O pedido de impugnação de partida solicitado pelo Vasco tem fomentado debates acalorados sobre o VAR, sobre “erro de fato X erro de direito”, sobre interferência do tribunal, entre outros. Debatemos aqui no Lei em Campo, nos programas de rádio e TV, nas “lives” e nas redes sociais – a praça pública dos tempos modernos. Faz duas semanas que o assunto vem sido debatido – uma eternidade na Justiça Desportiva – e o processo ainda nem foi recebido pelo Presidente do STJD.
Ora, se o processo na justiça desportiva tem como um dos princípios a celeridade[1], fundamental ao bom andamento do esporte e da competição, por que o pedido do Vasco tem demorado tanto para ser recebido, analisado e julgado?
Permita-me um passo atrás para fundamentar o questionamento desta coluna de hoje e expor o procedimento da impugnação de partida previsto no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).
Disciplinado a partir do artigo 84 do CBJD, o pedido de impugnação é dirigido ao Presidente do STJD. O código exige alguns critérios para que o pedido seja recebido. Estes critérios funcionam como um filtro que deve ser utilizado pelo Presidente do STJD para que somente aqueles casos que cumprem tais critérios sejam analisados pelo Pleno.
Este é um ponto importante: cabe ao Pleno do STJD o julgamento do mérito do pedido de impugnação, por força do artigo 25, inciso I, alínea “h” do CBJD. Ao Presidente cabe apenas realizar o chamado juízo de admissibilidade, ou seja, o “filtro”.
Estes são estes critérios dos quais deve o Presidente fazer uso para filtrar os pedidos de impugnação de partida:
- O pedido deve ser dirigido ao Presidente, em duas vias, assinadas pelo impugnante ou por procurador com poderes especiais;
- O pedido deve estar acompanhado de documentos que comprovem os fatos alegados;
- O pedido deve estar acompanhado da prova do pagamento dos emolumentos (custas do processo);
- O pedido deve ser limitado às hipóteses de modificação de resultado ou anulação de partida;
- O pedido deve vir de parte legítima; são partes legítimas as que disputaram a partida e/ou as que tenham imediato e comprovado interesse no seu resultado (desde que participantes da mesma competição);
- O pedido não pode ser feito por meio de petição inepta[2];
- O pedido não pode ser feito sem condição exigida pelo código;
- O pedido não pode ser baseado em caso de inclusão de atleta irregular;
- O pedido deve ser protocolado em até 2 dias depois da disponibilização da súmula da partida (a súmula é disponibilizada em até 4 horas do término da partida, por força do artigo 11 do Estatuto do Torcedor).
Observa-se que não há análise de mérito nos requisitos acima; nem poderia, já que a análise do mérito é feita pelo Pleno do Tribunal. Cumpridos os requisitos, o Presidente recebe a impugnação e dá início ao procedimento com a imediata comunicação ao presidente da entidade de administração do desporto (no caso, a CBF) para que esta não homologue o resultado da partida até a decisão final da impugnação, como claramente prevê o §3º do artigo 84 do CBJD[3].
Foi o que ocorreu em 2019 quando o Botafogo pediu a impugnação da partida contra o Palmeiras pela 6ª rodada do Campeonato Brasileiro daquele ano, coincidentemente também sustentado por um suposto uso indevido do VAR. Este foi o parecer do então Presidente do STJD[4]:
“O pedido de impugnação está corretamente dirigido ao Presidente do STJD, protocolado no prazo legal (artigo 85 do CBJD) e assinado por procurador com poderes especiais, acompanhado de provas e com pagamento dos emolumentos, com pedido previsto no inciso II do artigo 84 do CBJD.
A legitimidade está comprovada, pois trata-se de pessoa jurídica que está participando do campeonato e disputou a partida ora impugnada, restando portando comprovado seu interesse.
Sem fazer qualquer juízo de valor quanto ao mérito da controvérsia, fazendo uma análise preliminar e perfunctória quanto aos elementos de fato e de direito expostos na petição inicial, verifica-se que os requisitos extrínsecos e intrínsecos para processamento da medida foram cumpridos pelo impugnante. Diante disso, recebo a presente impugnação e determino que se dê imediato conhecimento da instauração do processo ao Presidente da Confederação Brasileira de Futebol, para que não homologue o resultado da partida realizada no dia 25/05/2019, pelo Campeonato Brasileiro Série A 2019, entre Botafogo e Palmeiras“
Intime-se a Sociedade Esportiva Palmeiras, para que no prazo de 02 (dois) dias, apresente sua manifestação.
Após juntada da manifestação da Impugnada, intime-se a D. Procuradoria para que no prazo de 02 (dois) dias, apresente sua manifestação (art. 86 do CBJD).
Decorrido o prazo, sorteie-se Relator e inclua-se o feito em pauta para julgamento com prioridade na próxima sessão a ser realizada pelo Pleno do STJD do Futebol”.
Ou seja, no caso acima o Presidente do STJD:
- analisou os critérios listados nesta coluna;
- recebeu a impugnação;
- determinou a comunicação à CBF para que esta não homologasse o resultado;
Veja que a parte contrária – no caso, o Palmeiras – só foi intimada a se manifestar depois do recebimento da impugnação e a suspensão do resultado da partida, assim como determinado pelo artigo 86 do CBJD[5].
No caso atual do pedido do Vasco o procedimento tem se desenvolvido de forma distinta ao que determina do CBJD.
