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A polêmica do PLS 1153/2019: afinal, quem regulará os esportes de combate no Brasil?

O mundo do boxe é composto por muitas organizações internacionais, tanto grandes quanto pequenas. E ao contrário do MMA, onde uma promoção está acima das demais (que seria o UFC), não há uma liga de boxe que domine todas as outras quando se trata de hospedar lutas e vender ingressos.

Uma luta é simplesmente considerada profissional se for regulamentada e sancionada por um dos órgãos reconhecidos que existem para este fim. Estes órgãos sancionadores estabelecem regras, designam juízes e árbitros para as lutas e atribuem seus próprios cinturões de campeonato.

A descentralização da regulamentação de alguns esportes de combate, como o boxe, o kickboxing e o MMA, torna lutas de exibição, que não possuem caráter profissional, acessíveis para vários tipos de perfis não necessariamente ligados aos esportistas tradicionais, como artistas e influenciadores.

No boxe, recentemente, houve um crescimento massivo desse mercado de lutas de exibição depois que o influenciador Jake Paul passou a fazer combates contra outros influenciadores, passando posteriormente a enfrentar atletas profissionais em declínio na carreira.

No Brasil, o modelo de exploração de lutas de boxe usado pelo Youtuber Jake Paul foi copiado por promotores de eventos de esportes de combate, gerando o primeiro Fight Music Show, que trouxe como evento principal o combate entre o influenciador e artista Whindersson Nunes e o tetracampeão de boxe Acelino Freitas, o “Popó”.

Não obstante o combate tenha se dado entre um atleta profissional de boxe e um praticante da modalidade, a luta transcorrera como “luta de exibição”, que se trata de desporto não-formal.

As práticas de desporto não-formais são aquelas para as quais não existem regras preestabelecidas, cabendo aos seus participantes estabelecerem-nas de comum acordo, no momento mesmo da sua prática. A Lei Pelé assim define o desporto não-formal:

LEI Nº 9.615, DE 24 DE MARÇO DE 1998

Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES INICIAIS

Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não-formais e obedece às normas gerais desta lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.

§ 1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.

§ 2º A prática desportiva não-formal é caracterizada pela liberdade lúdica de seus praticantes. (grifamos)

Como vimos, na legislação em vigor, há a autorização para um evento nos moldes citados acima promover um combate entre atletas sem maiores empecilhos quanto à formalização das regras através de uma entidade regulamentadora “oficial” da modalidade.

Porém, considerando as alterações previstas no PLS 1153/19[1], poderemos ter novas interpretações em relação a esse cenário. Peguemos como exemplo a nova edição do Fight Music Show, a ser realizada no dia 25 de setembro em Curitiba, que terá como evento principal o confronto de boxe entre Cris Cyborg e Simone Silva, tendo sob suas regras uma disputa de oito rounds com dois minutos.

A luta será feita como “luta de exibição”, portanto não terá registro em órgãos oficiais da modalidade em âmbito nacional e internacional para efeitos de cartel e será regulada pela própria comissão do evento ou comissão terceirizada, sem vínculo com entidade nacional de regulação da modalidade.

Cyborg, lutadora profissional e lenda do MMA, fará sua estreia no boxe. Cyborg não tem experiência na modalidade, já tendo lutando profissionalmente em combates de Muay Thai, com a maioria das vitórias em sua carreira vindo por knockout com seus punhos.

Simone Silva, sua adversária, boxeadora profissional, possui relevância na modalidade e já foi desafiante a quatro títulos mundiais dentro do esporte.

A questão é que ambas, profissionais nos esportes em que competem, seriam enquadradas na nova definição de atleta profissional prevista no supracitado PLS 1153/19, veja-se, pois:

Art. 71. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.

Parágrafo único. Considera-se como atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedique à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tenha nesta atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como receba sua remuneração (grifamos)

Não há como se negar que, pelo histórico das atletas em suas modalidades, considerar-se-ia ambas esportistas profissionais pela definição contida no parágrafo único do artigo 71 do PLS 1153/19, uma vez que lutam de forma remunerada e permanente, tendo na luta sua principal fonte de renda.

Poder-se-ia dizer que Cyborg não é boxeadora profissional, porém, o artigo não traz limitação nesse sentido, considerando-se como atleta profissional o praticante de esporte de alto nível, perfil onde Cyborg se encaixa, não se olvidando também que Cyborg, como lutadora de MMA, também pratica boxe, uma vez que a chamada nobre arte é uma das importantes valências que formam o corpo das chamadas artes marciais mistas.

Destarte, o PLS também define, a partir da figura do atleta profissional, o status da organização que o abriga em seus quadros, in verbis:

Art. 82. Considera-se como voltada à prática esportiva profissional a organização esportiva, independentemente de sua natureza jurídica, que mantenha atletas profissionais em seus quadros.

A partir dessa definição, poderíamos considerar o Fight Music Show uma organização esportiva profissional, já que estaria em conformidade com as premissas citadas.

