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A Justiça Desportiva e os limites da liberdade de expressão

No último dia 15 de outubro o Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (“STJD”) do futebol majorou a pena do técnico Paulo Autuori[1]. O técnico foi punido por declarações desrespeitosas aos membros da equipe de arbitragem durante entrevista coletiva veiculada em rede nacional. Este caso ilustra um debate interessante e constante, não apenas no meio desportivo: a liberdade de expressão é ofendida quando se pune declarações?

Resposta de advogado: depende. Longe de mim querer esgotar o debate; meu objetivo nesta coluna é levantar algumas bolas na área para que juntos tentemos empurrá-las para o gol.

Sou uma defensora da liberdade; não há democracia sem ela. Yeonmi Park, norte coreana e ativista de direitos humanos, afirma que levou apenas três gerações para transformar a Coreia do Norte no “1984” de George Orwell[2]. A liberdade é frágil e deve ser valorizada.

A liberdade de expressão é o direito de todo e qualquer indivíduo de manifestar seu pensamento, opinião, atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sem censura, como assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal. Mais que um direito, é um princípio. É o elemento fundamental das sociedades democráticas que se sustentam na liberdade e na igualdade.

Ocorre que, diferente de regras, onde há a subsunção dos fatos à norma, no caso dos princípios o que temos é a ponderação; além de encontrarem os fatos, eles colidem com outros princípios e precisam ser ponderados de acordo com o caso concreto para que se tenha uma solução da colisão. Sobre esta questão, nos ensina Norberto Bobbio[3]:

Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.

Assim, ainda que eu prefira tolerar pequenas ofensas a limitar a liberdade (para usar uma frase já famosa) é preciso reconhecer que, dada a possível colisão do princípio da liberdade de expressão com outros direitos fundamentais, tal princípio não é absoluto; ao mesmo tempo em que é importante resguardar a liberdade de expressão, também é necessário que se tenha uma proteção a outros direitos fundamentais igualmente resguardados constitucionalmente.

Não é algo simples de fazer. A teoria do filósofo Feinberg sobre o Princípio da Ofensa diz que para se evitar ofensas graves é necessário que haja certas proibições e limitações. Quando da aplicação do Princípio da Ofensa, é importante ponderar a gravidade da ofensa com a aceitabilidade da conduta ofensiva. Para o filósofo, o que determina a razoabilidade da conduta ofensiva é sua importância para o indivíduo que a proferiu e para a sociedade em geral, pela disponibilidade de locais menos ofensivos e se a ofensa é proferida propositalmente ou se poderia ser evitada.

Desta forma, apenas abusos extremos mereceriam resposta disciplinar. O artigo 258, §2º, II, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”), que sustenta a condenação do técnico Paulo Autuori, tipifica como punível a conduta de desrespeitar os membros da equipe de arbitragem, ou reclamar desrespeitosamente de suas decisões.

O sujeito passivo, ou seja, aquele que sofre com a conduta do infrator, não é a arbitragem. Nas palavras de João Zanforlin Shablatura[4], “o sujeito passivo é intangível, posto que a ordem e moralidade desportivas são os bens jurídicos protegidos; protege-se a competição dos atos de indisciplina e atitudes antiéticas”. Como eu também já havia trazido nesta seção[5], as práticas são puníveis pela justiça desportiva porque ameaçam o esporte e a competição esportiva, ainda que também atinjam bens jurídicos puníveis em outra esfera.

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no voto condutor que proferiu no Recurso Extraordinário n. 511.961/SP, observou que as restrições à liberdade de expressão em sede legal são admissíveis, desde que visem a promover outros valores e interesses constitucionais também relevantes e respeitem o princípio da proporcionalidade.

Como dito, estamos diante de um debate importante, que é realizado caso a caso. Relevante frisar, contudo, que não se pune alguém por mera opinião, visão de mundo ou humor; pune-se pelo abuso da liberdade de expressão, quando fere outros direitos fundamentais que merecem igual proteção.

O sentido da reclamação desrespeitosa contra as decisões do árbitro é o de ir além de mera crítica. A justiça desportiva, que por atribuição constitucional defende o esporte, punirá aquele que o ofender de forma grave.

……….

[1] https://www.stjd.org.br/noticias/pleno-majora-pena-de-paulo-autuori

[2]https://www.ted.com/talks/yeonmi_park_what_i_learned_about_freedom_after_escaping_north_korea/

[3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.24

[4] ZANFORLIN, João. In Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD: comentários à Resolução CNE 29, de 10.12.2009. Curitiba. Juruá. 2012. Pg. 322.

[5] https://leiemcampo.com.br/quem-xinga-o-arbitro-em-uma-partida-ofende-o-esporte/

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