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A Lex Sportiva e a regulamentação do MMA na França

No sábado, 3 de setembro de 2022, ocorreu o primeiro UFC em solo francês, o UFC Fight Night 209. O evento, que aconteceu na Accor Arena, em Paris, foi liderado por uma luta de pesos pesados entre o ex-campeão interino Ciryl Gane, francês, e Tai Tuivasa, australiano contender nos pesos pesados.

Com preços de ingressos entre 83 e 1.591 euros, todos esgotados em minutos, a chegada do UFC na França era aguardada ansiosamente pelos fãs de Mixed Martial Arts (MMA), um esporte que mistura boxe inglês, boxe tailandês, kickboxing, luta livre, jiu-jitsu brasileiro, karatê, judô e grappling (luta de submissão).

A organização americana, que é para o MMA com o que a Liga dos Campeões é para o futebol, poderia até ter enchido duas vezes o Stade de France – havia 200.000 pessoas na lista de espera.

Faz dois anos e meio que as artes marciais mistas foram reconhecidas como um esporte na França e o último sábado marcou o início de uma relação amistosa da modalidade com o povo francês, embora o UFC não tenha sido o primeiro evento do tipo a ocorrer na França.

O MMA foi proibido formalmente na França em 2016, mas um ano antes de o Ministério dos Esportes francês introduzir estas leis, um evento de MMA aconteceu no país. Alguns promotores, reconhecendo que o esporte era proibido na França, perceberam que havia uma lacuna na lei para sediar um evento com regras unificadas.

Os promotores em questão acabaram realizando o WWFC 4 no Cirque d’Hiver em Paris, regulado pela Commission Française de Mixed Martial Arts (CFMMA). O evento teve várias adaptações para ocorrer, não sendo fechado pela polícia, que havia sido informada do show com antecedência

Embora o Ministério dos Esportes francês não tivesse proibido completamente o MMA na época, eles proibiram vários componentes do esporte, como o uso de um cage. As lutas tinham que ocorrer em um tapete ou ringue, com socos e cotoveladas com oponentes no solo sendo ilegais.

A proibição ficou sob o relatório EPAS (Enlarged Partial Agreement on Sport), porque a Comissão Européia proibia as lutas em cages (gaiolas) na época. Felizmente, o relatório EPAS foi alterado para afirmar que havia uma responsabilidade de várias partes interessadas para garantir que o MMA não fosse forçado a virar uma modalidade undergound e que houvesse a responsabilidade de garantir o desenvolvimento do esporte,

Embora a procura pela prática do MMA só aumentasse, o governo francês se recusou a legalizar o MMA e implementar o conjunto de regras unificadas do esporte até que este fosse governado por uma federação esportiva francesa.

Na França, por lei, todos os esportes devem ser regidos dentro das estruturas de uma federação reconhecida pelo governo e atender a critérios administrativos específicos durante vários anos.

Isso ocorre porque o direito francês não acolhe a lex sportiva formalmente, mas utiliza a ordem jurídica esportiva como fonte de inspiração. Sobre a recepção das regras do MMA pelo sistema jurídico francês, podemos afirmar que:

Não se pode olvidar, no entanto, que tanto naquele contexto, como nos demais Estados sob a égide do direito da União Europeia, a lex sportiva concorre não apenas com as leis internas; as normas desportivas também devem, com efeito, conformar-se aos imperativos do direito do bloco regional em questão, cuja observância impõe-se, em princípio, a todas as autoridades judicantes dos Estados membros.

Como já afirmado, a consideração das regras emanadas das federações internacionais pelo juiz francês depende de sua incorporação àquela ordem nacional via mecanismo de recepção, o qual tem o condão de transformá-las em normas desportivas mistas, conforme a nomenclatura adotada neste estudo.

Na prática, portanto, o direito francês exige a nacionalização – ou naturalização – do direito desportivo transnacional a fim de que o mesmo produza efeitos em âmbito interno: por meio deste procedimento, «a legalidade do Estado transpõe a legalidade esportiva». (NICOLAU, 2018, p. 389[1])

O MMA foi então legalizado no início de 2020, ficando sob a regulação da Federação Francesa de Boxe (FFBoxe) através da FMMAF (Federação Francesa de MMA) seu órgão interno que cuida da modalidade, depois que a Federação Internacional de MMA (IMMAF), conseguiu derrubar o lobby da Federação Francesa de Judô (FJF). As lutas foram legalizadas sob a égide de Roxana Maracineanu, ministra francesa dos esportes.

