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A Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho acerca da Responsabilidade da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) pelas dívidas do Clube Associativo

  1. Introdução

Muito já se escreveu acerca das Sociedades Anônimas do Futebol no Brasil e as expectativas geradas pela Lei n.º 14.193/2021 no tocante a possibilidade de clubes poderem contar com uma legislação que pavimentasse o caminho para a profissionalização. Muitos clubes aderiram a essa nova modalidade de entidade de prática desportiva com exemplos de sucesso e outros nem tanto.

Nada obstante a previsão do legislador acerca das hipóteses de responsabilidade pelo adimplemento dos créditos devidos aos empregados, muito se especulou acerca de possíveis interpretações que poderiam ser conferidas pela Justiça do Trabalho.

Os Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª, 3ª, 5ª e 9ª Regiões[1] foram os primeiros a enfrentar esta questão. Finalmente o tema chegou no Tribunal Superior do Trabalho e as primeiras decisões começam a ser proferidas pela mais alta Corte Trabalhista do Brasil.

  1. Formas de Constituição da Sociedade Anônima do Futebol

A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) é uma realidade existente no ordenamento jurídico brasileiro desde 2021. Portanto, estamos diante de um modelo novo de entidade de prática desportiva, nada obstante a prévia existência de clubes empresa, com natureza jurídica própria.

A Lei n.º 14.193/2021, criou a Sociedade Anônima do Futebol e logo o seu art. 1º já traz a definição de SAF como sendo a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional, sujeita às regras específicas da lei e, subsidiariamente, às disposições da Lei nº 6.404/1976 (Lei das SA’s), e da Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé).

Importante destacar que de acordo com o art. 37 da LGE/2023 (Lei n.º 14.597/2023), a subseção que trata das contrapartidas na gestão desportiva não se aplica à Sociedade Anônima do Futebol, eis vez que esta é regida por lei própria já aqui mencionada. Todavia, o disposto na LGE/2023 se aplica à SAF, de forma subsidiária e naquilo que não haja conflito (art. 214 da Lei n.º 14.597/2023).

Para melhor compreensão da forma de constituição da SAF é imprescindível uma leitura atenta do art. 2º da Lei n.º 14.193/2021, que prevê, de maneira detalhada, que a Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída por três formas. À saber: 1) pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol; 2) pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol e 3) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.

Nas hipóteses 1 e 2 acima enumeradas, a SAF sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol e a SAF terá o direito de participar de campeonatos, copas ou torneios em substituição ao clube ou pessoa jurídica original, nas mesmas condições em que se encontravam no momento da sucessão, competindo às entidades de administração a devida substituição sem quaisquer prejuízos de ordem desportiva.

Além disso, na hipótese do item 2 acima destacado, os direitos e deveres decorrentes de relações, de qualquer natureza, estabelecidos com o clube, pessoa jurídica original e entidades de administração, inclusive direitos de participação em competições profissionais, bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol serão obrigatoriamente transferidos à SAF.

Outrossim, o clube ou pessoa jurídica original e a SAF deverão contratar, na data de constituição desta, a utilização e o pagamento de remuneração decorrente da exploração pela SAF de direitos de propriedade intelectual de titularidade do clube ou pessoa jurídica original.

Instrumento contratual estabelecerá se os bens e direitos serão transferidos à SAF em definitivo ou a termo.

A transferência dos direitos e do patrimônio para a SAF independe de autorização ou consentimento de credores ou partes interessadas, inclusive aqueles de natureza pública, salvo se disposto de modo diverso em contrato ou outro negócio jurídico.

Na hipótese de as instalações desportivas, como estádio, arena e centro de treinamento, não forem transferidas para a SAF, o clube ou pessoa jurídica original e a SAF deverão celebrar, na data de constituição desta, contrato no qual se estabelecerão as condições para utilização das instalações.

É importante ressaltar que o legislador brasileiro optou por elaborar uma lei exclusiva para o futebol, razão pela qual passou a ser facultada a possibilidade de constituição de uma SAF, ao contrário, por exemplo, do que ocorre em Portugal desde 2013, quando a Lei das Sociedades Desportivas passou a criar a possibilidade de constituição de sociedades anônimas desportivas (SAD), que já estavam reguladas na lei anterior e de sociedades desportivas unipessoais por quotas (SDUQ), nas quais o clube fundador deve ser necessariamente o sócio único.

Na Lei da SAF existe a possibilidade de constituição de sociedade anônima unipessoal, na medida em que o art. 2º, III estabelece que a SAF pode ser constituída pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento, o que revela a possibilidade desses três entes constituírem uma SAF, sem a exigência, na constituição, de duas ou mais pessoas. Além disso, esta possibilidade é estendida aos outros meios de constituição da SAF, como o da cisão, regulada pelo artigo 2º da lei, quando houver associado ou sócio único, respectivamente do clube ou do clube empresa fundadores, e o da subscrição de ações mediante a transferência de patrimônio do clube ou do clube empresa.

  1. Sucessão, Responsabilidade da SAF e a Jurisprudência do TST

A sucessão trabalhista está disciplinada nos arts. 10, 448 e 448-A da CLT e ocorre quando há transferência de titularidade de empresa ou estabelecimento. Segundo a regra geral, qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados. Outrossim, a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados e quando caracterizada a sucessão empresarial, as obrigações, ainda que contraídas na época do sucedido, serão de responsabilidade do sucessor.

A questão da sucessão trabalhista desportiva foi bem definida na Lei nº 14.193/2021 e de acordo com o artigo 2º, a Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída de três formas: I – pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol; II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; ou III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.

