Notícia de 1º de julho de 2020 informa que “os principais clubes brasileiros elaboraram uma lista de pedidos que consideram abusivos em ações trabalhistas movidas por jogadores, treinadores e funcionários. A partir dela, fizeram um pacto de não contratação de profissionais que tenham processos contendo estes pedidos contra qualquer uma das agremiações participantes, condicionando qualquer contrato à retirada deles. A iniciativa foi gestada no 20jur, grupo que reúne os departamentos jurídicos dos 20 clubes da série A do Campeonato Brasileiro.” (Martins, José Eduardo. Clubes fazem pacto e não contratam autores de ações trabalhistas “abusivas”. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/07/01/clubes-fazem-pacto-e-nao-contratam-autores-de-acoes-trabalhistas-abusivas.htm>. Acesso em: 08 jul. 2020.).
O noticiado acima é o que restou conhecido originariamente no mundo do Direito do Trabalho como “lista negra”, de maneira muito mal empregada, com um termo discriminatório étnico que serviria de combate a um outro tipo de discriminação. Por óbvias razões, trata-se do que é hoje adequadamente nomeado de “lista suja”, a listagem de um rol de trabalhadores por parte de empregadores de um certo segmento da atividade econômica com a finalidade discriminatória de vedar aos trabalhadores do específico ramo o direito humano fundamental de livre acesso ao Poder Judiciário Trabalhista (art. 5⁰, XXXV, LIV, LV, da CF/88).
Essa nova “lista suja” dos vinte (20) clubes da série A do campeonato brasileiro colide frontalmente com o princípio constitucional fundamental da liberdade de acesso ao Poder Judiciário Especializado do Trabalho (princípio da inafastabilidade da jurisdição, princípio da ubiquidade).
Jamais poderia caber às partes que entram em conflito, em qualquer área da vida humana, prerrogativas que de algum modo ou intensidade limite o direito pleno de acesso ao Judiciário, pois este é o poder soberano do Estado Republicano e Democrático na pacificação de quaisquer conflitos. Este grupo do 20jur pretende mesmo a restrição do referido direito fundamental não apenas aos “atletas trabalhadores”, vai mais além ao formular uma lista para os “treinadores” e demais “funcionários”.
O mero anúncio desta medida já constitui uma grave defronta constitucional, posto que funda um programa ilícito de vedação de acesso à Justiça do Trabalho e por tabela tolhe também outro princípio humano fundamental, o de busca do pleno emprego, e o estende a todos os trabalhadores do esporte, não somente aos atletas empregados, o que além de friccionar a mística do “jogador hipersuficiente” também fragiliza mais ainda os direitos dos demais tipos de trabalhadores do desporto em relação aos mesmo direitos.
Evidente que a ordem jurídica brasileira dispõe de mecanismos judiciais de repressão ao abuso do direito de livre acesso ao Poder Judiciário. Na jurisdição da Justiça do Trabalho, mesmo antes da Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/17) adicionar os arts. 793-A a 793-C na CLT que tratam da possibilidade de condenação do reclamante (trabalhador do esporte) por litigância de má-fé, os magistrados trabalhistas já podiam a aplicar subsidiariamente com base nos arts. 79 a 81 do atual CPC (arts. 14 a 18 do antigo CPC).
Não obstante, a atual CLT reformada pela Lei n. 13.467/17 ainda permite a condenação dos reclamantes (trabalhadores do esporte) ao pagamento de honorários sucumbenciais quando sucubentes em alguns pedidos, mesmo que detentores do benefício da justiça gratuita (art. 791-A da CLT); a quitação de custas judiciais se não concedido o benefício da justiça gratuita (art. 790, § 3⁰, da CLT); as suas testemunhas ainda podem ser apenadas com multa pecuniária, caso o magistrado detecte o testemunho de má-fé (art. 793-D da CLT); se sucumbiram no pedido de perícia podem ser condenados ao seu pagamento (art. 790-B da CLT), dentre outros.
Todos esses instrumentos judiciais são comportas de contenção do abuso do direito de acesso à Justiça do Trabalho, mas o seu controle somente é cabível aos magistrados laborais (terceiros soberanos, julgadores do Poder Judiciário, imparciais para solucionar os dissídios pertinentes a sua jurisdição), jamais a uma das parte que está no conflito, o que representaria não somente uma restrição de direito humano fundamental, como também drástica violação do regular funcionamento do Estado Republicano e Democrático brasileiro.
A lista suja do futebol brasileiro que elege critérios abusivos por conta própria dos clubes empregadores e condiciona a contratação, recontratação, renovação, prorrogação contratual de trabalhadores do esporte (jogadores, treinadores, demais funcionários) transgride elevadamente a valorização social do trabalho, a sagrada liberdade de trabalho desportivo e a busca do pleno emprego (arts. 1⁰, IV, 5⁰, XIII, 170, VIII, da CF/88 c/c art. 27-C, III, IV, V, da Lei Pelé-Lei n. 9.615/98).
