A possibilidade de transformar um clube de futebol (associativo) em empresa (SAF) não é novidade. Lá nos anos 1990 – 93 mais precisamente – com a lei que ficou conhecida como Lei Zico, no governo Itamar, os clubes e federações tinham a opção (não era obrigatório) de se transformarem em ‘sociedades comerciais com finalidade desportiva’, ou seja, clube-empresa.
Logo depois em 1998 veio a Lei Pelé que substitui a Lei Zico e tornava obrigatório que clubes se transformassem em empresas estipulando um prazo de 2 anos para que isso acontecesse. Mas 2 anos depois, em 2000, antes do prazo encerrar, uma alteração na lei voltou a tornar opcional essa mudança e praticamente nenhum clube aderiu.
A lei continua existindo até hoje. Se um clube quisesse se transformar em empresa até o ano de 2020, já existia essa opção utilizando-se da Lei Zico que virou Lei Pelé. E por que praticamente nenhum clube de futebol fez essa mudança no seu regime jurídico? Por alguns motivos. Por exemplo, porque como clubes associativos eles possuem muita isenção tributária.
Outro motivo: porque a mudança precisava ser aprovada por ampla maioria dos sócios. O que significa dizer que metade mais 1 de TODOS os sócios tinham que concordar. Praticamente impossível. Pra termos uma ideia, na eleição do último presidente do Flamengo, dos mais de 7 mil sócios aptos a votar, somente 3 mil apareceram. Menos da metade. Imagina conseguir maioria de TODOS os sócios num universo que não aparece nem para escolher o seu próximo presidente
Lei da SAF
Com a Lei da SAF algumas “facilidades” foram criadas. A mais importante pra realidade dos grandes/médios clubes brasileiros hoje: o pagamento das dívidas. Foi criado um regime especial para que os clubes que aderirem à lei possam realizar o pagamento aos credores. Alongamento dos prazos (6 a 10 anos), plano de pagamento, exigência de percentual de receitas da SAF direcionado para o pagamento dessas dívidas. Um outro atrativo à SAF é a possibilidade de conseguir capital ($) novo com investidores (com a venda de partes da SAF).
Outra facilidade se comparada à lei anterior, é que a mudança pro novo regime é mais realista em relação à exigência de aprovação dos sócios. ‘Basta’ a maioria entre os sócios presentes à assembleia geral convocada para tratar do tema. Passamos então de uma maioria absoluta (metade + 1 entre TODOS os sócios), para uma maioria simples (metade +1 entre os PRESENTES na votação). Mas nem tudo são flores. Além das contrapartidas exigidas em lei (plano de pagamento dos credores, destinação de percentual de receitas e lucros para cumprimento desse plano de pagamento, por exemplo) fica claro que há a necessidade de modernizar as administrações dos clubes brasileiros. Governança (avaliar, direcionar, monitorar) e gestão (planejar, executar, controlar).
E aparentemente, pelo menos entre os grandes times que já iniciaram o processo das SAFs, ainda não está totalmente claro que essa mudança é muito necessária. É tudo muito novo e não temos exemplos de sucesso ou fracasso como aprendizado aqui no Brasil. Até por isso, cabe aqui uma boa dose de cautela. A criação de uma SAF com origem num clube associativo mal administrado, só significa que a SAF terá muito trabalho pela frente se também quiser ser mal administrada.
A Lei da SAF não é um fim, e sim um meio. Não basta criar um novo CNPJ (SAF) e achar que tudo a partir dali será viável, com as mesmas pessoas e práticas no comando. Os clubes precisam mudar suas administrações e isso significa mudar pessoas também, na grande maioria das vezes. Ter em seus departamentos os melhores possíveis do mercado. Tudo que o mundo empresarial e o mercado financeiro – investidores – já conhecem. Um ponto bem sensível nessa transformação é a mudança do comando do futebol nos clubes.
Quem vai ter o poder. Atrair um bom investidor significa dar a ele o comando da operação. Quem comanda o dinheiro, comanda o negócio. E o negócio aqui é o futebol. Um exemplo claro da sensibilidade desse ponto é o do Cruzeiro. Foi preciso alterar o percentual de venda do clube de 49%, como era a ideia inicial, para além de 51% pois o mercado demonstrou que não seria possível encontrar investidores num cenário de minoria na participação da SAF.
Resumindo, o clube queria um investidor mas pretendia ficar com o controle (51%) do negócio. Viu que essa realidade não existia. E então, os clubes brasileiros estão dispostos a perder esse poder? Quando digo ‘os clubes’ me refiro aos sócios/conselheiros, claro. Ouvindo e lendo alguns especialistas de mercado financeiro, advogados, agentes do futebol brasileiro e mundial, fica claro pra mim que existem 2 modelos mais evidentes para o surgimento das SAFs no país:
1º- Clubes formadores. Com o objetivo de formar pessoas e negociá-las (atletas, comissão técnica, executivos p.e). O objetivo principal do investidor não será necessariamente resultado esportivo. Clubes mais regionais, sem grande mídia, mas com boa estrutura e mercado deverão ser o alvo nesse cenário;
2º- Clubes desesperados. Estrangulados por dívidas impagáveis a curto e médio prazo. No segundo caso, passar por esse processo de transformação em SAF pode acabar gerando alguns problemas ou prejuízos: um deles é atrair o investidor “errado”. Pela necessidade urgente acabar atraindo investidores sem expertise, com objetivos diferentes do clube (revenda da SAF por exemplo), com origem do dinheiro contestável. Outro problema seria atrair menos dinheiro do que o clube poderia conseguir captar, por causa da pressa. É preciso que o torcedor entenda esses cenários para não achar que a propaganda de que vai ser tudo fácil, rápido e seguro, vendida pelo seus dirigentes é confiável.
Há questionamentos sobre a lei ainda, muitos do mercado investidor, que somente com o amadurecimento do mercado teremos respostas. Por isso, o ideal é buscar a informação além do seu clube, além das mídias oficiais dos clubes. Tem muita gente boa falando sobre o tema, os riscos, os benefícios, as dúvidas… Fernando Ferreira (Pluri Consultoria), Rodrigo Mattos (Uol), Cesar Grafietti, Claudio Pracownik, Alexandre Rangel, José Francisco Mansur, Marcos Motta, Pedro Trengrouse, Rodrigo Capelo (Grupo Globo), Carlos Eduardo Ambiel, todo o pessoal do Futebol S/A. Eles e outros têm escrito e falado muito sobre a SAF.
Torço para que a Lei da SAF seja um caminho que possa servir para uma nova realidade na administração dos clubes brasileiros. Já temos alguns exemplos de boa administração mesmo nos modelos atuais associativos (Flamengo, Palmeiras, Fortaleza) e isso deixa evidente que além da lei, o que realmente muda um clube é a mudança de mentalidade dos seus comandantes, sejam eles remunerados ou não, empresa ou clube social. Uma nova lei pode inaugurar uma nova era, mas é necessário que o ecossistema mude.
É preciso alterar a cultura no comando dos clubes e federações. E por último, além de exemplos de sucesso pontuais que a SAF pode trazer em um time ou outro, vai ser preciso que o futebol brasileiro se veja como um produto. Bons investidores vão olhar além do clube o ambiente onde esse clube habita.
Uma liga forte, um campeonato bem vendido, segurança jurídica, regulação, fair play financeiro, distribuição de receitas eficiente, competitividade. Hora também de olhar o bolo inteiro e não só a fatia que cada um vai comer.
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Texto de Délio Mendes