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A polêmica envolvendo a Superliga Europeia de clubes

Por Carlos Henrique Ramos

Na noite deste domingo (18.04), a comunidade desportiva foi surpreendida com o anúncio oficial de que 12 (doze) dos maiores clubes europeus (Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham – ING, Atlético de Madrid, Barcelona, Real Madrid – ESP, Inter de Milão, Juventus e Milan – ITA), seriam os precursores da criação de uma superliga europeia de clubes em detrimento da tradicionalíssima Liga dos Campeões da UEFA (UEFA Champions League).  A partir do ingresso de futuros clubes convidados (o Bayern de Munique e o Paris Saint-Germain oficialmente declinaram sua participação, além de que Porto e Borussia Dortmund manifestaram desinteresse caso convidados no futuro), a proposta seria a da criação de uma “super” competição de elite com 20 participantes, apta a gerar grande atratividade,  angariar novos parceiros e patrocinadores e a incrementar as verbas relativas aos direitos de transmissão e às premiações em geral, cuja estimativa inicial gravita em torno do triplo distribuído atualmente pela UEFA.

A sustentabilidade financeira do projeto estaria assegurada por financiamento a cargo do banco norte-americano JP Morgan. A proposta dos clubes fundadores é de que a superliga seja disputada nos meios de semana, mantidas suas participações nas respectivas ligas nacionais, com os 20 clubes divididos em 2 grupos de 10, com partidas de ida e volta na primeira fase. As equipes melhor classificadas partiriam para as quartas-de-final, em jogos de ida e volta, sendo que a final seria disputada em jogo único em campo neutro, à semelhança do modelo atual. Também foi divulgado que a versão feminina do torneio será levada adiante, assim que viabilizada.

A UEFA, por sua vez, procurou se antecipar ao anúncio oficial divulgando, ainda pela manhã de domingo, uma carta, apoiada pelas ligas nacionais e pela FIFA, na qual condena a criação da superliga, ameaçando as agremiações de desfiliação, de serem proibidas de participar de competições oficiais e de que seus atletas sejam impedidos de representar seus respectivos países em competições como a Eurocopa e a Copa do Mundo. Inclusive, chegou-se a especular a possibilidade de a entidade declarar o PSG campeão antecipado da atual edição do torneio, com a exclusão antecipada de Chelsea, Real Madrid e Manchester City, que são os demais semifinalistas do torneio. Tudo quando a própria UEFA, justamente para dissuadir os clubes da já conhecida e planejada iniciativa, estava na iminência de anunciar um novo formato para a Liga dos Campeões a partir de 2024, com o aumento das premiações e o número de participantes, com os slots extras assegurados aos clubes com melhor coeficiente histórico, o que efetivamente ocorreu nesta segunda-feira (19.04).

O backlash gerado nas redes sociais, nos meios de comunicação e perante os torcedores, inclusive de vários dos clubes que compõem a superliga, foi imediato, sob a alegação que o novo torneio representaria o “fim” do esporte e sua arraigada tradição, além do inegável prejuízo aos clubes de menor porte, que teriam seu crescimento inviabilizado. Faixas de protesto foram colocadas em Anfield (estádio do Liverpool) e, inclusive, certamente para causar comoção, falsos rumores foram divulgados no sentido de que o José Mourinho, então técnico do Tottenham, teria sido demitido na manhã de segunda-feira por ter se revoltado contra a criação da competição e por ter se recusado a treinar seus atletas, além de que Jürgen Klopp, técnico do Liverpool, estaria na iminência de pedir seu desligamento pelo mesmo motivo, dadas as raízes comunitária, operária e socialista do clube (e também suas pessoais).  Por outro lado, a reação do mercado foi positiva, de sorte as ações de vários clubes tiverem expressivas altas, inclusive de agremiações que sequer integram a superliga.

A meu ver, é preciso compreender o imbróglio à luz da tradição, do contexto e da experiência esportiva europeia. Nesse sentido, parece descabida qualquer tipo de comparação com a experiência brasileira da Copa União de 1987 pois, naquele momento, a própria CBF se via impossibilitada de organizar o Campeonato Brasileiro, além de que a Europa já possui toda uma estrutura e expertise na organização de eventos a partir das várias ligas nacionais “independentes”. Na era das redes sociais, onde impera a ditadura da contundência, as pessoas são facilmente influenciáveis e analisam tudo superficialmente e com base no senso comum, mas precisam ter a apressada e “velha opinião formada sobre tudo”, é preciso evitar o maniqueísmo e a sedutora opção por encontrar os vilões da história.

