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A prescrição no direito desportivo disciplinar

Por Rodrigo Santos

Aqueles que militam na Justiça Desportiva certamente já se depararam com controvérsias acerca da prescrição, importante instituto jurídico que permeia diversos ramos do direito. O presente artigo busca analisar alguns aspectos do instituto e sua relação com o direito desportivo, notadamente no seu aspecto disciplinar.

A Justiça Desportiva no Brasil tem assento constitucional, a ela competindo o julgamento da matéria afeta à “à disciplina e às competições desportivas” (art. 217, §1º da CF/88). Seu funcionamento segue as regras da “Lei Pelé” (Lei 9.6015/98), que, na matéria, não sofreu derrogação pela Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023). Além disso, é regida pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Além de conter regras de direito material, com destaque para dispositivos que descrevem condutas típicas e cominam penalidades, o CBJD também traz regras de índole processual. Na definição de infrações, o código adota formato semelhante ao das normas penais (preceito e sanção).

Nas demais áreas, como o processo e procedimento, o CBJD ora cria institutos próprios, ora importa institutos de outros ramos do direito. Não raramente, contudo, o intérprete depara-se com lacunas, omissões e contradições desse sistema. Aqui reside a difícil tarefa de compor o mosaico do direito desportivo.

Nem sempre é tranquila a compreensão acerca da pretensão punitiva no direito desportivo sancionador.

Uma definição corrente de prescrição é aquela que a conceitua como sendo a “extinção da ação, pela inércia continuada de seu titular, durante um certo lapso de tempo, fixado pela lei[1]. Essa definição ainda não se presta a explicar o fenômeno.

Necessário entender que, violado o direito, nasce para o titular a pretensão. Na lição de Pontes de Miranda[2], pretensão é “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa”.  Toda pretensão tem por fim a sua satisfação. O titular do direito pode buscar satisfazer sua pretensão em juízo ou fora dele (autotutela, nos casos permitidos em lei).

A ação, por sua vez consiste no direito de perseguir em juízo aquilo que se deve. Em geral, para toda pretensão existe uma ação que a assegure, salvo situações excepcionais. A ação nasce quando a pretensão exercida não é satisfeita (o devedor não paga a dívida no vencimento, p ex). Devemos ter isso em mente: a prescrição extingue a pretensão. O Código Civil Brasileiro incorpora essa teoria, tomando por inspiração o § 194 do BGB, o código alemão.

Sendo uma forma de extinção da pretensão, a prescrição é classificada por Pontes de Miranda como um ato-fato lícito caducificante, em cujo suporte fático estão presentes: a) a titularidade de um direito; b) a inação do titular, e; c) a passagem do tempo fixado em lei[3].

A contagem do prazo de prescrição revela nuances a depender do ramo do direito. No direito penal, a contagem se inicia no dia da consumação da infração (CP, art. 111, I), incluindo-se na contagem o dia do começo (CP, art. 10). Já no direito civil, a pretensão surge no momento em que é violado o direito (CC, art. 189), mas a contagem dos prazos de prescrição se dá com a exclusão do dia do começo e a inclusão do dia do vencimento (CC, art. 132), ou seja, tendo início no dia seguinte.

O CBJD regula a prescrição no art. 165-A. Existem ali diversos prazos, variando entre 30 (trinta) dias e 20 (vinte) anos, a depender da infração. Aqui, transcreveremos apenas as regras que com mais frequência são aplicadas na Justiça Desportiva:

Art. 165-A. Prescreve:

§ 1º Em trinta dias, a pretensão punitiva disciplinar da Procuradoria relativa às infrações previstas nos arts. 250 a 258-D. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

§ 2º Em sessenta dias, a pretensão punitiva disciplinar da Procuradoria, quando este Código não lhe haja fixado outro prazo. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

(…)

§ 6º A pretensão punitiva disciplinar conta-se: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

a) do dia em que a infração se consumou; (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

b) do dia em que cessou a atividade infracional, no caso de tentativa; (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

c) do dia em que cessou a permanência ou continuidade, nos casos de infrações permanentes ou continuadas; (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

d) do dia em que o fato se tornou conhecido pela Procuradoria, nos casos em que a infração, por sua natureza, só puder ser conhecida em momento posterior àqueles mencionados nas alíneas anteriores, como nos casos de falsidade. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

A redação do dispositivo é pouco técnica. Não é correto afirmar que “a pretensão punitiva disciplinar conta-se” (art. 165-A). A pretensão, como vimos, é a posição jurídica de poder exigir de outrem a observância do direito. Portanto, a pretensão não é objeto de qualquer contagem. O que é objeto de contagem é o prazo prescricional. De todo modo, parece claro que a regra pretende fazer coincidir o momento de surgimento da pretensão com o da contagem do prazo prescricional, à semelhança do que faz o direito penal.

