Por Daniel Falcão, Camilo Jreige, Felipe Paulino Ferreira e Leonardo Franco Belloti
As medidas de combate tomadas para a contenção do avanço da pandemia do Covid-19 trouxeram à lume discussões relevantes na seara do Direito Constitucional e Desportivo no que tange a adequação entre os preceitos constitucionais e as ações tomadas pelos chefes do Poder Executivo. Os debates acerca da volta das competições esportivas em meio ao atual cenário não passam incólume diante desse tema, principalmente no que se refere a uma possível ingerência dos governantes sobre as entidades e suas atividades, apoiando-se no novo coronavírus para gerirem uma interferência indevida nessa seara.
Por sua popularidade e relevância social, as organizações desportivas sempre chamaram a atenção dos entes públicos, que, em defesa de suas ideias e interesses políticos, muitas vezes optaram por intervir neste segmento. Em outras palavras, a tentativa de intervenção nas entidades desportivas sempre se fez presente no país, porém, o que ocorre agora, são estas ações travestidas como necessárias e legais em decorrência da situação excepcional vivenciada.
No estado de São Paulo, a situação é melhor observada diante da postura ativa adotada pelo governador do estado de São Paulo, João Doria, nas discussões sobre a volta do Campeonato Paulista de Futebol. Até o anúncio de que a competição seria retomada em breve, mais especificamente em 22 de julho (com a realização das partidas condicionada a sede em cidades que atendam a determinados requisitos relacionados à saúde pública), Doria havia sido bastante contundente em suas ao ponto de afirmar, em entrevista coletiva concedida no último dia 6, que os clubes de São Paulo não poderiam participar da disputa do Campeonato Brasileiro até o término do Campeonato Paulista.[1]
Entretanto, a proatividade do governador na gestão do retorno do futebol merece ser problematizada, não com relação ao mérito ou razoabilidade de suas medidas, mas sim, sob a perspectiva de que transcende os ditames legais. Nisso, o maior problema de iniciativas como a que impõe condicionante à participação de clubes paulistas no Campeonato Brasileiro se consubstancia na ausência da devida e detida observância do que constitucionalmente positivado, com maior atenção ao que disposto no artigo 217, inciso I, da Constituição Federal.
O mencionado artigo consagra de maneira expressa a autonomia das entidades desportivas dirigentes, justamente com o intuito de evitar intervenções políticas, pressões econômicas e ingerências legislativas[2].
A temática, inclusive, não é estranha ao Supremo Tribunal Federal, que corrobora o entendimento de que a condição de autonomia desportiva conferida pelo artigo 217, I, da Constituição, possui o fito de “assegurar e incentivar a participação efetiva das referidas associações no âmbito do desporto nacional”[3], conferindo-lhes um grau de autonomia que “propicia especial prerrogativa jurídica consistente no prevalecimento de sua própria vontade, em tema de sua estrutura organizacional e de seu interno funcionamento”[4].
Tal autonomia, é verdade, não significa plena liberdade para que as entidades desportivas ajam da maneira que bem entenderem. Ela deve se atentar aos limites do respeito à ordem pública, às normas jurídicas fundamentais e ao direito de personalidade dos associados[5].
No fim das contas, o consectário lógico do previsto na Constituição é o de que a lex sportiva vincula-se ao ordenamento jurídico de maneira autônoma, apesar de ainda assim possuir dependência com os demais ramos do Direito. Por essa razão fala-se em autonomia das entidades desportivas, não em independência.[6]
Dessa forma, a autonomia é compreendida como a margem de liberdade que os dirigentes das entidades desportivas têm para organizar suas atividades, o que inclui determinar as regras e gestão das competições as quais participem. No entanto, essa feição não deve ser exercitada de maneira ilimitada, tanto que a Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé) se atentou para essa questão ao diferenciar a independência das ligas — consagrada em seu artigo 20, §5° — com a autonomia dos órgãos judicantes — artigo 52, caput – a fim de deixar claro que a autonomia das entidades esportivas se dá em relação a sua organização, que está condicionada aos ditames gerais do ordenamento jurídico brasileiro.
Basicamente, as entidades esportivas não são livres para tomar as atitudes que bem entenderem ou se organizarem à margem da lei. A autonomia, em realidade, compreende o direito e a garantia para que desempenhem suas atividades do modo que lhe for mais conveniente, não cabendo, portanto, a interferência estatal nessas matérias tidas, a grosso modo, como “exclusivamente esportivas”. Por exemplo, se um determinado clube decide disputar uma competição e cumpre os requisitos para disputá-la, como é o caso dos times paulistas no Campeonato Brasileiro, não cabe ao Poder Público condicionar a participação deles nessa disputa.
Seja como for, o cerne da questão posta a desate gravita em torno da extrapolação, por parte de entes públicos, na interferência da autonomia das entidades desportivas. Apesar de existirem limitações à sua liberdade, as tentativas de intervenções feitas costumam passar ao largo de serem para preservar os limites elencados.
Não é preciso ir muito longe para resgatar exemplos de tais práticas. Em 2015, por exemplo, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 13.155 (conversão da MPV 671) que, ao acrescentar dispositivos ao Estatuto do Torcedor, condicionou a comprovação de regularidade fiscal e trabalhista dos times para participação em campeonatos. Em outras palavras, o Legislativo criou uma regra que influenciava na organização estrutural das entidades desportivas.
Instado a se manifestar a respeito da legalidade do mencionado dispositivo, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI n. 5450/DF[7], declarou a inconstitucionalidade parcial das alterações promovidas no Estatuto do Torcedor na extensão da obrigatoriedade de comprovação de regularidade fiscal e trabalhista para participação em campeonatos.
