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A pré-temporada jurídica europeia

A volta da temporada europeia se aproxima, mas os bastidores dos negócios e o lado jurídico não pararam durante o recesso. Nesse sentido, os olhos do público ao redor do mundo observam esse ano esportivo no continente com bastante curiosidade. O principal mercado do mundo, pela primeira vez em muito tempo, perdeu seus dois principais protagonistas nos últimos 15 anos para mercados considerados alternativos: Messi (EUA) e Cristiano Ronaldo (Arábia Saudita).

Sobre os árabes, o projeto megalomaníaco, com investimentos ilimitados para tornar a liga local em uma das mais fortes do planeta, desafiou a hegemonia dos grandes clubes europeus e contratou jogadores de inquestionável relevância no cenário mundial, surpreendendo até os mais céticos.

Se outrora, projetos como o da China, traziam, comumente, jogadores em estágios finais de carreira, os sauditas investem pesado em atletas com possibilidade de entregar um rendimento desportivo ainda alto. Os árabes não medirão esforços e prometem abalar o mundo do esporte até o fechamento da janela e nos próximos anos.

Por outro lado, na contramão, Laliga, a segunda Liga em valor de mercado e em receitas, apresenta um desempenho tímido nas contratações. Todavia, a Premier League segue sua corrida solitária para continuar sendo a melhor liga do mundo, seguindo a investir em contratações de atletas, o que representa o valor mais alto entre 3 principais ligas somadas. Nessa esteira, é ainda cedo para avaliar o impacto dos árabes no mercado e se haverá uma mudança relevante no desempenho dos clubes europeus.

Contudo, enquanto a bola não rola, no período de férias, houve muitas discussões jurídicas relevantes em âmbito europeu, com casos interessantíssimos para o contexto do futebol jogado no velho continente, que serão os temas centrais desse texto: o caso Osasuna, decisão da UEFA sobre os multi-club ownership (MCO) e, por último, punição aplicada à Juventus.

Iniciando pelo caso Osasuna, clube de pequeno porte do norte da Espanha, localizado em uma região com raízes culturais bem definidas e considerada por muitos como uma das capitais do País Basco. Na história do futebol, é uma equipe que não possui grandes feitos nacionais e internacionais, porém resiste, no cenário nacional, ao lado de grandes potências como Barcelona e Real Madrid, e o histórico Athletic Club, como os únicos que se mantém no modelo associativo, ou seja, não se tornaram sociedades anônimas, mesmo com a exigência oriunda da Lei nº 10/1990.

Na temporada passada, a equipe se classificou para a disputa da Conference League, a 3ª competição continental mais importante, organizada pela UEFA. Contudo, um processo na Justiça Espanhola gerou abertura de um Procedimento Disciplinar na UEFA, que culminou com a não admissão do clube para participar da referida competição, chancelada nas duas instâncias da entidade de administração do futebol europeu. Tudo isso em decorrência de fatos ocorridos há quase uma década.

O Supremo Tribunal Espanhol condenou o presidente, dois diretores e o gerente do clube, que tinham negociado pagamento a dois jogadores do Real Betis, na temporada de 2013/14, para que ganhassem do Real Valladolid, que lutava com o Osasuna pela permanência na 1ª divisão de Laliga.

Para tanto, as investigações apontaram que os dirigentes se apropriaram indevidamente de recursos do próprio clube para praticar esse ato. Foram condenados, juntamente com os jogadores do Real Betis, por apropriação indébita, falsificação de documentos, delitos contábeis e corrupção esportiva.[1]

Com base na decisão proferida pelo Tribunal Espanhol no final de janeiro, a UEFA inadmitiu o clube com base no artigo 4.1.g do Regulamento da Conference League[2], que previa como critério de elegibilidade o não envolvimento, direto ou indireto, desde 2007 (entrada em vigor do novo Estatuto da entidade), em qualquer atividade, nacional ou internacional, de manipulação de resultados.

Ao mesmo tempo, questionou-se novamente, no continente europeu, o rigor com os clubes pequenos e a tolerância com os clubes gigantes, o que já vinha ocorrendo em decisões passadas tomadas pela UEFA. Com efeito, mais recentemente, o escândalo da contratação de serviços do vice-presidente da Comissão de Arbitragem Espanhola, Enríquez Negreira, pelo Barcelona, durante quase duas décadas, foi o caso mais emblemático.

Sob esse viés, cumpre aclarar que o caso ainda não teve punição no âmbito associativo na Espanha e muito menos na Europa, pois ainda não há uma decisão com trânsito em julgado pela Justiça Espanhola. Negreira e ex-dirigentes do clube catalão foram denunciados nos Tribunais da Catalunha. No entanto, outro fator chama bastante atenção nesse caso Osasuna.

