintomas sérios da COVID-19 (P.56) e o segundo são os casos de contaminação no meio do esporte, dando como um dos exemplos o Clube de Regatas Vasco da Gama, que teve 16 atletas contaminados (P.62).
Porém, o fato de a lei obrigar o clube na aquisição do seguro mas não penalizar aquele que não contrata o seguro, justamente sendo esse um dos maiores motivos pela não contratação por boa parte dos clubes brasileiros (pois como já dizia o mestre Álvaro Melo Filho: “norma sem sanção é mera sugestão”[6]), provoca ainda mais insegurança para a maioria dos atletas atuantes no Brasil, principalmente aqueles que sabem não possuir essa garantia no caso de serem obrigados a se afastar de suas atividade por uma eventual contaminação.
A grande parte desses atletas seriam obrigados a se socorrer à Previdência Social, buscando um benefício previdenciário que talvez não reflita a mesma condição que possuía enquanto empregado do clube. Podendo ainda ser levado em consideração o fato de que o atleta, mesmo recuperado da doença, pela ausência em treinos específicos, estaria em desvantagem, física e tecnicamente, perante seus colegas, o que poderia acarretar, ainda, sua dispensa, razão pela qual, a indenização mínima, correspondente ao salário anual, garantiria sobrevivência equivalente por pelo menos esse período, ainda que não pudesse atuar e concorrer no mesmo nível de antes da contaminação.
Obviamente que, não podemos nos olvidar do fato de que, ainda que a lei não determine pena àquela entidade que não contrate o seguro ao atleta, na ocorrência de infortúnio vinculado à atividade nossa jurisprudência tem sido unanime no sentido de impor ao clube, federação ou confederação, que não tenha contratado o seguro mencionado, o dever de indenizar o atleta nos termos da Lei Pelé.
Cita-se aqui, dois julgados, em processos movidos contra o Vila Nova (GO) e Fluminense (RJ), respectivamente, em que os clubes foram condenados à indenizar o atleta que sofreu acidente relacionado à atividade e não tinha a contratação do seguro previsto na lei:
EMENTA: ATLETA PROFISSIONAL. ART. 45 DA LEI 9.615/98. INDENIZAÇÃO SUBSTITUTIVA PELA NÃO CONTRATAÇÃO DO SEGURO DESPORTIVO. VALOR MÍNIMO DA INDENIZAÇÃO. OBSERVÂNCIA DO §1º DO ART. 45 DA LEI 9.615/98. O empregador de atleta profissional, obrigatoriamente, deve incluí-lo em seguro contra acidentes pessoais vinculados à atividade desportiva, nos termos do art. 45 da Lei 9.615/1998. Evidente que a lei não previu um seguro qualquer, mas um seguro especial, cuja cobertura, sustentada na prática da atividade desportiva, cobrisse os riscos inerentes ao desporto profissional. Aliás, não se pode olvidar que o atleta profissional depende de sua aptidão física. Logo, a indenização decorrente deste seguro visa amenizar o futuro impedimento ou a limitação ao trabalho decorrente dos riscos a que os atletas se sujeitam durante a pratica desportiva profissional. Neste aspecto, a negligência, in casu, do reclamado, ao deixar de contratar o seguro legal em favor do autor, aliado aos acidentes de trabalho por ele sofridos durante o desporto profissional, resultou no dever de o Réu reparar os danos pertinentes, na forma de uma indenização substitutiva que, por força do §1º do art. 45 da Lei 9.615/98, deve corresponder, pelo menos, à remuneração anual do atleta, não podendo seu valor ser proporcional ao tempo de afastamento do profissional, à mingua de previsão legal nesse sentido.