Ocorre que a nova legislação cria várias obrigações para a organização esportiva profissional em seu artigo 83:

Art. 83. São deveres da organização esportiva voltada à prática esportiva profissional, em especial:

I           – registrar o atleta profissional na organização esportiva que regule a respectiva modalidade para fins de vínculo esportivo. (grifamos)

Usando o exemplo do Fight Music Show, o questionamento que o artigo nos traz é: no caso do boxe, qual a organização que regula a modalidade para fins de registro do atleta profissional?

No Brasil teríamos duas: a Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe), vinculada ao Comitê Olímpico Brasileiro, responsável por regular o boxe olímpico; e o Conselho Nacional de Boxe (CNB), única entidade reguladora da modalidade no Brasil no âmbito profissional que é filiada à WBC (World Boxing Council) e WBO (World Boxing Organisation), duas entidades internacionais filiadas à ABC (Association of Boxing Comissions), entidade reguladora norte-americana criada para unir as comissões atléticas norte-americanas com o objetivo de proteger a saúde, segurança e bem-estar dos boxeadores profissionais através do licenciamento e regulamentação do esporte, a fim de assegurar o julgamento justo e imparcial do combates, designando funcionários para eventos e disciplinando os licenciados por violações da lei.

O artigo 83, da maneira como se encontra, abre interpretação para que se entenda que, a partir da promulgação da lei, apenas uma única organização esportiva será responsável pela regulação da modalidade. No caso do boxe, em se tratando de esporte profissional, só o CNB atenderia os critérios estabelecidos no âmbito profissional, uma vez que o CBBoxe, por definição de seu estatuto, está vinculado a IBA e à AMBC, entidades reguladoras do boxe olímpico, cujas regras diferem do profissional.

Da mesma forma, a CABMMA (Comissão Atlética Brasileira de MMA), a CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) e a CBMT (Confederação Brasileira de Muay Thai) são as únicas vinculadas a entidades internacionais que validam suas regras e procedimentos em âmbito profissional em território nacional (ABC e IMMAF no caso da CABMMA, WAKO no caso da CBKB e WMF no caso da CBMT) quanto à regulação das modalidades regidas por estas.

Outras obrigações foram criadas pelo vergastado PLS referentes a exames médicos e seguros quando o atleta está enquadrado como profissional:

Art. 83. São deveres da organização esportiva voltada à prática esportiva profissional, em especial:

(…)

III        – submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática esportiva;

(…)

V          – promover obrigatoriamente exames periódicos para avaliar a saúde dos atletas, nos termos da regulamentação;

VI        – contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, com o objetivo de cobrir os riscos a que os atletas e os treinadores estão sujeitos, inclusive a organização esportiva que o convoque para seleção. (grifamos)

O problema criado pelo artigo 83 em seus incisos III, V e VI, é que a grande maioria dos eventos profissionais de esportes de combates, que seriam enquadrados como organização esportiva profissional pelo acima exposto, não estão preparados para um cenário que preveja exames médicos e seguros de vida e acidentes pessoais.

Tal implementação açodada poderia impossibilitar, prima facie, vários eventos de serem realizados, já que implicaria fatalmente em acréscimos de custos não previstos pela organização.

A solução pode partir da regulação por uma única entidade de cada modalidade que atenda aos critérios que o PLS 1153/19 exige, como a previsão de exames e seguros. As entidades acima citadas já trabalham com essas exigências de exames médicos e muitas já fazem regulação de determinados eventos de organizações esportivas que oferecem seguros aos atletas, como no caso da CABMMA, que é a entidade responsável pela regulação do UFC em solo brasileiro. Essa expertise seria interessante numa implementação futura da nova política de exames e seguros que a lei prevê.

Se a ideia do legislador era oferecer mais segurança ao atleta, talvez fosse conveniente a previsão da criação, pelo PLS 1153/19, ou por uma nova lei, de um comitê que envolvesse todas as entidades reguladoras de esporte de combate profissional, unificando-se procedimentos para melhoria da segurança do atleta, proibindo, por exemplo, que um atleta nocauteado em uma luta de boxe faça uma luta de MMA quando ainda estiver cumprindo suspensão médica aplicada pela entidade responsável pela regulação da luta de boxe.

Precisamos entender que a dinâmica dos esportes de combate em relação à saúde do atleta difere muito de outras modalidades esportivas, sendo que as consequências da violência necessária para que haja de fato um combate não podem transcender mais do que o que é razoável para a ocorrência do espetáculo. O atleta, na maioria esmagadora das vezes, luta porque precisa do esporte para o seu sustento. Às vezes ele precisa ser defendido de si mesmo.

A despeito das obrigações criadas, a proposta da nova lei é saudável para os atletas profissionais, pois prevê vantagens que, em havendo a possibilidade de serem de fato seguidas, poderiam dar melhores condições de carreira ao desportista de combate.

Crédito imagem: GettyImages

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[1] BRASIL. SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 1.153, DE 2019 E AOS APENSADOS. Institui a Lei Geral do Esporte. In: SENADO. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2195515&filename=SBT+1+%3D%3E+PL+1153/2019. Acesso em: 15 ago. 2022

 

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