A ratio decidendi trouxe uma ponderação entre os efeitos que a mudança causaria. Na ocasião, entendeu-se que existia uma “grave desproporcionalidade na consequência prevista na lei para o comportamento do clube”[8], uma vez que “o decesso à divisão inferior restringe a própria atividade desportiva exercida pelo clube profissional”[9].
Apesar de ter concluído no caminho que parece ser mais adequado — o da inconstitucionalidade do dispositivo —, a fundamentação não se pautou na violação ao artigo 217, I, da Constituição. Na verdade, ela inclusive afastou a violação a tal artigo[10] e se pautou exclusivamente nos impactos que a mudança acarretaria para os clubes, fazendo um exercício de ponderação entre proporcionalidade e razoabilidade.
Ora, é preciso cautela ao afirmar que as interferências estatais dependem meramente de um crivo de razoabilidade e proporcionalidade, ainda mais em casos como esse. Se as intervenções estatais na autonomia desportiva dependessem meramente dessa ponderação de princípios, nem sequer seria necessária a previsão constitucional de autonomia das entidades esportivas.
Nos moldes como a jurisprudência tem se posicionado, seria adequado dizer que a legalidade de uma norma, por mais que interfira na autonomia desportiva, depende apenas de uma análise consequencialista entre impacto e extensão do impacto.
E talvez a consequência mais perigosa de decisões como essa do STF seja a de abrir precedente para que outros entes públicos passem a interferir de maneira cada vez mais constante na autonomia desportiva, uma vez que a intervenção só seria vetada se extrapolasse os limites do razoável e do proporcional.
Como uma espécie de efeito dominó, a indevida interpretação jurisprudencial da autonomia desportiva abriria margem para que representantes do estado se sentissem à vontade para propor interferências diretas na organização do desporto, como ocorreu com o governador João Doria dando a entender que pretendia interferir no calendário dos clubes paulistas de seu modo, mesmo que o constituinte, com a positivação do artigo 217, I, da Constituição, tenha buscado justamente evitar que isso ocorresse.
Naturalmente devemos nos indagar: quem definirá os limites do razoável e do proporcional? É uma linha muito tênue e tal análise depende de forte juízo de valor. Justamente para evitar isso, a discussão não deve gravitar em torno dessa ponderação, mas sim da observância da autonomia desportiva.
Talvez seja diante de sucessivas interpretações equivocadas como a apresentada que fez com que Álvaro de Melo Filho aduzisse que o princípio da autonomia desportiva tem sido “reiteradamente malferido pela legislação, incompreendido pela doutrina e violentado pela jurisprudência”[11].
E o cenário fica ainda mais vilipendiado quando as interferências estatais passam a se mascarar no discurso de excepcionalidade gerado pela pandemia. Nesse norte, possíveis medidas – como a citada pelo governador do estado de São Paulo – parecem extrapolar a autonomia desportiva consagrada no mencionado artigo constitucional, especialmente quando o seu discurso se reveste da carta branca da excepcionalidade.
Parece ser mais razoável a existência de um diálogo entre a Confederação Brasileira de Futebol e a Federação Paulista de modo a encontrar um calendário viável e compatível para as competições, como aparentemente ocorreu com a volta do Campeonato Paulista ainda no mês de julho (anteriormente ao Campeonato Brasileiro, como pretendia o Governador do estado de São Paulo.
Não podem as competições, todavia, em decorrência de uma interpretação não adequada da autonomia desportiva, ficarem reféns de interferências de entes públicos — que, diga-se de passagem, não são necessárias, tampouco possíveis (ainda que frequentemente sejam tentadas).
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[1] https://globoesporte.globo.com/sp/futebol/noticia/noticias-paulista-brasileiro-doria.ghtml?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_content=Esporte&utm_campaign=globoesportecom
[2] FILHO, Álvaro Melo. Da Autonomia Desportiva no Contexto Constitucional. Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC: 2006, p. 34.
[3] STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3045/DF, Rel. Min. Celso de Mello. DJe 01/06/2007.
[4] Ibid.
[5] FILHO, Álvaro Melo. Da Autonomia Desportiva no Contexto Constitucional. Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC: 2006, p. 34.
[6] No mesmo sentido entende o STF: “Sobre a autonomia das entidades (art. 217, I, da CF), registro o entendimento da CORTE de que não se trata de soberania ou independência, nem se coloca acima do poder de regramento pela legislação competente.” ADI n. 5450/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes. DJe 16/04/2020,
[7] STF. ADI n. 5450/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes. DJe 16/04/2020,
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] Como visto na decisão que afastou o artigo 217, I, e pautou-se na ausência de proporcionalidade e razoabilidade do ato: “Por todo o exposto, afasto as alegações de que os dispositivos questionados violariam a (…) autonomia das entidades desportivas (art. 217, I, da CF), pois as exigências e condicionantes estipuladas nesses dispositivos são contrapartidas razoáveis para o tratamento benéfico que a Lei 13.155/2015 conferiu a clubes e entidades desportivas em grave situação financeira.”
[11] FILHO, Álvaro Melo. Da Autonomia Desportiva no Contexto Constitucional. Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC: 2006, p. 39.
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Daniel Falcão é advogado e cientista social, doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Camilo Jreige é graduando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).
Felipe Paulino Ferreira é graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).
Leonardo Franco Belloti é advogado. Mestrando em Direito Desportivo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).