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A polêmica envolvendo a regra do terceiro mandato e a certificação do art. 18-A da Lei Pelé

Por Letícia Saldanha

A Constituição em vigor prevê e garante em seu art. 217 que as entidades de administração e prática desportiva se organizem de maneira autônoma, fato este que não impede que o legislador sancione leis e adote medidas que visem melhorar a estrutura organizacional do esporte no país. Neste sentido, em outubro de 2013, foi publicada uma lei que promoveu a alteração da Lei 9.615/98 (“Lei Pelé”), lei geral do desporto no nosso país, incluindo o art. 18-A que regulamentou e trouxe uma série de exigências a despeito dos repasses de recursos da administração pública direta e indireta, visando, de um modo geral, a adoção e melhoria nas práticas de governança.

Para fazer jus aos citados repasses, imperioso que as entidades pertencentes ao Sistema Nacional do Desporto cumpram as exigências objetivas elencadas no art. 18-A da Lei Pelé, dentre elas a possibilidade de uma única recondução ao cargo de dirigente e mandatos de no máximo 04 (quatro) anos, in verbis:

Art. 18-A. Sem prejuízo do disposto no art. 18, as entidades sem fins lucrativos componentes do Sistema Nacional do Desporto, referidas no parágrafo único do art. 13, somente poderão receber recursos da administração pública federal direta e indireta caso: (Incluído pela Lei nº 12.868, de 2013) (Produção de efeito) (Vide Lei nº 13.756, de 2018)

I – seu presidente ou dirigente máximo tenham o mandato de até 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) única recondução; (Incluído pela Lei nº 12.868, de 2013) (Produção de efeito)

Neste sentido, a Portaria nº 115, de 03 de abril de 2018, implementou que compete à Secretaria Especial do Esporte realizar o procedimento administrativo para emissão da Certidão de Regularidade dessas entidades, que terá validade de 1 (um) ano e permitirá que elas recebam verbas públicas.

Ocorre que, muito dos Presidentes ou dirigentes máximos, especialmente das entidades de administração do desporto, se encontram no cargo desde antes da lei que incluiu o art. 18-A na Lei Pelé ser sancionada e diante da necessidade de renovação do certificado, vem esbarrando em um problema: o entendimento da Secretaria Especial do Esporte acerca do tema.

É cediço que as Federações e Confederações dependem do repasse de verbas públicas para manter seu pleno funcionamento e que a suspensão deste repasse inviabilizaria as mesmas, fazendo com que seja forçoso o cumprimento do art. 18-A da Lei Pelé. Já em relação as entidades de prática, seu descumprimento poderia implicar na exclusão do PROFUT, perda de incentivos fiscais, projetos incentivados e patrocínios de natureza pública.

Ocorre que, a Secretaria Especial do Esporte vem adotando entendimento com base em pareceres jurídicos exarados pelo Consultor Jurídico que aduzem que àqueles Presidentes ou dirigentes máximos que estavam cumprindo mandatos em 15 de outubro de 2013 quando a lei foi publicada, só poderiam ser reconduzidos ao cargo uma única vez.

Neste caso, há que se falar de princípios constitucionais, dentre eles os princípios da irretroatividade da lei e da segurança jurídica.

A impossibilidade de lei material nova alcançar fatos praticados antes de sua vigência, demonstra o respeito do legislador às situações firmadas no passado, impedindo que a inovação legislativa prejudique o desenvolvimento destas. A irretroatividade da lei, decorre do princípio da segurança jurídica e visa garantir o controle e limitação da atuação estatal, impossibilitando que situações já consolidadas no passado sejam revistas, uma vez que tal situação seria uma afronta ao princípio da segurança jurídica previsto no art. 5º, inciso XXXVI da CRFB/88, o que acabaria ocasionando enorme insegurança jurídica.

A Constituição Federal vigente dispõe em seu art. 5º, inciso XXXVI que que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada, isto significa dizer que estas três situações trazidas pelo legislador constitucional, uma vez consolidadas sob o império de uma lei, não serão mais modificadas por leis publicadas à posteriori, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

Segundo Maria Helena Diniz, renomada jurista e doutrinadora do Direito Civil, quando uma lei modifica ou regula, de forma diferente, a matéria que já tenha sido regulada por lei anterior, seja em decorrência de sua ab-rogação (revogação total da lei anterior) ou pela sua derrogação (revogação parcial da lei anterior), podem surgir conflitos entre as novas disposições e as relações jurídicas já consolidadas sob a égide da velha norma revogada.