A hipótese mais frequentemente aplicada no dia a dia da Justiça Desportiva é a do §6º, alínea “a”. Ali, o código enuncia que “conta-se (…) do dia em que a infração se consumou”. A semelhança com o direito penal não é obra do acaso. O direito desportivo disciplinar é ramo do direito sancionador, podendo tomar por empréstimo princípios e institutos do direito penal, à semelhança do que ocorre em outros ramos do direito sancionador, como o direito administrativo, por exemplo[4].

Repare que não é relevante que a súmula do jogo seja elaborada em momento posterior. A contagem da prescrição se inicia no momento da infração. Aliás, é hábito que a súmula da partida seja divulgada dias após.  A Lei Geral do Esporte impõe aos árbitros e delegados das partidas a entrega da súmula e do relatório nas 04 (quatro) horas seguintes ao término do evento (art. 195). Em seguida, as entidades de administração do desporto devem publicizar a súmula até as 14 (catorze) horas do dia terceiro seguinte ao da realização da partida (art. 197). A regra não é nova. Trata-se de mera reprodução de dispositivos do Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/2003), especificamente os artigos 11 e 12. O momento da súmula, portanto, é indiferente para o estabelecimento do dies a quo do prazo prescricional, sobretudo ante a literalidade do CBJD (“conta-se (…) do dia em que a infração se consumou”).

As súmulas são um forte meio de prova, inclusive contando com presunção de veracidade (art. 58), mas de modo algum condicionam ou limitam a atuação da Procuradoria de Justiça Desportiva, a qual pode exercer a pretensão punitiva relativamente a fatos não abarcados pela súmula. Por isso, não restam dúvidas quanto ao início da contagem da prescrição: no instante em que a infração se consumou, ex vi do art. 165-A, §6º, “a”.

Recentemente, contudo, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, através do Pleno, entendeu de forma diversa, sob o argumento de que, com o advento da Lei Geral do Esporte, o prazo prescricional somente teria curso “03 (três) dias uteis após o acontecimento dos fatos”. O acórdão ficou assim ementado:

EMENTA-PRESCRIÇÃONovo prazo para oferecimento da denuncia. Inteligencia do artigo 196 da Lei 14.597 de 14.06.2023 -Lei Geral do Esporte c/c o artigo 165-A do CBJD. Recurso Provido. Prescrição não caracterizada…”

(PROCESSO nº 270-2023; RECURSO VOLUNTÁRIO: Procuradoria da 4ª Comissão Disciplinar; RECORRIDOS: Emanoel Felipe de Lima Ferreira –Médico do Potiguar-RN, Leandro Lucas de França -Massagista do Potiguar e José Genival–Massagista do Iguatu; JULGAMENTO: 18-09-2023; AUDITOR RELATOR: DR. Jorge Ivo Amaral da Silva)

Espera-se que o equívoco seja revisto, sobretudo porque considera como novo algo que, conforme expusemos, existe há pelo menos 20 (vinte) anos, quando entrou em vigor o Estatuto do Torcedor, atualmente revogado pela Lei Geral do Esporte.

Outro aspecto que causa confusão é a regra do caput do art. 43 do CBJD que mimetiza as regras do art. 132 do Código Civil (aplicável à prescrição no direito civil) e do art. 224 do CPC (aplicável ao processo) e enuncia que “os prazos correrão da intimação ou citação e serão contados excluindo-se o dia do começo e incluindo-se o dia do vencimento, salvo disposição em contrário”. A regra está inserida no Livro I (da Justiça Desportiva), Título III (do Processo Desportivo), Capítulo IV (Dos Prazos). Nitidamente a regra é de caráter processual. Aplicável, portanto, aos prazos processuais.

A prescrição, todavia, é instituto de direito material. A norma que enuncia o início da contagem na data da consumação da infração (art. 165-A) está veiculada no Livro II (das medidas disciplinares), Título V (da extinção da punibilidade). Trata-se de regra especial, que afasta a aplicação do art. 43 quanto ao início do curso da prescrição.

Por se tratar de instituto de direito material, há outra importante consequência. Sabe-se que, no direito processual, a lei nova aplica-se imediatamente. No direito material, sobretudo diante de um ramo do direito sancionador, essa solução não pode prevalecer. Assim, qualquer alteração legislativa (ou do CBJD) relativamente ao tema, para ter aplicação aos prazos de prescrição em curso, deve atender aos critérios consagrados no direito penal, afastando-se a aplicação da nova regra prejudicial ao suposto infrator (novatio legis in pejus).

