Por Lara Duarte Santi
No último dia 25 de novembro, o mundo surpreendeu-se com mais uma das várias tristes notícias de 2020: a morte precoce de Diego Maradona, o lendário camisa 10 argentino. Apesar do passado polêmico e seu declarado problema com o uso de drogas e abuso de álcool, a comoção em torno de sua partida foi inevitável. A perda do craque ocorre coincidentemente no mesmo período e que o anúncio da Agência Mundial Antidopagem (WADA) a respeito de uma nova abordagem em relação à punição do uso de drogas de abuso pelos atletas do alto rendimento repercutiu em todo o mundo esportivo. A partir de janeiro de 2021, entra em vigor o novo Código Mundial Antidopagem da WADA, e os protocolos, revisados durante dois anos, vão estar muito mais voltados para a educação e prevenção ao doping, e as punições para resultados relacionados a drogas de abuso (dentre elas, a cocaína) serão abrandadas. A reflexão sobre ambos os acontecimentos e sua conexão foi automática.
Mesmo controversa, a decisão da WADA, encontrada no Artigo 4.2.3 do novo Código, foi baseada em feedbacks enviados por autoridades antidopagem e especialistas atuantes na área, os quais sinalizavam a necessidade de um olhar mais atento da agência em relação assunto, especialmente no meio do alto rendimento esportivo, no qual, em muitas situações, o uso dessas drogas não está necessariamente relacionado ao contexto esportivo.
As razões pelas quais um atleta decide usar uma substância proibida ainda são bastante discutidas entre os especialistas (é o que chamamos de Risk Assessment, em uma linguagem técnica) e vão muito além da ética; envolvem, por exemplo, os aspectos sociológicos, culturais e psicológicos envolvidos no processo de uso de drogas. Tanto que a definição de um perfil único para o atleta que faz uso de substâncias não permitidas é praticamente impossível, tamanha a quantidade de variantes. O ambiente do alto rendimento por si só, muitas vezes, não é saudável considerando-se esses aspectos, e, ao mudar a abordagem, a WADA sinaliza entendimento sobre o problema e o que se deve esperar em relação ao futuro do combate à dopagem no esporte. Na época de Maradona, esse conceito educativo e abrangente simplesmente não existia, e talvez tenhamos perdido um atleta que teria sido ainda maior se os tempos fossem outros. Em 1994 o jogador foi pego em um exame antidoping e punido com uma pena considerada rígida na época: três meses. Não bastou para afastá-lo do uso de substâncias proibidas, e anos mais tarde descobriram-se inúmeras outras fraudes em seus exames de controle antidoping. Desde então, a carreira, a vida e a saúde do atleta nunca mais foram as mesmas, e a doença ficou cada vez mais descontrolada.
É importante ressaltar que a adição em drogas é uma doença sem cura que requer vigilância e cuidados vitalícios, como muitas vezes já ressaltou publicamente o ex-atleta brasileiro Carlos Casagrande, que passou pelo mesmo problema e não esconde sua luta diária e ativismo em relação ao assunto. Casagrande demonstrou-se muito abalado com a morte de Maradona nos últimos dias, e provavelmente a identificação de si mesmo com a história do colega seja impossível de dissociar. Felizmente, como o próprio já declarou diversas vezes, Casagrande teve outro destino graças à ajuda dos amigos e ao apoio da família.
Para o ano de 2021 , o Código da WADA também prevê a obrigatoriedade de uma fatia do orçamento do combate ao doping para o desenvolvimento de um programa educacional relacionado ao tema para todas as Autoridades de Controle Antidopagem signatárias e demais partes envolvidas, o que traz coerência ao código; afinal, punir sem educar perde completamente o sentido do que é o combate ao doping: defender a ética, o fair play e, acima de tudo, proteger os atletas.
O esporte é considerado pela UNESCO um instrumento de paz, desenvolvimento e cooperação entre os povos. Portanto, o órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) entende que a dopagem coloca esse conceito em risco, além de considerá-la uma questão de saúde pública (assim como o uso de drogas de abuso). Há alguns anos, existe inclusive a cooperação da UNESCO e WADA para unir esforços em prol do combate ao doping. O recado dado pela convergência dos fatos é bem claro: não se pode lutar por uma coisa e ignorar a outra, não se pode ignorar o fato de que o abuso de drogas deve ser tratado e prevenido como uma doença perigosa, que demanda atenção das autoridades e educadores e que, se não for feito um trabalho global e multidisciplinar sobre o assunto, além da punição, muitas gerações de grandes gênios do esporte terão seus futuros e suas vidas colocadas em risco. É fundamental o esforço conjunto e, assim, usar o esporte para uma de suas mais nobres funções: salvar vidas.
……….
Lara Duarte Santi é biomédica de formação, especialista em biotecnologia, drogas no esporte pelo COI e fisiologia do exercício pela UNIFESP. Trabalhou como oficial de controle de dopagem e coleta de sangue por 13 anos, servindo a varios major events, incluindo os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, Jogos Panamericanos de Toronto 2015 e edições do UFC.