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A prática desportiva e as artes marciais: a obscuridade na decisão do STJ acerca dos valores éticos na luta

Introdução

Publiquei, em livro lançado recentemente[1], artigo tratando de decisão do STJ[2] acerca da vinculação do individuo que pratica artes marciais aos valores da arte quando do uso indiscriminado da habilidade marcial.

Decisão recente do mesmo STJ também acompanhou a inovadora decisão em relação à matéria, o que parece indicar uma tendência a ser seguida pela Corte em relação à análise do uso da violência por parte do praticante de artes marciais, podendo esse ter um aumento de pena pelo fato de ser praticante de arte marcial.

Não obstante, a decisão, em sua fundamentação, acaba por misturar dois conceitos que nem sempre se comunicam: as artes marciais e o esporte.

Analisaremos a questão a seguir.

A Obscuridade no acórdão do AREsp n. 2.053.119/SC

Acerca do vínculo do artista marcial com os valores de sua arte, a basilar decisão do STJ assim consignou:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL QUALIFICADA. DOSIMETRIA DA PENA. CULPABILIDADE. VALORAÇÃO NEGATIVA MEDIANTE FUNDAMENTO VÁLIDO.

  1. Tem-se por justificado o trato negativo da vetorial culpabilidade diante do fato de o réu ser praticante de artes marciais, o que, em se considerando os princípios éticos da prática desportiva, de não utilização da violência salvo em casos extremos, justifica validamente a exasperação da pena-base, porquanto evidencia maior reprovabilidade da conduta, sendo imprópria, de todo modo, a revisão do entendimento firmado pelas instâncias ordinárias na

estreita via do especial.

  1. Agravo regimental improvido.

(AgRg no AREsp n. 2.053.119/SC, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 27/6/2023, DJe de 30/6/2023.) (grifo nosso)

Determinado ponto chama a atenção no acordão: a menção ao fato de “o réu ser praticante de artes marciais” e dever considerar “os princípios éticos da prática desportiva de não utilização da violência salvo em casos extremos”. Ora, nem toda arte marcial é uma prática desportiva! Então, nesse ponto do acórdão, há, a meu sentir, obscuridade[3] (entendo que o relator buscou abranger as duas correntes, a marcial e a desportiva, em relação à prática de uma luta), uma vez que a fundamentação destaca o fato do réu ser artista marcial, devendo então obediência aos princípios éticos da prática desportiva.

Mas e se ele não tiver a arte como uma prática desportiva? E se for, para ele, apenas uma arte marcial? Ele teria a mesma vinculação a tais valores?

Porém, não se está a falar de que a prática da arte marcial não possui valores éticos. Muito pelo contrário! O que ora se discute é a questão de que os valores que o texto traz (ao menos em minha análise) estariam limitados à prática desportiva da arte. Em tese, e aí caberia discussão pelos eventuais defensores de alguém que não pratique a arte desportivamente, o praticante que se vincularia a estes valores é o desportivo, que treina esportivamente a arte, não sendo o caso de todo e qualquer praticante de artes marciais.

Tal questionamento é necessário, vez em que pode se deparar a egrégia Corte no futuro (e os tribunais estaduais, ao julgarem condutas semelhantes e quiserem fazer uso do precedente do STJ) com uma situação em que o agressor treine, por exemplo, Aikido, e venha a agredir alguém. Se este não treina esportivamente, estaríamos diante de um distinguish[4].

Em que pese a controvérsia, a decisão ora debatida foi novamente utilizada como base pelo STJ, como se vê se no acordão da lavra do Ministro Rogério Schietti no AREsp nº 2359074/RJ[5], in verbis:

“O apenamento foi assim analisado (fls. 1.407-1.409, grifei):

Da pena em relação à vítima RENATO –homicídio consumado

Da Pena Base

A culpabilidade do acusado não se confunde com a intensidade do dolo, mas relaciona-se à reprovabilidade de sua conduta. Na espécie dos autos, entendo que a reprovabilidade da conduta é superior à usual da espécie delitiva, pois o réu utilizou-se de sua habilidade com artes marciais para o cometimento do crime.

Assim, atuou de maneira especialmente reprovável, pois se utilizou de conhecimento de forma contrária ao esperado.

(…)

A dosimetria de ambos os delitos desafia múltiplos reparos, por manifesta inidoneidade fundamentatória manejada ao exacerbado distanciamento das penas base dos seus mínimos legais, a título de identificação, quer da reprovabilidade da conduta, consubstanciada em utilizar-se o Recorrente de sua habilidade com artes marciais para o cometimento do crime (…)

Como sabido, a culpabilidade, como medida de pena, nada mais é do que o maior ou o menor grau de reprovabilidade da conduta, o que, no caso em análise, ficou plenamente demonstrado por meio de elementos concretos, os quais, de fato, demonstram merecer maior reprovação pela valoração negativa desta circunstância judicial.