Na decisão do Supremo Espanhol, o clube foi inocentado totalmente, pois, segundo o Código Penal Espanhol, não se pode atribuir às pessoas jurídicas as condutas delitivas praticadas por pessoas físicas, logo, não existe responsabilidade penal nesses casos, somente quando há, claro e manifesto, descumprimento do dever de vigilância. Em outras palavras, o Tribunal declarou que não poderia haver responsabilidade objetiva, uma vez que não houve comprovação de dolo ou de ausência de mecanismos que pudessem caracterizar a falta do dever de vigilância.

Irresignado com a decisão da UEFA, o clube acionou o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS) e, simultaneamente, a Justiça Espanhola. Na decisão em âmbito espanhol, o Juízo Mercantil de Pamplona[3] indeferiu o pedido liminar realizado pelo Osasuna para que a UEFA se abstivesse de adotar qualquer medida que excluísse o clube da Conference League.

Para tanto, apesar de considerar a decisão da UEFA injustificada e desproporcional em comparação com outros clubes, o Juiz apontou que a UEFA é uma entidade privada, que organiza uma série de competições de acordo com a sua normativa, estabelecendo os requisitos para participação dos seus próprios certames. Por fim, salientou que era uma decisão meramente desportiva e que só poderia interferir se houvesse uma violação ou restrição à livre concorrência, o que não teria ocorrido no caso.

Por outro lado, no procedimento arbitral no TAS, a UEFA, após reavaliar o caso, resolveu admitir o Osasuna na próxima Conference, o que foi ratificado pelo CAS, mas, paralelamente, abriu um procedimento disciplinar que acarretou na imposição de uma multa de 100 mil euros ao Osasuna, por recorrer de uma decisão desportiva na Justiça Comum.

Dando continuidade ao artigo, o segundo caso que movimentou bastante o Direito Desportivo Europeu, foi a flexibilização da UEFA sobre os popularmente conhecidos como multi club ownership (MCO) em suas competições. Os MCO já foram abordados aqui nessa coluna em algumas oportunidades,[4] sendo chamados também de conglomerado de clubes.

Entre os mais diversos motivos para a ascensão dessa modalidade de investimento foi que, para os investidores, o futebol é uma possibilidade bem plausível de diversificar o portifólio de negócios, expandir a marca, ganhar exposição global, otimizar as operações da empresa, ampliar seu poder e influência sobre a sociedade, devido ao grande interesse social inerente ao esporte mais popular do mundo, e, para alguns, melhorar a imagem da marca ou até mesmo da própria pessoa física.

Podemos citar dois modelos predominantes no futebol mundial: o piramidal, com clubes de vários níveis, que inclui um principal, no topo da cadeia, que é a prioridade esportiva do grupo e é “alimentado” pelo restante ou, por outro lado, um sistema horizontal, com times do mesmo nível e relevância, que possuem os mesmos objetivos esportivos.

Como um grupo, há um compartilhamento de conhecimento específico, de profissionais e de estratégias negociais que podem ser benéficas para todos. Sob esse viés, com um conglomerado se pode barganhar e obter receitas mais vantajosas de patrocínio, de parceiros, nitidamente mais elevadas do que se somente uma equipe negociasse. Em contrapartida, a empresa patrocinadora/parceira pode ganhar acesso à mercados em diversos continentes, agregando valor a sua marca por meio do esporte.

Os MCO já estavam presentes, por exemplo, no regulamento da UEFA Champions League que, ao contrário da inércia do da FIFA, já dispunha sobre esse tema, mais precisamente no seu artigo 5º. O intuito era de evitar conflitos de interesse e manter a integridade do esporte, quando estabelece a impossibilidade de uma pessoa, física ou jurídica, exercer o controle ou influência sobre mais do que um clube que participe de uma mesma competição continental.

Em outras palavras, podemos definir esse controle como: i) possuir a maioria dos direitos de voto dos acionistas; ii) ter o direito de nomear ou destituir a maioria dos membros do órgão administrativo, de gestão ou de controle do clube; iii) ser acionista e controlar sozinho a maioria dos direitos de voto dos acionistas em virtude de acordo celebrado com os demais; ou, por último, iv) poder exercer influência decisiva no processo decisório do clube por qualquer meio.