Importante destacar que, considera-se ato jurídico perfeito aquele que fora praticado e consumado durante a vigência de uma lei, como por exemplo o caso dos dirigentes que foram reconduzidos ao cargo por mais de uma vez, antes da introdução do art. 18-A na Lei Pelé. Este dirigente adquiriu um direito a partir do momento em que preencheu todas as condições exigidas pela lei vigente à época para exercê-lo, mas, em razão do tempo, ainda não concluiu este ato jurídico. Neste caso, considera-se que o direito já se incorporou ao patrimônio da pessoa ou a sua personalidade e o ato será regido pela lei vigente à época da consumação do mesmo.

A regra adotada pelo ordenamento jurídico é de que a norma não poderá retroagir, ou seja, a lei nova não será aplicada às situações constituídas sobre a vigência da lei revogada ou modificada (princípio da irretroatividade). Este princípio objetiva assegurar a estabilidade do ordenamento jurídico.

Este princípio não apresenta apenas o fundamento de ordem constitucional já mencionado, mas também aquele de ordem infraconstitucional, conforme aduzido no art. 6º da LINDB. Vejamos:

“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela Lei nº 3.238, de 1957)

§1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)

§2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)”

Logo, a regra é que a lei só pode retroagir, para atingir fatos consumados quando não ofender o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, e quando o legislador, expressamente, mandar aplicá-la a casos passados, mesmo que a palavra “retroatividade” não seja usada.

A interpretação normativa adotada pela Secretaria Especial do Esporte com base no parecer jurídico supramencionado não é adequada, uma vez que foge dos parâmetros estabelecidos pelo ordenamento constitucional e seus desdobramentos em textos normativos.

Ressalta-se o que diz o parágrafo único do art. 20 da Lei nº 12.868, de 15 de outubro de 2013: “O disposto no art. 18-A, acrescido à Lei 9.615. de 24 de março de 1998, produz efeitos a partir do 6º (sexto) mês contado da publicação desta Lei.”.

Entende-se, portanto, que a restrição imposta pelo inciso I do art. 18-A da Lei 9.615/98 só seria aplicada a partir do mês de abril do ano de 2014, ou seja, as entidades de administração do desporto só estariam limitadas ao direito de eleger seus dirigentes para o mandato de no máximo 4 (quatro) anos e sendo permitido apenas uma recondução somente a partir de abril de 2014, a partir daí deverá valer a imposição para fins de contagem da eleição e recondução ao cargo dos presidentes ou dirigentes máximos das entidades que compõe os Sistema Nacional do Desporto.

Importante salientar que este entendimento é válido, inclusive, para os dirigentes eleitos em eleições concretizadas antes da entrada em vigor da lei em questão, garantindo que ao final dos seus mandatos pudessem se eleger uma vez (o que contaria como primeiro mandato) e se reeleger mais uma, com mandatos máximos de 04 (quatro) anos.

Não à toa, a própria lei corrobora o entendimento ora apresentado, nestas palavras:

§3o Para fins do disposto no inciso I do caput: (Incluído pela Lei nº 12.868, de 2013) (Produção de efeito)

I – será respeitado o período de mandato do presidente ou dirigente máximo eleitos antes da vigência desta Lei; (Incluído pela Lei nº 12.868, de 2013).