Na terceira hipótese, não há que se falar em sucessão, na medida em que estaremos diante de um negócio originário.

Contudo, nas duas primeiras hipóteses, a SAF sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol e herdará a posição desportiva do clube com a prerrogativa de disputar as mesmas competições que aquele disputava, operando-se, portanto, uma cessão da posição desportiva com permissivo legal (Art. 2º, §, I e II da Lei n.º 14.193/2021).

Ocorre que as dívidas que eram do clube com este permanecem, não havendo que se falar em sucessão, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos na própria lei, principalmente no que diz respeito à administração e destinação da receita corrente do clube.

Tal conclusão é extraída da própria interpretação da Lei n.º 14.193/2021, na medida em que o artigo 9º é expresso ao estabelecer que a SAF não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º da Lei n.º 14.193/2021, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 do diploma em comento. Verbis:

Art. 10.  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:

I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;

II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

Desta forma, há critérios estabelecidos pela própria lei que demonstram que neste caso há responsabilidade exclusiva do sucedido, não sendo possível estabelecer a responsabilização do sucessor pelas dívidas trabalhistas pretéritas.

Portanto, a partir do momento em que houve a ruptura da prestação de serviços, não há que se falar em sucessão, razão pela qual, para a configuração da sucessão deverá haver a contemporaneidade na prestação de serviços. Outrossim, o clube executado é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da sociedade anônima do futebol.

Decisão importante foi proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho em caso envolvendo o Cruzeiro Esporte Clube (SAF) e Cruzeiro Esporte Clube (em Recuperação Judicial).

Nos autos da Tutela Provisória de Urgência ajuizada incidentalmente ao processo nº 10221-69.2023.5.03.0182, foi deferida medida liminar para concessão de efeito suspensivo ao recurso do Cruzeiro (SAF) para suspender a execução que lhe foi direcionada.

No caso em comento, a decisão bem fundamentada do ilustre relator, Desembargador Convocado Eduardo Pugliesi, demonstra que o Cruzeiro (Clube) estava em recuperação judicial, com plano aprovado e homologado, o que, na época o impossibilitou de efetuar o pagamento do crédito devido no processo principal, resultando no redirecionamento imediato da execução para o Cruzeiro (SAF), a ensejar o dano irreparável que deu sustento à medida interposta.

No recurso interposto pelo Cruzeiro (SAF), restou demonstrado que o TRT da 3ª Região entendeu pela Responsabilidade Solidária da SAF em relação a dívida pretérita contraída pelo clube, o que demonstra possível contrariedade com o disposto nos arts. 9º e 10 da Lei n.14.193/2021, fato este que será analisado em profundidade quando da análise meritória do processo principal.

Nos termos vazados na decisão proferida, foi afirmado o perigo da demora da concessão da medida, nos seguintes termos:

“Também constato presente o pressuposto do periculum in mora, considerando que a demora na decisão conclusiva do recurso submeterá a requerente à penhora de seus bens, sem que sequer haja sido discutido o mérito da controvérsia relativo à responsabilidade da requerente como devedora solidária ou coobrigada pelas dívidas do executado – CRUZEIRO ESPORTE CLUBE.”

Por fim, restou consignado que a continuidade dos efeitos determinados pela decisão regional, haveria potencial dificuldade de cumprimento das obrigações assumidas pelo Cruzeiro (SAF), a prejudicar o bom andamento das suas atividades.

Também existe outra decisão, da lavra do Ministro Alexandre Agra Belmonte, que concedeu efeito suspensivo na Tutela Cautelar 1000489-92.2023.5.00.0000, para afastar a responsabilidade da SAF no pagamento do valor de R$ 236.750,69, devido a antigo médico da equipe do Cruzeiro (Clube).

Em caso semelhante, o Ministro Sérgio Pinto Martins também concedeu efeito suspensivo, nos autos da Tutela Cautelar nº 1000174-30.2024.5.00.0000, também proposta pelo Cruzeiro Esporte Clube (SAF), na qual o TRT da 3ª Região havia reconhecido a responsabilidade solidária com base nas regras ordinárias que disciplinam a sucessão trabalhista no art. 10 e 448 d CLT.

Naquela decisão, restou consignado que o regramento específico que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol teve o inequívoco objetivo de atribuir tratamento diferenciado aos passivos das entidades de práticas desportivas, em especial os débitos decorrentes de obrigações trabalhistas e tributárias.

É importante ressaltar que este tratamento diferenciado atribuído pelo legislador não é gratuito, tendo em vista que há expressa disposição acerca das contrapartidas, conforme se infere do art. 10 da Lei nº 14.193/2021.

  1. Conclusão

A legislação desportiva é especial e estabelece um regramento específico acerca da responsabilidade do clube associativo e da sociedade anônima desportiva, razão pela qual não se aplica a legislação trabalhista nestas situações, mas apenas quando houver omissão na lei especial e desde que não seja manifesta contrariedade às especificidades do desporto.

A teor do disposto no art. 10 da Lei 14.193/2021, o clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da sociedade anônima do futebol, por meio de receitas próprias e também de receitas que lhe serão transferidas pela sociedade anônima de futebol.

Desta forma, quando o contrato de trabalho é encerrado antes da criação da SAF, não se opera a responsabilidade desta por sucessão trabalhista, tendo em vista o disposto no art. 10 da Lei 14.193/2021, já que o clube associativo é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da sociedade anônima do futebol.

Crédito imagem: TST/Divulgação

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[1] Respectivamente: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraná

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