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A Lei Geral do Esporte e a eventual ampliação da competência da CNRD da CBF

A Lei Geral do Esporte – LGE (Lei n. 14.597/2023) foi sancionada em junho do ano passado com o escopo de unificar e organizar o sistema legal desportivo brasileiro em um grande e único arcabouço legal. Ocorre que tal objetivo resultou prejudicado por conta do excesso de vetos presidenciais, alguns dos quais começaram a ser derrubados em sessões legislativas recentes, fato que, aos poucos, possibilitou que a legislação pudesse, ainda que em parte, recuperar sua sistematicidade e perfil iniciais idealizados no Parlamento.

Dentre os vetos derrubados, despertou nossa atenção o retorno ao corpo da LGE do art. 27, parágrafo único, que agora admite expressamente o uso da arbitragem como meio para resolução de conflitos de natureza esportiva, no que se refere à disciplina e à prática esportiva, bem como para questões patrimoniais, inclusive de trabalho e emprego. Tal previsão reflete o perfil liberal da nova lei, que teve como um de seus alicerces fundantes a maior concretização da autonomia constitucional das entidades desportivas (art. 217, CF), no sentido no sentido do autogoverno, autoadministração e autonormatização das mesmas, o que lhes garantiria atuação livre (ou mínima) de intervenção estatal. Nesse sentido, clubes e Federações teriam autonomia, por ato de vontade, para implementar suas estruturas arbitrais privadas próprias para apreciar questões envolvendo competições e disciplina, como se renunciando à competência da Justiça Desportiva (que já representa uma exceção ao direito de ação), à similitude do que já ocorre nas arbitragens comerciais em relação à jurisdição estatal. Ampliou-se a chamada arbitrabilidade objetiva desportiva.

Até então, somente seriam arbitráveis questões que gravitassem em torno do esporte mas que não se referissem a disputas envolvendo cumprimento de regulamentos ou disciplinares, ou seja, basicamente aquelas envolvendo contratos celebrados no âmbito do esporte, como contratos de trabalho entre clubes, atletas e membros de comissão técnica (sem prejuízo do acesso à Justiça Trabalhista), conflitos envolvendo transferências nacionais de atletas ou estabilidade contratual, contratos de intermediação, litígios envolvendo cobrança de indenização decorrente dos mecanismos de solidariedade ou de formação, litígios contratuais em geral porventura submetidos à arbitragem via cláusula compromissória ou compromisso arbitral, etc. Não coincidentemente, tais questões são corporificadas no Regulamento[1] da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF, criada em 2016 como o objetivo de oferecer ao mercado do futebol nacional uma alternativa de qualidade e especialização para a resolução de conflitos ligados ao esporte, com a especial vantagem de oferecer formas mais efetivas de enforcement das decisões, notadamente a aplicação de sanções derivadas do sistema associativo, como o transfer ban e o bloqueio de premiações, por exemplo. Sua composição é paritária e seus membros são remunerados, e os diferentes temas são apreciados, conforme a matéria, em suas divisões trabalhista, comercial, de regulação e de intermediação.

A rigor, a CNRD não seria uma Câmara Arbitral em sentido estrito (não há a possibilidade de escolha do árbitro), mas um tribunal administrativo com fundamento associativo (a Justiça Desportiva, a seu turno, possui fundamento legal). Entretanto, como suas sentenças acabam cumprindo os requisitos da Lei de Arbitragem e, tendo as partes se submetido à Câmara voluntariamente, transformam-se em título executivo judicial passível de execução também junto ao Poder Judiciário (art. 515, I, CPC) via procedimento de cumprimento de sentença.

Como se nota, antes da LGE não havia conflito de competência entre a Justiça Desportiva e a CNRD (ou outros órgãos arbitrais). A primeira apreciaria questões envolvendo disciplina, regulamentos e o dia a dia das competições enquanto a segunda enfrentaria questões contratuais amplas, as quais, sem submissão contratual, seriam de competência da Justiça Comum ou Trabalhista. Uma cuidaria da magia das competições, ao passo que a outra se ocuparia dos bastidores.

Com a “repristinação” do art. 27 da LGE, questões disciplinares passam a ser arbitráveis, o que transfigura totalmente o cenário. Daí que surge a inevitável indagação: seria possível, em um mero exercício de futurologia, supor que, no futuro, poderia haver uma ampliação da competência da CNRD para abarcar também disciplina e competições, como forma se valer da expertise da Câmara e de se afastar da organização amadorística da Justiça Desportiva? A nosso ver, a resposta é positiva, pois os obstáculos legais foram removidos. De qualquer sorte, eventual deliberação estará no âmbito da autonomia das entidades desportivas, como idealizado pelo legislador. Tudo dependerá de vontade política da CBF (pois ela é a mantenedora da Câmara) e dos clubes e de uma negociação que deverá ocorrer com os integrantes da própria CNRD, pois é incerto se será de interesse da própria Câmara violentar seu perfil já consolidado no mercado nacional. A ver o que o futuro nos reserva. Uma futura desvinculação da CNRD em relação à CBF, que ainda poderá seguir reconhecendo a “jurisdição” da Câmara, à semelhança do que ocorreu com o Tribunal Arbitral do Esporte em relação ao COI, certamente é ponto que em algum momento também entrará em pauta.

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[1] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202209/20220923095301_64.pdf. Acesso em 28/05/2024.

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