Tema que desperta grande interesse da comunidade do futebol e até certa incompreensão de quem não milita no direito desportivo é aquele que diz respeito à possibilidade de anulação de uma partida por conta de erros da arbitragem. Em momento que a arbitragem brasileira é objeto de severas críticas e vive profunda crise, é compreensível que o assunto volte à pauta.
A arbitragem em esportes de contato, como o futebol e o basquete, é sempre desafiadora, especialmente por conta de envolver regras mais abertas e uma atividade interpretativa mais complexa por parte dos árbitros. As decisões mais difíceis não envolvem questões objetivas, as quais podem, com mais facilidade, ser solucionadas com o auxílio tecnológico do VAR. Não é raro vermos lances polêmicos sendo interpretados de maneira diversa até por especialistas em arbitragem, ainda mais porque normalmente existe uma linha tênue entre um contato permitido e aquele faltoso, por exemplo.
Desta maneira, toda vez que surge alguma polêmica ou erro mais grosseiro da arbitragem, surgem especulações sobre a possibilidade de que seja formulado um pedido de anulação de partida junto aos tribunais desportivos. Na última temporada da Premier League, a título ilustrativo, um erro grosseiro ocorrido na partida entre Tottenham e Liverpool, resultado de uma falha de comunicação entre o árbitro de vídeo e o de campo, fez com que um gol incorretamente invalidado por impedimento do atleta Luis Díaz não fosse devidamente revisado antes do reinício da partida, o que resultou em vários apelos da comunidade esportiva para que a partida fosse anulada e disputada novamente. Como veremos a seguir, isso não seria possível, por mais que a sensação de injustiça seja natural.
Vale aqui reprisar a velha distinção entre o erro de direito e o erro de fato. Embora haja um certa indeterminação conceitual, o erro de direito pressupõe uma errônea interpretação ou aplicação de regra ao jogo (ex.: uma equipe de futebol que atua com 12 jogadores em campo ou o VAR solicita revisão de um lance mesmo após o reinício da partida), ao passo que o erro de fato diz respeito à interpretação equivocada do evento ou dos fatos nele ocorridos, levando a equipe de arbitragem a crer em uma realidade que não é verdadeira (ex.: um gol em impedimento é validado ou um pênalti inexistente é marcado).
Como forma de privilegiar o resultado produzido dentro de campo (princípio da pró-competição), só é permitida a anulação de uma partida em caso de erro de direito, que diz respeito a eventual interpretação ou aplicação errada das regras do jogo, nos termos o art. 259, §1º do CBJD. Ainda assim, será preciso analisar se o erro de direito cometido foi ou não capaz de alterar o resultado da partida. Ou seja, até mesmo com o erro de direito há ressalvas. O erro de fato, por sua vez, diz respeito aos clássicos erros de arbitragem, mais corriqueiros, que costumam ser resultado de equívoco interpretativo, fazendo o árbitro a decidir levado a crer em uma realidade aparente, mas não verdadeira. Anular uma partida como base neste tipo de erro traria elevada insegurança jurídica e transferiria a disputa dos gramados para os tribunais. Estando no campo da falibilidade humana, fazem parte da dinâmica do jogo. Vale lembrar, ainda, que a partir da introdução do VAR nos últimos anos, passamos a ter uma espécie de segunda camada de segurança para revisão dos lances previstos no respectivo protocolo, na tentativa de minimizar a ocorrência dos referidos erros.
Isto quer dizer que os tribunais desportivos não se prestam a atuar como terceira camada de segurança, como se fossem “reapitar” as partidas, ainda mais em esportes onde quase tudo é interpretação e há alto grau de subjetividade. Daí que é absolutamente compreensível que a jurisprudência e a literatura dos tribunais sejam conservadores em julgar procedentes os pedidos de impugnação de partida, ainda mais após a introdução do VAR, exatamente para preservar o princípio da pró-competição e evitar a consolidação de um precedente de difícil administração no futuro (um pedido acolhido poderia legitimar vários outros).
Quanto ao procedimento, o incidente de impugnação de partida fundado no erro de direito figura dentre os procedimentos especiais previstos no CBJD, sendo regulado nos arts. 84 a 87 do referido diploma. Trata-se de competência originária do Pleno dos Tribunais (STJD ou TJD, a depender da competição), de modo que o feito não passa pelas comissões disciplinares. O prazo é exíguo. O pedido de impugnação deve ser protocolado junto ao Tribunal em até 2 (dois) dias da entrada da súmula da partida na respectiva Federação, tendo legitimidade para formular o pleito os participantes da partida ou aqueles que tenham interesse imediato no seu resultado. Inicialmente, o Presidente do Tribunal receberá a petição e, não sendo caso de indeferimento liminar, dará imediata ciência ao Presidente da Federação para que se abstenha de homologar o resultado da partida. Após dar vista à parte contrária e à Procuradoria, com prazo de 2 (dois) dias cada para manifestação, o Presidente sorteará relator e incluirá o feito em pauta para julgamento colegiado.
A nosso ver, a superação dos problemas da qualidade da arbitragem passa ao largo do mecanismo de anulação de partida, que é excepcionalíssimo e reservado para situações pontuais. Ademais, é notório que os clubes acabam usando o referido instituto apenas como instrumento de pressão sobre a arbitragem, o que também é uma distorção. É imperioso abandonar discussões de “varejo” e assumir um compromisso por soluções estruturais em busca da melhoria da qualidade da arbitragem. Poderíamos começar pela cobrança à CBF pela rápida introdução de mecanismos tecnológicos mais modernos, semiautomatizados e baseados em inteligência artificial, já implementados pela FIFA em suas competições e em algumas ligas europeias, que prescindem de elevada intervenção humana.
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