Além disso, havia outras proibições, tais como: a de possuir ou negociar títulos/ações de qualquer outro clube que participe da mesma competição, ser membro de qualquer outro clube que participe de uma competição de clubes continental, estar envolvido em qualquer cargo na gestão, administração e/ou desempenho desportivo de qualquer outro clube que participe da mesma competição de clubes e, por fim, ter qualquer poder na gestão, administração e/ou desempenho desportivo de qualquer outro clube que participe de uma competição europeia.

Resumidamente, ninguém pode estar envolvido simultaneamente, direta ou indiretamente, a qualquer título, na gestão, administração e/ou desempenho esportivo de mais de um clube participante de uma competição de clubes da UEFA. Esse sistema foi colocado à prova pela primeira vez em 2017, com o caso Red Bull (Salzburg e Leipzig), quando as duas equipes se classificaram para a mesma competição europeia.

Após uma profunda investigação, o órgão de controle da UEFA permitiu a participação de ambos os clubes, uma vez que, segundo ele, a empresa RedBull era apenas uma patrocinadora do RedBull Salzburg, sem ter uma percentagem da participação e sem exercer qualquer controle sobre as operações do referido time.

Evidentemente, diante da alta lucratividade do futebol e o aumento do interesse dos investidores e fundos de investimento, a presença dos MCO cresceu de maneira exponencial e, inevitavelmente, a entidade de administração do futebol europeu foi instada a se manifestar acerca da participação e do possível conflito de interesses que pudessem colocar em risco o inegociável princípio da integridade desportiva.[5]

A UEFA informou ter aberto procedimentos em relação aos seguintes clubes integrantes do mesmo conglomerado: Aston Villa FC (Inglaterra) e Vitória Sport Clube (Portugal), Brighton & Hove Albion FC (Inglaterra) e Royal Union Saint-Gilloise (Bélgica), AC Milan (Itália) e Toulouse FC (França). O Órgão de Controle Financeiro de Clubes da UEFA permitiu a participação dos clubes, pois, segundo ele, não infringiam à normativa vigente.

Ademais, editou novas regras, cujas mudanças mais significativas implementadas dizem respeito à propriedade, governança e estrutura de financiamento dos clubes em questão. Essas alterações têm o escopo de restringir substancialmente a influência e o poder de decisão dos investidores sobre mais de um clube, assegurando, assim, o cumprimento das regras sobre multi-propriedade.

Nesse sentido, impuseram aos clubes, ações significativas, que incluem:

a) redução significativa da participação dos investidores em um dos clubes, ou transferência do controle efetivo e tomada de decisão de um dos clubes para uma parte independente;

b) restrições significativas na capacidade de fornecer financiamento a mais de um clube;

c) ausência de representação na diretoria e nenhuma capacidade de nomear diretamente novos diretores no Corpo Diretivo de mais de um clube;

d) não possuir capacidade para participar da Assembleia Geral ou capacidade de participar de decisões importantes, como, por exemplo, a aprovação de orçamentos de mais de um clube; e

e) não possuir capacidade para exercer controle sobre mais de um clube no nível do Conselho de Administração ou de suas Assembleias Gerais por meio de direitos de veto ou acordos contratuais celebrados com outros acionistas.

Não obstante o exposto acima, os clubes citados nos procedimentos, como prova adicional de sua independência, se comprometeram a cumprir as seguintes condições: i) não poderão transferir jogadores entre si, seja de maneira definitiva ou por cessão temporária, direta ou indiretamente, até setembro de 2024; ii) não poderão celebrar qualquer tipo de cooperação, acordos técnicos e/ou comerciais conjuntos; e iii) não poderão utilizar base de dados de olheiros ou jogadores em comum.

Em um primeiro momento, não podemos olvidar que a UEFA, no vazio de uma regulamentação eficiente dos MCO emitida pela FIFA, organização máxima do futebol e, portanto, quem deveria dispor detalhadamente sobre esse tema, infringe a normativa de empréstimos estabelecidas pela FIFA, transacionando algo que era direito dos clubes, garantido pelo artigo 10 do Anexo 3 do RSTP[6].

Por outro lado, a UEFA ainda necessita encontrar o meio termo para evitar o radicalismo, não impedindo ou desestimulando o investimento nos clubes e o desenvolvimento da modalidade, que, obviamente, passa diretamente pelo lado econômico, e, paralelamente, preservar a integridade desportiva. Para isso, faz-se necessário aumentar os debates em torno do tema, com a ampla participação de todos.

Por último, apresentamos o caso derradeiro, que passa diretamente pelo clube mais popular da Itália, já analisado aqui em outra oportunidade[7]. A Juventus sofreu com o processo sobre as “mais-valias suspeitas” em diversas transferências, após ter recebido uma documentação da Covisoc – uma comissão que fiscaliza as equipes profissionais no país. O caso nasce a partir da negociação de alguns jogadores, onde houve suspeita de que essas transações foram feitas para corrigir ou maquiar o balanço financeiro.

