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A MP 984, as emendas e a autonomia desportiva

“O desporto deverá sobreviver, superior, sobranceiro e soberano – fiel ao seu próprio destino e apenas submisso a si mesmo, isto é, aos preceitos da moral desportiva e às regras do direito desportivo”

João Lyra Filho

Desde o dia 18 de junho de 2020 está em vigor a Medida Provisória n.º 984 que altera a Lei Pelé e o Estatuto de Defesa do Torcedor[1].

A Lei Geral do Desporto foi modificada para estabelecer que pertencem ao clube mandante do jogo os direitos de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.

Também houve alteração em relação ao direito de arena, sendo que a atual previsão legal determina que serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, 5% da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.

É importante destacar que esta distribuição, desde o ano de 2011 era feita pelo sindicato dos atletas que neste momento foi alijado deste processo.

O art. 30 da Lei nº 9.615/1998 foi modificado para reduzir o prazo mínimo do contrato especial de trabalho desportivo para 30 dias até o dia 31/12/2020. Além disso, foi revogada a proibição de que empresas detentoras de concessão, permissão ou autorização para exploração de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como de televisão por assinatura, patrocinem ou veiculem sua própria marca, bem como a de seus canais e dos títulos de seus programas, nos uniformes de competições das entidades desportivas.

A MP 984 tramitará em regime de urgência (Art. 9º da Res. 1/2002/CN, c/c art. 62 da CF)[2], mas já traz mudanças significativas para o direito desportivo e a gestão do esporte. A transferência do direito de transmissão para a entidade de prática desportiva mandante da partida representa uma revolução no tocante às transmissões desportivas e abre a oportunidade para novas plataformas, nada obstante, deve ser lembrado que os contratos já celebrados devem ser respeitados (pacta sunt servanda).

Nos primeiros dias de vigência da norma muitos foram os debates acalorados em defesa da norma, por assegurar mais autonomia aos clubes, bem como argumentos contrários, em razão da alegada inexistência de urgência inerente a uma medida provisória.

Porém, neste momento o fato que salta aos olhos é a quantidade de emendas apresentadas ao texto legal: quase uma centena! Deputados e Senadores apresentaram precisamente 91 emendas que serão analisadas pelo relator antes da apresentação do relatório.

Inicialmente se pode afirmar que a avalanche de emendas demonstra que a situação é complexa e demanda maiores debates com os atores partícipes deste processo. Até mesmo a questão dos destinatários do direito de arena ficou controvertida. Afinal, o clube mandante, deverá remunerar os atletas do time adversário? Particularmente, entendo que sim, na medida em que não poderá haver distinção entre os atletas profissionais que tiveram suas imagens veiculadas durante o espetáculo. Outrossim, a Constituição Federal assegura[3] a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas. Logo, a proteção à reprodução das imagens em competições desportivas é a todos assegurada, independente da qualidade de mandante do time.

Dentre as emendas apresentadas, convém tecer alguns comentários acerca daquela que propõe a criação de uma liga para as Séries A e B que teria até o ano de 2022 para se estruturar. Conforme informações obtidas no site globoesporte.com[4], a emenda diz que a entidade seria a responsável por negociar de forma coletiva os direitos de transmissão e exploração comercial dos campeonatos, e distribuí-los aos clubes de forma que a diferença entre o time que mais recebe e o que menos recebe não seja superior a cinco vezes.

Não há dúvidas de que a negociação de forma coletiva daria mais força para os clubes e os exemplos de outros países (e até no Brasil na época do Clube dos 13) demonstram este fato.

Contudo, uma imposição legal neste sentido encontra óbice no art. 217 da Constituição Federal, pois no que tange à autonomia das entidades desportivas é assegurado o direito de livre associação e à não intervenção estatal.

É importante recordar que o Direito Desportivo surge no Brasil graças a organização de entidades de administração do desporto e de prática desportiva que acabaram por chamar a atenção do Estado durante as décadas de 1930/40.

Em sua célebre obra Instituições Políticas Brasileiras, Oliveira Viana[5] destaca a importância das novas ciências sociais que provocam uma reflexão em torno da determinação das normas jurídicas, pois demonstra uma atividade elaborada pela própria sociedade, desenvolvida de forma espontânea e independente da atividade técnica dos corpos legislativos oficiais. Trata-se, portanto da consagração do direito-costume, o direito do povo-massa, desconhecido e ignorado propositalmente pelas elites, nada obstante, em alguns momentos, aqueles atores políticos sejam compelidos a reconhece-los e a legaliza-los

E assim foi a gênese do Direito Desportivo no Brasil que surgiu através de uma atividade espontânea da sociedade, inteiramente costumeiro e obedecido como se fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. E foi essa organização de tipo eletivo e democrático de clubes, sindicatos e federações, cada qual com administração regular, que atraiu a atenção do Estado e passou a editar normas intervencionistas.

Foi com a Constituição Federal de 1988 que se reafirmou a autonomia das entidades desportivas, quando restou consagrado este princípio. Desta forma, é dever do Estado o fomento das práticas desportivas, porém deverá ser observada a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento.

Não se pode perder de vista que, no ano de 2019, o STF julgou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5450, ajuizada contra dispositivos do Estatuto do Torcedor que condicionavam a participação de times em campeonatos à comprovação de regularidade fiscal e trabalhista.

De acordo com o voto do Ministro Alexandre de Moraes, os dispositivos suspensos feriram a Constituição Federal ao restringir a autonomia das entidades desportivas.

Portanto, encontra óbice legal a previsão de criação de uma liga com determinação de que os clubes sejam compelidos a aderi-la.

Contudo, nada impede que esta seja a manifestação espontânea de vontade dos clubes, mas tal iniciativa não pode ser através de imposição legal, mas pode constar dos regulamentos das entidades desportivas. Afinal, como lembra o magistral João Lyra Filho, o desporto deve ser isento de ambições bastardas e livre de tentações vis. Assim, o desporto deverá sobreviver, superior, sobranceiro e soberano – fiel ao seu próprio destino e apenas submisso a si mesmo, isto é, aos preceitos da moral desportiva e às regras do direito desportivo.[6]

……….

[1] Respectivamente, Lei nº 9.815/1998 e Lei nº 10.671/2003.

[2] As Medidas Provisórias (MPVs) são normas com força de lei editadas pelo Presidente da República em situações de relevância e urgência com efeitos jurídicos imediatos. Contudo, a MPV necessita de apreciação pelo Congresso Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária. Seu prazo de vigência é de 60 dias, com prorrogação automática se a votação não for concluída nas duas Casas do Congresso Nacional. Se não for apreciada em até 45 dias, contados da sua publicação, entra em regime de urgência, sobrestando todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando (www.congessonacional.leg.br)

[3] Art. 5º XXVIII da CF

[4] https://globoesporte.globo.com/df/futebol/noticia/deputado-propoe-emenda-a-mp-984-que-obriga-criacao-de-liga-e-negociacao-coletiva-de-direitos-de-transmissao.ghtml

[5] VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Conselho Editorial do Senado Federal. Brasília – 1999. p. 43/44.

[6] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952. p. 117

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