Por Euler Márcio Lelis Barbosa
É inegável que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a partir de sua vigência, inovou a ordem constitucional existente, na medida em que atribuiu autonomia à Justiça Desportiva para solucionar os litígios responsáveis por influenciar diretamente o campo esportivo, como infrações às regras do jogo, à disciplina e à organização do desporto.
Referida inovação está esculpida no artigo 217, § 1º da Carta Magna:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
Nesse sentido, é de fácil percepção que a Justiça Desportiva se consubstancia em uma Justiça especializada utilizada como meio alternativo de solução de conflitos, tendo eficácia limitada, sendo necessária a criação de leis infraconstitucionais para sua concretização.
O entendimento acima mencionado é corroborado pelo autor Luiz Antônio Grisard, ao afirmar que “Justiça Desportiva é a instância não judiciária, constitucional e legalmente instituída para dirimir os conflitos de interesse que se situem dentro de seus limites de competência”.
Entretanto, em que pese sua regulamentação posterior, com o advento de leis que serviram para cumprir os princípios traçados pela Lei Maior, como a Lei Pelé (Lei 9.615/98), não se pode olvidar que a Constituição Federal/88, no artigo 5º, inciso XXXV, expressa que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Trata-se do Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, ou Livre Acesso à Justiça, segundo o qual todo cidadão tem direito a um processo justo, bem como a obtenção da tutela jurisdicional. É o direito de ingressar em juízo almejando o recebimento e processamento da pretensão, sem que o Poder Judiciário abdique de julgar a lide, segundo Elpídio Donizetti.
A partir das definições acima expostas, seria correto afirmar que estamos diante de uma afronta a princípios constitucionais? Seria a Justiça Desportiva responsável, por meio de sua aplicação, por tolher a garantia constitucional do cidadão de acessar o Poder Judiciário? Ouso afirmar que não.
Em que pese ser rara a busca da Justiça comum após exauridas todas as instâncias da Justiça Desportiva, a Carta Magna, no artigo 217, §§ 1º e 2º, não exclui a apreciação do Poder Judiciário de eventuais conflitos existentes no campo desportivo, dando até mesmo a oportunidade de se desviar a busca pela pretensão jurisdicional, caso a demanda não seja julgada pela Justiça especializada no prazo de 60 (sessenta) dias:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
Nesse sentido, não há que se falar em desrespeito à ordem constitucional. O que ocorre, na verdade, é uma mitigação do princípio constitucional da Inafastabilidade da Jurisdição. Ora, não há no texto legal impedimento para a busca da proteção jurisdicional frente ao Poder Judiciário. O que existe é uma relativização desse princípio, ao passo que se exige, em um primeiro momento, o esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva, para somente depois, por meio de uma via secundária e caso seja da vontade e necessidade do perseguidor do direito, buscar a Justiça comum.
Ademais, o legislador constituinte, ao inserir o artigo acima mencionado na Constituição de 1988, agiu acertadamente, vez que buscou uma convivência harmoniosa e simultânea com os princípios norteadores do nosso direito.
Isso porque, além de se exigir conhecimentos especializados e ser objeto de procedimentos específicos para a solução de conflitos ligados ao desporto, não seria crível imaginar que a Justiça comum, responsável por receber mais de 100 milhões de novos processos todos os anos das mais diferentes espécies, ficasse incumbida de discutir e julgar assuntos relacionados a temas cujas decisões hão de ser céleres, com o fim de atender à dinâmica existente nas mais variadas competições desportivas.
Sendo a Justiça Desportiva reconhecidamente um meio alternativo de solução de conflitos, não há como afastar o fato de que estamos tratando de um ramo do direito, ante a existência de normas, códigos, leis e tribunais específicos, mediante os quais são analisadas as lides relacionadas às competições desportivas.
Logo, todo e qualquer argumento no sentido de que essa Justiça especializada desrespeitaria princípios constitucionais deve ser repelido, eis que a Carta Magna, ao mesmo tempo em que atribui competência específica para a solução dos referidos litígios, possibilita a apreciação posterior por parte do Poder Judiciário, inexistindo, por óbvio, afronta ao acesso à Justiça.
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Euler Márcio Lelis Barbosa é advogado, graduado pela FDSM (Faculdade de Direito do Sul de Minas), pós-graduado em Direito Desportivo e Negócios no Esporte pelo CEDIN, membro do IBDD (Instituto Brasileiro de Direito Desportivo) e auditor da 1ª Comissão Disciplinar do Tribunal de Justiça Desportiva da FEMFA (Federação Mineira de Futebol Americano).