Ademais, existem jurisprudências que chancelam o entendimento acima exposto. A 12ª Vara Federal do Rio de Janeiro, no dia 09 de julho deste mesmo ano, proferiu decisão liminar nos autos do Mandado de Segurança nº 5069494-57.2021.4.02.5101 impetrado pela Confederação Brasileira de Tênis de Mesa (“CBTM”) em razão da negativa de renovação da Certidão de Registro Cadastral da entidade, momento o Juiz Federal Raphael Nazareth Barbosa se manifestou no sentido de julgar procedente o pedido liminar feito, para que a autoridade coatora renovasse a Certidão de Registro Cadastral da CBTM, independentemente do exercício do atual mandato do presidente da entidade. Em sua decisão, aduziu o seguinte:

Note-se: a lei não poderia, mesmo, interferir no mandato do presidente ou dirigente máximo eleitos antes da sua vigência, sob pena, como visto, de retroatividade inconstitucional, por ofensa a efeitos jurídicos pendentes de ato já realizado (ADI 493/STF). Caso prevalecesse a afirmação do parecer da AGU, o I do § 3º do art. 18-A da Lei Pelé seria desnecessário. Nessa perspectiva, somente é possível salvar o dispositivo da ociosidade se for considerado que o Parlamento, a rigor, estabeleceu, por meio dele, que o mandato em curso não será computado para a limitação a uma única recondução prevista no caput e inciso I do art. 18- A do mesmo diploma. E é justamente essa a interpretação defendida pela impetrante, e que, na presente fase, entendo correta, embora a inicial e os pareceres a ela anexados recorram a alguns outros argumentos não acolhidos por este Juízo. (…) Em acréscimo, mesmo que a norma extraída do art. 18-A, caput e inciso I, c/c o inciso I do seu § 3º da Lei Pelé não fosse clara e não apontasse para sentido unívoco, ainda assim penso que a interpretação ora acolhida deveria prevalecer. Isso porque eventual divergência na leitura desses dispositivos, que têm caráter restritivo, precisaria ser resolvida em favor da tese geral, fundada na segurança jurídica, de que lei nova, se não for expressa em sentido diverso, não deve alcançar fatos anteriores à sua vigência, mesmo para atribuir, como acontece na hipótese de retroatividade inautêntica (ou retrospectividade) admitida pelo STF, efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes.

Em um contexto um pouco diferente, mas com fundamentos aplicáveis ao caso em estudo, em sede de juízo recursal por via de plantão judiciário, ocasião em que se tentou impedir a participação da chapa de situação nas eleições da Confederação Brasileira de Levantamento de Pesos (CBLP), em 27 de janeiro de 2021, o Desembargador Roberto de Vasconcelos Paes, nos autos do Processo 5025381-78.2021.8.13.0024, se manifestou da seguinte maneira sobre o Parecer CONJUR que serviu de base jurídica para fundamentação do ato dito como ilegal:

Como não bastasse, da interpretação sistêmica do conteúdo da Lei no 9.615/1998, notadamente do regramento contido no art. 18-A, não se revela crível defender que o presidente com mandato na data de entrada em vigor do mencionado dispositivo, acrescido pela Lei no 12.868/2013, e que tenha sido reconduzido na primeira eleição posterior à vigência daquele artigo, esteja impedido de ser reeleito, por mais uma vez, em função da restrição legal introduzida.

Não se pode desconsiderar o Princípio da Irretroatividade das Leis, previsto nos arts. 5o, inciso XXXVI, da Constituição Federal, e 6o, da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que, a meu ver, neste exame perfunctório, não foi observado pelo Parecer da AGU, acostado sob o cód. 19, que, ao demais, consiste em mero expediente orientador, sem caráter vinculativo.

Em face às considerações acima expostas, demonstra-se que o entendimento adotado pela Secretaria Especial do Esporte, com base em pareceres jurídicos exarados pelo Consultor Jurídico, ferem princípios basilares do nosso direito, como o da irretroatividade da lei e da segurança jurídica, bem como das regras de hermenêutica quando da um entendimento ampliativo a regras restritivas, fazendo com que, ao tentar renovar o certificado de regularidade do art. 18-A da Lei Pelé, a negativa se dê em razão deste entendimento e não seja haja a correção através da via administrativa, deverão as entidades componentes do Sistema Nacional do Desporto prejudicadas impetrarem Mandado de Segurança para garantia de seus direitos líquidos e certos.

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Letícia Saldanha Ribeiro, advogada na área de Direito Desportivo do escritório Jucá, Bevilacqua & Lira Advogados. Certificada em Direito Desportivo pela PUC-RJ, Barça Innovation Hub, FUTJUR, ABDConst. Certificada em Mediação e Arbitragem, Direito Contratual e Processo Civil pela FGV.

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