Essa aproximação com o direito penal fica nítida em vários pontos do código, merecendo destaque a proibição expressa de analogia “na definição e qualificação de infrações” (art. 283), adotando-se a tipicidade estrita (nullum crimem nulla poena sine lege).

Quanto ao termo final do prazo de prescrição, o CBJD não traz qualquer regra para solucionar o problema dos prazos cujo termo final se dê num sábado, domingo ou feriados. Aqui, abrem-se duas possibilidades: a) aplicar o modelo vigente no direito penal, sem qualquer prorrogação de prazo, ou; b) aplicar a solução do direito civil (art. 132,§1º), que estabelece que “se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil”.

O art. 283 do CBJD enuncia que os casos omissos e as lacunas serão resolvidos pela aplicação dos: i) princípios gerais de direito, ii) princípios gerais que regem este Código, e; iii) normas internacionais aceitas de cada modalidade. Dentre os princípios gerais, assume relevância o princípio da razoabilidade, que consiste na proibição de excessos.

A prescrição serve para assegurar o primado da segurança jurídica, impedindo a perpetuação de situações jurídicas. No direito desportivo disciplinar, age em favor da parte acusada.

Todavia, deve-se levar em conta algumas peculiaridades da Justiça Desportiva. Trata-se de uma justiça administrativa, mantida pelas entidades de administração do desporto. Em que pese seus órgãos possuam certa independência, com mandatos fixos para seus membros, ainda dependem, para seu funcionamento, de funcionários contratados pelas Federações e Confederações a que estão vinculados. Portanto, os horários de expedientes ou seus plantões variam conforme a política de cada entidade de administração do desporto. Geralmente, a justiça desportiva não funciona aos fins de semana.

Os membros da Justiça Desportiva desempenham um múnus público, um trabalho voluntário. Portanto, diferentemente do que ocorre com o titular da ação penal (o Ministério Público), falta à Procuradoria de Justiça Desportiva meios para atuar em determinados dias. Também não existe um processo judicial eletrônico, o que até permitiria o ajuizamento de ações aos fins de semana e feriados.

Assim, diante desse cenário, não é razoável que, findando o prazo prescricional em dias que não há expediente na entidade de administração do desporto a que está vinculado o órgão da justiça desportiva. Afigura-se irrazoável exigir do Procurador de Justiça Desportiva que ofereça uma denúncia antes do vencimento do prazo, de modo a evitar prescrição. Diante dessa realidade, o recurso à razoabilidade manda aplicar o parágrafo segundo do art. 43 do CBJD, que reproduz a regra do §1º do art. 132 do Código Civil, ao enunciar que “considera-se prorrogado o prazo até o primeiro dia útil se o início ou vencimento cair em sábado, domingo, feriado ou em dia em que não houver expediente normal na sede do órgão judicante”.

Assim, à guisa de conclusão, cabe afirmar:

  1. Violado o direito, nasce para a Procuradoria de Justiça Desportiva a pretensão, a qual se extingue após o decurso do prazo estabelecido no CBJD sem que seja oferecida denúncia.
  2. O direito desportivo guarda semelhanças com o direito penal. Ambos são ramos do direito sancionador.
  3. O CBJD adotou, quanto ao termo inicial da prescrição, redação semelhante à do Código Penal. Regra geral, conta-se do momento em que a infração se consumou (art. 165-A, §6º, “a”), sendo completamente irrelevante os momentos em que a súmula do árbitro e/ou o relatório da partida foram elaborados, entregues ou publicados.
  4. O caput art. 43 do CBJD, regra de natureza processual, não é aplicável à prescrição, em razão da dicção expressa do art. 165-A, §6º, “a”.
  5. O termo final da prescrição será prorrogado para o dia útil seguinte se o vencimento cair em dia em que o órgão da Justiça Desportiva não tenha expediente.
  6. Eventual regra nova que altere a prescrição só terá aplicação aos casos com prazo prescricional em curso se for mais favorável ao réu (redução de prazo). Se ampliar prazo prescricional, não se aplicará às infrações cometidas sob a regra anterior.

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Rodrigo Santos – Advogado (desde 2007). Doutorando em Direito. Mestre em Direito (2014). Procurador-Geral de Justiça Desportiva do Futebol em Pernambuco (2018-atual).

[1] CÂMARA LEAL, Antônio. Da Prescrição e da Decadência. Rio de Janeiro: Forense. Pág. 397

[2] MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, tomo V, p. 451, § 615

[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, tomo VI, 1970

[4] “o processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares” (AgInt no RMS n. 65.486/RO, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 17/8/2021, DJe de 26/8/2021.)

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