Vejamos. No dia 19 de fevereiro – 5 dias após a realização da partida – o Presidente do STJD intimou a CBF para que a entidade apresentasse a gravação dos vídeos e do áudio do VAR da partida em questão. Até aqui a medida se justifica, já que um dos requisitos que listamos no início deste artigo é justamente a apresentação de documentos que comprovem os fatos alegados e, ao que consta, o Vasco solicitou as gravações à CBF e não foi atendido[6]. Além disso, a medida é positiva, já que reflete o cuidado que se deve ter ao lidar com casos de impugnação de partida.
Ocorre que a decisão do Presidente não se limitou à esta medida. O Presidente não recebeu a impugnação – portanto não determinou que a CBF deixasse de homologar o resultado da partida – mas abriu prazo para manifestação das partes. Em suas palavras:
Pelo exposto é que (a) defiro o requerimento incidental formulado, determinando à Secretaria que Oficie a CBF, para que, com urgência, faça juntar a estes autos a gravação do V.A.R., tanto dos áudios quanto do vídeo, de todo o período relacionado à partida em questão; inclusive dos momentos que antecedem a realização da partida e até o encerramento; (b) sobresto o juízo de admissibilidade deste procedimento para o momento posterior à juntada da prova e manifestação das partes.
Com a juntada das provas, dê-se vista ao Clube Requerente, para sobre elas se manifestar, no prazo de 2 dias.
Cite-se o S. C. Internacional e a CBF, para em querendo, apresentar suas manifestações, no prazo legal, podendo, outrossim, em querendo, manifestarem-se também, sobre as provas que serão juntadas aos autos.
Ciência à D. PGJD, inclusive para ciência e adoção das medidas que reputar cabíveis à luz da conduta atribuída ao Árbitro da Partida
No dia 23 de fevereiro, o STJD recebeu da CBF os vídeos e áudios do VAR. Neste momento foi cumprido o requisito de “apresentação dos documentos que comprovem os fatos alegados”, não havendo algo que impedisse, portanto, a análise sobre a admissibilidade do pedido do Vasco.
Contudo, a determinação do Presidente foi a de abrir prazo para o Vasco se pronunciar sobre o material da CBF e sobre a manifestação do Internacional[7].
Até o presente momento o Presidente não decidiu sobre o recebimento ou não do pedido do Vasco. Há, no caso em tela, uma inversão da ordem dos procedimentos determinados pelo CBJD, numa análise do mérito da questão que deveria ser feita pelo Pleno do STJD.
Esta inversão na ordem dos procedimentos prejudica a celeridade que deve estar presente nos processos da justiça desportiva e poderia ser extremamente prejudicial à competição caso o Internacional fosse consagrado campeão do Campeonato Brasileiro de 2020. Correu-se riscos altíssimos, já que a decisão de abrir prazo para o Vasco foi do dia 23 de fevereiro e a última rodada do Campeonato Brasileiro ocorreu em 25 de fevereiro. E se fosse o Internacional o campeão e o Presidente viesse a admitir o processo de impugnação da partida contra o Vasco? A CBF teria que suspender a homologação do resultado da partida e estaríamos vivendo com um grande asterisco no Campeonato Brasileiro de 2020.
E ainda que a impugnação da partida não mais afete o campeão do Campeonato Brasileiro, o processo ainda pode afetar o rebaixamento para a série B (sendo Vasco e Fortaleza os diretamente afetados), a classificação geral e os consequentes pagamentos das premiações. Levando em conta todo o planejamento que os clubes precisam fazer para os campeonatos, aliado ao calendário apertado por conta da pandemia do COVID-19, a falta da celeridade neste processo tem suas consequências evidentes.
A prestação jurisdicional desportiva precisa ser célere, pelo bem do bem jurídico protegido pelos tribunais desportivos: o esporte e a competição desportiva.
……….
[1] “a celeridade é fundamental na Justiça Desportiva. As competições são rápidas e os julgamentos precisam, em regra, de uma solução antes do final dos campeonatos. Exemplo desta possibilidade é uma pena de perda de três pontos aplicada a um clube em um campeonato que já se encerrou. O princípio da celeridade está refletido em diversos pontos do CBJD, tais como: a previsão de que o pedido de vista não impede que o julgamento seja feito na mesma sessão (artigo 128, §1º); prazos exíguos, em regra de três dias (artigo 138); produção de efeitos da decisão independentemente de publicação (artigo 133), entre outros”. https://leiemcampo.com.br/os-principios-da-justica-desportiva/
[2] Considera-se inepta a petição inicial quando:
I – lhe faltar pedido ou causa de pedir;
II – o pedido for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o pedido genérico;
III – da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão;
IV – contiver pedidos incompatíveis entre si.
[3] “O Presidente do Tribunal (STJD ou TJD), ao receber a impugnação, dará imediato conhecimento da instauração do processo ao Presidente da respectiva entidade de administração do desporto, para que não homologue o resultado da partida, prova ou equivalente até a decisão final da impugnação.”
[4] https://www.stjd.org.br/noticias/presidente-recebe-impugnacao-do-botafogo
[5] Art. 86. Recebida a impugnação, dar-se-á vista à parte contrária, pelo prazo de dois dias, para pronunciar-se, indo o processo, em seguida, à Procuradoria, por igual prazo, para manifestação.
[6] https://www.stjd.org.br/noticias/impugnacao-presidente-determina-juntada-de-provas-e-manifestacoes
[7] https://www.stjd.org.br/noticias/stjd-recebe-manifestacao-do-inter-e-da-cbf