O mecanismo, principalmente oriundo da troca de jogadores, requer um registro um valor de saída (receita de venda) e a baixa do registro (custo de saída). Os clubes faziam trocas que contabilmente geram lucro, mas financeiramente não significam movimentação financeira. A Juventus é uma das únicas sociedades italianas a cotizar na bolsa de valores. Com isso, essa suposta falsa informação afetaria todo o mercado financeiro, subindo artificialmente os valores das ações e prejudicando os interessados em adquiri-las, sobretudo a longo prazo.

Posteriormente, a denúncia foi se tornando mais robusta com a descoberta de fatos novos, que objetivavam a burla às regras de Fair Play Financeiro impostas pela UEFA. Nesse contexto, o clube teria recorrido à “manobras corretivas” com o objetivo de “aliviar” os balanços e assim permitir a “permanência no mercado” sem a perda dos jogadores importantes.

Essas medidas corretivas incriminadas teriam sido de dois tipos: as mais-valias “artificiais” ligadas ao mercado de transferências, e, por outro lado, as duas “medidas salariais” realizadas na época 2019/20 e 2020/21, diante da emergência e crise gerada pela pandemia, com a renúncia pública de alguns jogadores a alguns meses de salário, enquanto que existia um acordo privado entre as partes, que garantia o pagamento mesmo em caso de eventual transferência.

Em suma, o resultado seria que os efeitos financeiros decorrentes da avença alcançada constaram como positivos, com a economia de cerca de 90 milhões de euros no exercício de 2019/2020, o que fora confirmado na demonstração financeira do clube. Na verdade, isso jamais ocorreu.

O clube foi punido, internamente na Itália, pela Corte de Apelação da Federação Italiana de Futebol (FIGC), no âmbito desportivo, com a perda de 10 pontos na classificação do Campeonato Italiano, o que acabou resultando na queda de posição na tabela, levando os bianconeri somente a uma qualificação para Conference League[8], longe das tradições da entidade.

A UEFA observou o caso desde o início e, com a decisão definitiva e todas as provas necessárias, o Órgão de Controle Financeiro de Clubes vetou a participação da Juventus na competição, aplicando uma multa na vultosa quantia de 20 milhões de euros devido à recorrente violação às normas de fair play financeiro, pois já havia sendo punida com pena pecuniária em outras oportunidades.[9] Decerto, no caso concreto, a UEFA não pode ser acusada de ter sido branda com um dos clubes mais tradicionais do continente.

Conforme o exposto, as férias europeias foram bastante movimentadas no lado jurídico e, por seu turno, no lado do mercado, ainda restam algumas semanas para o fechamento da janela de transferências, onde novas surpresas e tentações árabes ainda podem ocorrer.

Por derradeiro, mas não menos importante, ressalte-se que, ainda durante a pausa, houve uma decisão do TAS emblemática, que gerou um precedente muito importante para o mundo do futebol, validando o Regulamento de Agentes, instaurado pela FIFA em janeiro. Sem embargo, esse extenso laudo arbitral será centro de outra análise aqui mesmo na Seção Janela Jurídica. Até a próxima!

Crédito imagem: Reuters

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[1] El Tribunal Supremo condena a los acusados por amaño en el caso Osasuna | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE – última consulta: 09.08.2023

[2] Regulations of the UEFA Europa Conference League (kassiesa.net) – última consulta: 09.08.2023

[3] La juez de lo mercantil deniega la cautelar a Osasuna contra la exclusión de UEFA | IUSPORT: EL OTRO LADO DEL DEPORTE – última consulta: 09.08.2023

[4] Multi-club ownership, um território sem lei – Lei em Campo – última consulta: 09.08.2023

[5] The CFCB renders decisions on multi-club ownership cases for the 2023/24 UEFA club competitions | Inside UEFA | UEFA.com – última consulta: 09.08.2023

[6] Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-mayo-de-2023.pdf (fifa.com) – última consulta: 09.08.2023

[7] Um novo escândalo em preto e branco no futebol italiano – Lei em Campo – última consulta: 09.08.2023

[8] Juventus é punida com perda 10 de pontos no Italiano por fraude fiscal | futebol italiano | ge (globo.com) – última consulta: 09.08.2023

[9] Uefa: Fair Play finanziario, ecco le sanzioni: multe per Juve, Inter, Milan e Roma – La Gazzetta dello Sport – última consulta: 09.08.2023

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