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A lei do mandante e os contratos em vigor: o problema da exclusividade

Eu posso apostar que esse não é o primeiro texto que você lê sobre a Lei do Mandante. Natural que assim seja; a Lei n° 14.205/21, que altera a Lei Pelé, modifica a lógica da cessão de direitos de transmissão no país, seguindo a tendência desenhada pela também famosa MP 984. É uma mudança significativa no mundo desportivo e é claro que gera muito debate.

Mas levando em consideração a remota possibilidade de este ser a primeira análise sobre a lei do mandante com a qual você se depara, eu recomendo a leitura de alguns textos prévios, que tratam do assunto de uma forma mais abrangente daquela em que eu pretendo utilizar nesta coluna.

Nesse sentido, recomendo os textos do Lei em Campo, que podem ser encontrados aqui e aqui. Também recomendo o excelente debate sobre o tema no canal Lei em Campo. Além é claro, recomendo a leitura do próprio texto da lei.

É que, como eu já sinalizei, quero usar meu espaço para abordar um aspecto específico da lei do mandante, portanto, deixarei vários outros aspectos de fora; não tratarei da questão de forma global.

Hoje volto minha atenção aos contratos já firmados antes da publicação da lei do mandante.

Um passinho atrás: a MP 984 também trazia a lógica de reconhecer o mandante como dono do direito de arena. Mas aquela norma nada dizia sobre os contratos que já haviam sido firmados antes da sua edição, seguindo a lógica anteriormente vigente.

Isso trouxe insegurança jurídica e o judiciário precisou se debruçar sobre essa questão para aparar as arestas deixadas pelo legislador.

Com o objetivo de dirimir essa insegurança, a nova lei incluiu o § 7º, que prevê que os contratos firmados antes da vigência da lei permanecerão regidos pela legislação em vigor na data em que foram celebrados.

Ou seja, nada muda em relação aos contratos já firmados; estes deverão ser cumpridos até o fim e deverão ser interpretados pela lógica anterior.

Certo. Mas a lei também trouxe uma previsão no § 8º no sentido de que os contratos firmados antes da lei do mandante “não podem atingir as entidades desportivas que não cederam seus direitos de transmissão para terceiros previamente à vigência deste artigo, as quais poderão cedê-los livremente”.

É dizer: os contratos assinados antes da lei do mandante não produzem efeitos sobre terceiros.

Fez bem o legislador ao prever essa questão, já que os contratos, em geral, não beneficiam nem prejudicam a terceiros; somente aqueles que figuram no contrato são por ele atingidos.

De acordo com a Prof. Dra. Maria Helena Diniz, “trata-se do princípio da relatividade do contrato, segundo o qual este não pode produzir efeito jurídico além dos contratantes que nele consentiram[1]. ”

A mesma autora vai admitir, contudo, que esse princípio não é absoluto, já que “a existência de um contrato produz efeitos no meio social, repercutindo em face de terceiros, que deles não podem escapar por força de lei ou da vontade entre as partes.

Estaríamos diante de uma relativização do princípio da relatividade do contrato?

Estaríamos diante do cenário no qual um contrato firmado antes da lei do mandante teria efeito sobre clubes que não figuram nesse contrato?

Pensemos em um exemplo que ilustre esse dilema: Time A e Time B firmaram contrato de 5 anos com a Emissora X para a transmissão do campeonato no início do ano de 2021, com exclusividade. O Time C não firmou contrato com a Emissora X.

Publicada a lei do mandante. Partida realizada entre Time A e Time B, transmissão exclusiva da Emissora X.

Partida entre Time A e Time C, sendo Time A o mandante. Transmissão exclusiva da Emissora X.

Partida Entre Time A e Time C, sendo Time C o mandante. De acordo com o § 8º da lei do mandante, o Time C está livre para comercializar os direitos de transmissão da partida.

Mas de acordo com o § 7º da lei do mandante, os direitos de transmissão da partida pertencem exclusivamente à Emissora X, já que esta havia firmado contrato com o Time A, cujo objeto eram TODAS as partidas do Time A, independentemente de este ser ou não o mandante. O § 7º claramente diz que o contrato firmado antes da lei do mandante deve ser regido pela legislação em vigor na data da sua celebração.

Quem, afinal, tem os direitos de transmissão da partida? Time C ou Emissora X?

Essa questão é dirimida pelo § 7º (aplica-se a legislação anterior) ou pelo § 8º (o contrato firmado entre Time A e Emissora X não produz efeito sobre o Time C)?

Assim como ocorreu quando da MP 984, o judiciário deverá se debruçar sobre essa questão.

Enquanto isso não acontece, eu desço do muro e entendo o Time C está livre para negociar a cessão dos direitos de transmissão das partidas nas quais é mandante, inclusive contra o Time A.

Explico. O objeto do contrato entre Time A e Emissora X eram os direitos de transmissão de todos os jogos do Time A, seja este mandante ou visitante. Como o contrato foi firmado antes da lei do mandante, o cumprimento do objeto desse contrato dependia da cessão dos direitos dos clubes com os quais o Time A jogaria.

Com a publicação da lei do mandante, parte do objeto do contrato entre Time A e Emissora X não existe mais. O Time A vendeu algo que, por força da lei do mandante, já não é mais dono. O Time A não consegue mais cumprir parte da sua obrigação do contrato.

A partir daí, pode-se dar a resolução do contrato por inexecução contratual involuntária. É o que acontece quando fatos alheios à vontade dos contratantes impossibilitam o cumprimento da obrigação por parte de um deles.

Opera-se, pois, de pleno direito, a resolução do contrato, sem ressarcimento de perdas e danos, já que perdas e danos são sanções aplicadas a quem age culposamente.

Nesses casos, caso uma das partes já tenha cumprido com a totalidade da sua obrigação, a outra parte deve ressarci-la. É dizer: se a Emissora X já tiver cumprido com a sua parte no contrato (já tiver realizado o pagamento dos direitos de transmissão), o Time A deve ressarcir a Emissora X (o dinheiro deve ser devolvido).

Citando novamente a Prof. Dra. Maria Helena Diniz, “deveras, com a extinção da obrigação de um não se pode exigir a contraprestação do outro, uma vez que a obrigação perdeu a sua causa, rompendo-se o vínculo de conexão entre as obrigações. Se porventura a outra parte já havia cumprido seu dever, o contraente exonerado será obrigado a restituir o que recebeu”.

Friso, contudo, que não é certo que os contratos devam ser necessariamente encerrados. Quando há a impossibilidade parcial do cumprimento da obrigação por uma das partes, é possível que a outra parte queira manter o contrato já que tem interesse na continuidade do negócio, ainda que de forma parcial.

É um debate interessante; vejamos como a doutrina desportiva e os tribunais se colocarão em relação ao tema.

……….

[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Volume 3: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 37ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

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