A moradia provisória do MMA dentro das estruturas de um esporte comparado permitiu à Ministra do Esporte acelerar a legalização e a regulamentação do MMA enquanto as organizações que detêm participações no MMA dentro do país ainda se encontram em fase de desenvolvimento.

A FMMAF é reconhecida pela IMMAF, a Federação Internacional de MMA, tendo sido nomeada em 21 de janeiro de 2020 para supervisionar e desenvolver o MMA na França e internacionalmente.

Parte da luta para legalizar o MMA na França veio por causa da oposição da Federação Francesa de Judô (FJF) ao esporte. Jean-Luc Rouge, presidente da FJF, havia descrito o MMA como um “refúgio para os jihadistas” e disse que o esporte retratava uma imagem ruim.

Isso se devia principalmente por causa de interesses comerciais e pessoais. A federação temia que muitos estudantes promissores preferissem o MMA ao judô e como o judô é uma das últimas artes marciais tradicionais em que os franceses têm boa reputação, eles tinham receio de perder esses talentos para o MMA, diminuindo sua relevância no mundo do esporte.

As opiniões da FJF eram semelhantes à reputação violenta que atormentou o UFC em seus anos de fundação, com o senador americano John McCain rotulando o MMA como “rinha de galos humana” e proibindo-o na maioria dos estados.

Por conseguinte, com o fim da proibição, o Conselho de Regulamentação da Mídia na França (CSA) revogou a proibição de transmissão de artes marciais mistas, já que durava 15 anos. Os telespectadores devem ter mais de 16 anos para sintonizar para assistir às lutas e as redes devem avisar o público sobre o conteúdo das imagens que estão prestes a ver.

Vale ser destacada a rigidez das regras da FMMAF. Cedric Doumbé, ex-campeão do maior evento de kickboxing do mundo, o Glory, foi proibido pela federação francesa de lutar no UFC por causa de seu cartel no MMA. O atleta, de 29 anos, faria sua estreia no UFC no sábado, 3 de setembro, no UFC Paris . Inicialmente, seu adversário seria Darion Weeks, um lutador americano de 28 anos que tem um cartel de 5 vitórias e 2 derrotas.

No entanto, uma regra básica do Código de Esportes Profissionais da FMMAF não permite a realização deste encontro. De acordo com as regras da FMMAF, um lutador profissional Elite 2 (Lutador com cartel de 0 a 9 lutas profissionais), não pode enfrentar outro lutador que tenha um histórico maior que o seu em mais ou menos 4 lutas.

Exemplo: um lutador que tem 5 lutas profissionais não pode enfrentar um oponente que tenha um total de 0 lutas ou 10 lutas. Seu oponente deve ter um histórico de 1 luta (mínimo) a 9 lutas (máximo).

Doumbé tem um recorde de 2 lutas profissionais no MMA enquanto Weeks já tem 7 lutas no currículo, ou seja, 5 lutas a mais. Com isso, o americano não entra na tolerância de +/- 4 lutas solicitadas pela FMMAF.

Esta regra, válida para todos os eventos organizados na França, é sobretudo uma medida de segurança que permite aos novos lutadores não se oporem a adversários muito mais experientes e, portanto, correrem demasiados riscos. Você precisa ter 10 ou mais lutas profissionais para poder enfrentar qualquer um depois.

Ainda que não tenha sido a primeira promoção a fazer um show na França pós-legalização (o Bellator MMA foi a primeira promoção a fazer um evento profissional na França depois da legalização do MMA) a chegada do UFC à França, décimo primeiro país visitado pela organização na Europa e o 28º país não-americano no qual o UFC estreou, mostra que o MMA veio para ficar como esporte de entretenimento, resguardado sempre por regulações garantidores da saúde dos atletas.

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[1] NICOLAU, Jean Eduardo. Direito Internacional Privado do Esporte. 1ª. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 389

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