A proteção ao livre trabalho, enquanto norma de eficácia contida, é restringível tão somente por normas de qualificação profissional, o que não possui nenhuma relação com a matéria esboçada na lista suja. Abuso do direito fundamental de ação é reserva de controle exclusivo do Poder Judiciário.
Sob motivação de norma regulamentar infraconstitucional do art. 5⁰, XIII, da CF/88, é constitucionalmente inadmissível a previsão por parte do legislativo do que seria previamente considerado pleito abusivo, algo unicamente apreciável com a casuística e a tópica de cada demanda na Justiça do Trabalho (Poder Judiciário Especializado), sob pena de violação extrema do núcleo duro dos direitos sociais fundamentais de primeira e segunda dimensões (liberdade de trabalho e livre acesso ao Poder Judiciário Laboral).
Em Portugal, de forma mais expressiva, por se tratar de um liga de clubes, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) pronunciou a deliberação de uma lista suja com medidas semelhantes as do futebol brasileiro, em face da pandemia do covid-19, para seguimento dos empregadores desportivos da primeria e segunda ligas (correspondentes a séries A e B do campeonato brasileiro).
A conduta acima relatada foi rapidamente combatida pela Autoridade da Concorrência, órgão público responsável pela promoção e defesa da concorrência em Portugal (AdC), ao impor a LPFP uma medida cautelar de suspensão imediata de tais deliberações que impede a contratação de futebolistas por rescindirem unilateralmente contratos laborais desportivos, fundados nas questões provocadas pela pandemia do covid-19. A LPFP está sujeita a uma multa no valor de 6.000,00 euros por cada dia de descumpimento da referida cautelar.
A respeito do tema, comenta João Leal Amado:
“Já tinha tido oportunidade de escrever: «Os patrões do futebol não podem, como quaisquer outros patrões, elaborar uma espécie de ‘lista negra’ de jogadores que, por terem rescindido o contrato de trabalho (note-se: apenas por terem rescindido, sem ou mesmo com justa causa), serão ostracizados pelos restantes e, no que deles depender, votados ao desemprego.
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Pela minha parte, não posso senão aplaudir esta decisão da AdC. O acordo interclubes em causa é rotundamente ilegal. Viola, como referi, o disposto no art. 138.⁰ do Código do Trabalho, em matéria de liberdade de trabalho. E viola também, como a AdC indicou, a legislação da concorrência.
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No que aos desportistas profissionais diz respeito, não há dúvidas que a laboralização e liberalização têm andado a par. O que os atletas querem, acima de tudo, na Europa como nos EUA, é que lhes seja reconhecido o direito de ‘freely market their services’, é que exista ‘competitive bidding for their services’. E, nisto, o direito do trabalho e o direito da concorrência dão as mãos. O enfoque é distinto, claro: o direito da concorrência olha para as atuações concertadas das empresas, que se abstêm de contratar os trabalhadores umas das outras e, deste modo, renunciam à concorrência pela aquisição de recursos humanos; o direito do trabalho centra-se na pessoa do trabalhador, cuja liberdade de exercer a respetiva profissão é cerceada. Nada de estranho há nisto. O Direito é um só. Os dois ramos do ordenamento, neste caso, convergem, de ângulos diferentes, para um objetivo comum, para banir as restrições injustificadas à livre concorrência e à liberdade de trabalho.
O que é estranho é que tais práticas anticoncorrenciais tenham sido difundidas e publicadas como o foram. Normalmente, quem viola a lei fá-lo de forma discreta ou clandestina. Tenta que ninguém saiba, que ninguém detete, que ninguém se aperceba, que ninguém descubra, que ninguém, sequer, desconfie. Mas nada disso, verdade seja dita, aconteceu aqui: os clubes divulgaram e publicitaram amplamente o conteúdo das suas práticas concertadas ilegais. Quiçá, mais uma especificidade desportiva… A AdC, com tamanho ruído, terá sido obrigada a intervir. Fez bem.” (AMADO, João Leal. Jogadores, trabalho e concorrência: a mesma luta?. Sindicato dos Jogadores. Disponível em: <http://sjogadores.pt/?pt=joaolealamado>. Acesso em: 11 jul. 2020.).
Em síntese, tanto no Brasil como em Portugal é inconstitucional e ilegal a mera elaboração, deliberação de lista suja por parte de agrupamento de empregadores desportivos ou ligas, tendo em vista que a marcação de trabalhadores do esporte, classificações prévias de ações trabalhistas ou conflitos laborais como abusivos intentam o propósito claro de obstar o livre acesso ao Poder Judiciário Trabalhista e a própria liberdade de trabalho desportivo.
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Crédito imagem: Hans Braxmeier from Pixabay.