Nesse contexto, as notícias de que o réu se utilizou de suas habilidades em artes marciais para cometer os crimes tornam mais reprovável a sua conduta e, por isso, justificam o incremento da reprimenda. (grifos da decisão)

Exemplificativamente:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL QUALIFICADA. DOSIMETRIA DA PENA. CULPABILIDADE. VALORAÇÃO NEGATIVA MEDIANTE FUNDAMENTO VÁLIDO.

  1. Tem-se por justificado o trato negativo da vetorial culpabilidade diante do fato de o réu ser praticante de artes marciais, o que, em se considerando os princípios éticos da prática desportiva, de não utilização da violência salvo em casos extremos, justifica validamente a exasperação da pena-base, porquanto evidencia maior reprovabilidade da conduta, sendo imprópria, de todo modo, a revisão do entendimento firmado pelas instâncias ordinárias na estreita via do especial.
  2. Agravo regimental improvido.

(AgRg no AREsp n. 2.053.119/SC, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 27/6/2023, DJe de 30/6/2023.)” (grifo nosso)

Como vemos no voto, não há menção em relação à treino desportivo feito pelo réu relativo à prática de artes marciais, ainda que haja embasamento para aumento de pena com base no acórdão do AREsp n. 2.053.119/SC.

De toda sorte, permanece a questão: para efeito deste precedente, o STJ entende que toda arte marcial é esporte?

Considerações finais

Independente da controvérsia relacionado à fundamentação do referido decisum, não se olvida que tinha o relator a melhor das intenções, uma vez que, como defini em meu artigo para o livro

Vincular tais normas ao praticante, quando da análise de sua conduta perante a sociedade, pode ser uma forma interessante de se coibirem determinados excessos por parte do artista marcial (…).[6]

Tudo indica que o precedente seguirá sendo utilizado como uma forma de serem coibidos determinados comportamentos por parte de artistas marciais, e assim deve ser mesmo, pois o verdadeiro artista marcial dirá que tais amarras separam os praticantes sérios daqueles que buscam a arte marcial apenas como uma forma de agredir a quem deveriam defender: os seus semelhantes.

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[1] COSTA, Elthon José Gusmão da. A Jurisprudência do STJ e a Vinculação do Indivíduo aos Valores Éticos na Prática de Artes Marciais. In: COSTA, Elthon José Gusmão da; ZAINAGHI, Luis Guilherme Krenek; SUAREZ, Simone Lopes Passos. Reflexões jurídico-desportivas do grupo de estudos direito e desporto da universidade São Judas. Campinas-SP: Lacier, 2024. p. 100-119.

[2] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.053.119/SC, relator ministro Jesuíno Rissato (desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, DJe de 30/6/2023.

[3] A obscuridade está presente quando, da leitura da decisão, não é possível compreender, total ou parcialmente, o que quis afirmar ou decidir o julgador. Ou seja, a ideia que o magistrado pretendeu exprimir por meio do seu pronunciamento não ficou suficientemente clara, impedindo que se compreenda, com exatidão, o seu integral conteúdo. FERNANDES, Luís Eduardo Simardi. Embargos de declaração: efeitos infringentes, prequestionamento e outros aspectos polêmicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 62.

[4] Aqui cabe dizer, por exemplo, que se os fatos, subjacentes à causa que vai julgar, são diferentes daqueles que deram origem ao precedente e entre eles não há analogia, o precedente não vai ser “aplicado”. Isso é o que vem sendo chamado desnecessariamente por uma expressão em língua inglesa: distinguishing. Essa operação mental não é, nem nunca foi, novidade do direito brasileiro: não se aplica a lei ao caso concreto se os fatos existentes não são exatamente os mesmos descritos pelo legislador. Embora à primeira vista se pudesse ter a impressão de que eram… O mesmo acontece com a decisão com base em precedente: não é a hipótese descrita na lei, mas é o caso prático que deu base ao precedente! Assim, os precedentes vinculantes não mataram a atividade interpretativa do juiz.

Ela pode ficar, sim, bastante reduzida, quando se trata de um precedente proferido para resolver casos de massa, que são absolutamente idênticos. Nesse caso, a tese vem a ser um “resumo” da parte decisória do acórdão que deve, sim, aplicar-se a casos iguais! Mas quando a aplicação do precedente se faz por analogia, essa operação que consiste em identificar as semelhanças e diferenças é feita pelo juiz ou pelo Tribunal que aplicam o precedente, tanto é assim que a eles cabe afirmar quais fatos são suficientemente diferentes para que o precedente não incida ou quais fatos do caso concreto exigem a aplicação daquele precedente. ALVIM, Teresa Arruda. A fundamentação das sentenças e dos acórdãos. Curitiba-PR: Editora Direito Contemporâneo, 2023, p. 131.

[5] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Ag no AREsp n. 2359074/RJ, relator ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 11/6/2024.

[6] COSTA, Elthon José Gusmão da; ZAINAGHI, Luis Guilherme Krenek; SUAREZ, Simone Lopes Passos. Op. Cit., p. 117.

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