            O novo modelo de competição proposto é bastante aproximado da lógica do modelo de governança esportivo norte-americano, que é calcado em valores como a plena autonomia das ligas (que podem, inclusive, competir entre si), maior liberdade, os clubes são todos empresas, o esporte é visto como entretenimento, ausência de acesso e descenso e de categorias de base (esporte universitário) e existência de mecanismos de equilíbrio (drafts, salary cap, etc.). A superliga europeia de clubes, estruturada nos moldes propostos, como algo aproximado à lógica da MLS ou NBA (feitas as devidas adaptações) com os “melhores competindo contra os melhores” em nada ofenderia a cultura estadunidense.

O problema é que a nova liga então surgida foi forjada no contexto do modelo de governança esportiva europeia, que é tida como piramidal. Dentro da estrutura piramidal, os clubes (entidades de prática do desporto) são associados às federações em nível local, nacional e internacional (entidades de administração do desporto), possuindo autonomia limitada dentro de tal estrutura hierarquizada e podem ser excluídos do sistema associativo caso se “rebelem” contra ele. Os clubes exercem função social, possuem categorias de base e suas competições tradicionais respondem à lógica do acesso e descenso, privilegiando o mérito esportivo. Obviamente que a inserção de uma nova competição com a proposta de ser um torneio de elite ofenderia a tradição e os valores do sistema piramidal europeu. O tal backlash seria inevitável.

Não obstante, sob o prisma exclusivamente jurídico, o projeto da superliga é viável. O fato é que já há um importante precedente de 2018 do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJCE) no sentido de que o monopólio e as punições impostas pelas entidades de administração do desporto àqueles que pretendem organizar seus eventos fora do “guarda-chuva” das federações ferem o direito concorrencial da União Europeia, como foi o caso da União Internacional de Patinagem (ISU) que pretendeu punir dois atletas que pretendiam participar de competições não oficiais. Nesta esteira, os clubes fundadores da superliga já anunciaram medidas judiciais preventivas para evitar que as ameaças da UEFA se concretizem.

Se, de um lado, a proposta é efetivamente antipática, fere a tradição e o mérito desportivo ao criar um “clube” seleto e fixo de participantes, por outro lado, não teriam os clubes o direito de, visualizando que a competição organizada pela UEFA está subdimensionada e as premiações não refletem o seu potencial gerador de receitas, buscar seu próprio caminho? Independentemente da posição pessoal de cada um acerca da nova liga, é inegável que as estruturas do futebol mundial precisam ser repensadas, especialmente em relação às receitas, calendários, competições e datas-FIFA. Nesse sentido, agarrar-se simplesmente à tradição e ao status quo em uma sociedade e um mercado sob francas e rápidas mutações, não parece ser o melhor caminho. Não se faz uma omelete sem quebrar ovos, não é mesmo? O futebol é inegavelmente um subproduto histórico-cultural, mas essa construção nunca foi linear. Muitas das conquistas recentes foram fruto de movimentos de rompimento, como foi o próprio caso da própria Premier League, cuja ruptura com as estruturas tradicionais do futebol inglês possibilitou uma verdadeira revolução deste que era disputado literalmente na lama e cercado de violência e se tornou um case mundial de sucesso esportivo e financeiro.

Finalizo o breve ensaio recomendando prudência e cuidado com as narrativas oficiais. É preciso equilíbrio ao buscar as soluções para a crise. Só o tempo tornará possível visualizar as reais intencionalidades dos atores envolvidos no processo de mudança, que já começou, mesmo que no futuro a superliga não saia do papel. Qualquer comentário contundente neste momento não passaria de mera aposta.  Mas caso pudesse fazer uma e arriscar minhas chances, apostaria as fichas no sentido de que, com a superliga nascendo viável e bem estruturada, os clubes fundadores serão colocados em posição de destaque na mesa de negociações. Afinal, como viabilizar as ligas nacionais e a Copa do Mundo sem os maiores clubes do mundo e seus atletas? Tudo indica que a superliga será usada como mecanismo de pressão para que a UEFA ofereça um modelo mais adequado às expectativas e ao patamar de riquezas gerado pelas agremiações. E a UEFA cederá. Todos cederão. Não acredito na viabilidade da superliga “pirata” muito menos das ligas nacionais ou da Champions League esvaziadas. A sorte está lançada!

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Carlos Henrique Ramos é Doutor em Direito. Especialista em Direito Desportivo. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo do IBMEC (GEDD-Ibmec).

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