DECISÃO: A Oitava Turma, à unanimidade, conheceu do recurso ordinário; no mérito, sem divergência, deu-lhe provimento para determinar que o valor de cada indenização substitutiva ao seguro obrigatório corresponda à remuneração anual do autor, incluindo o 13º salário, conforme se apurar em liquidação de sentença, não se limitando sua apuração aos períodos de afastamento obreiro; acresceu à condenação o valor de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), com custas adicionais, pelo Réu, no importe de R$3.000,00 (três mil reais).(TRT3 – 8ª Turma – 0011092-68.2014.5.03.0165 (RO) Rel. Des. MÁRCIO RIBEIRO DO VALLE – 06/03/2015)
EMBARGOS. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. “SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO”. NÃO CONTRATAÇÃO. INDENIZAÇÃO. Nos termos do art. 45 da Lei nº 9.615/98, as entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de acidentes de trabalho para atletas profissionais a ela vinculados, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos. E, segundo o parágrafo primeiro, a importância segurada deve garantir direito a uma indenização mínima correspondente ao valor total anual da remuneração ajustada no caso dos atletas profissionais. À míngua de previsão de sanção específica para o caso de descumprimento da obrigação, resolve-se a controvérsia à luz da responsabilidade civil, nas formas dos arts. 186, 247 e 927 do Código Civil.
Comprovados o dano e o nexo de causalidade – lesão física durante uma partida de futebol sem a oportunidade de acionar seguro ante a não celebração do contrato pela empregadora-, e sendo a atividade de risco, conforme o próprio art. 45 em exame já antecipa, resta patente a obrigação de indenizar. No tocante ao valor da indenização, o critério estabelecido pela lei – indenização mínima correspondente ao valor anual da remuneração ajustada no caso dos atletas profissionais – encontra razão de ser no virtual desamparo ao atleta profissional jogador de futebol que tenha a carreira parcial ou totalmente interrompida em virtude de acidente do trabalho.
Embargos de que se conhece e a que se nega provimento. (TST – 2ª Turma – E-ED-RR-168500-29.2006.5.01.0046 – Rel. Min. MÁRCIO EURICO VITRAL AMARO – 06/04/2017)
Conclui-se, portanto, que, a contratação do seguro nunca foi tão importante, seja por segurança da própria entidade, em termos financeiros, mas também e, principalmente, para o atleta, exposto diariamente aos riscos inerentes à sua atividade somados agora ao da contaminação da doença. E é importante lembrar ao atleta, ainda que a não contratação do seguro por parte da entidade possa ser levada para discussão junto ao judiciário, inclusive, com grande probabilidade de êxito para o atleta no recebimento de uma indenização, a espera até um provimento judicial do pedido pode, neste intervalo de tempo, acarretar prejuízos irreversíveis ao esportista.
……….
Thiago Francisco de Oliveira é dvogado, especialista em Direito Desportivo, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo/IBDD.
[1] As ações foram ajuizadas pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6342), pela Rede Sustentabilidade (ADI 6344), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (ADI 6346), pelo Partido Socialista Brasileiro (ADI 6348), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conjuntamente (ADI 6349), pelo partido Solidariedade (ADI 6352) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (ADI 6354)
[2] Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos. (…)
6º O contrato de formação desportiva a que se refere o § 4o deste artigo deverá incluir obrigatoriamente: (…)
III – direitos e deveres das partes contratantes, inclusive garantia de seguro de vida e de acidentes pessoais para cobrir as atividades do atleta contratado;
[3] Art. 45. As entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos. (…)
§2º A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo.
Art. 82-B. São obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, com o objetivo de cobrir os riscos a que os atletas estão sujeitos:
I – as entidades de prática desportiva que mantenham equipes de treinamento de atletas não profissionais de modalidades olímpicas ou paraolímpicas, para os atletas não profissionais a ela vinculados;
II – as entidades de administração do desporto nacionais, no caso de:
a) competições ou partidas internacionais em que atletas não profissionais de modalidades olímpicas ou paraolímpicas estejam representando selecionado nacional;
b) competições nacionais de modalidades olímpicas ou paraolímpicas, para os atletas não profissionais não vinculados a nenhuma entidade de prática desportiva.(…)
§2º A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo.
[4] https://exame.com/seu-dinheiro/seguradoras-flexibilizam-e-passam-a-cobrir-morte-por-coronavirus/
[5] http://www.inteligenciaesportiva.ufpr.br/site/wp-content/uploads/2020/06/ESPORTE-X-COVID-19.pdf
[6] Nova Lei Pelé – Avanços e Impactos – Ed. Maquinaria – 2011 – P. 218.