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A primeira federação de jiu-jitsu da história e a celeuma Gracie x Gracie (parte 1)

Elthon Costa*

Ricardo Garcia Horta**

INTRODUÇÃO:

Não é novidade para ninguém que o Jiu-jitsu, por muito tempo, foi uma prática marginalizada e vista com maus olhos por muitos brasileiros.

Desde o início do desenvolvimento da modalidade no país, por volta de 1908[1], persistiu a grande dificuldade de se criar uma federação de Jiu-jitsu devido a uma grande repressão do judô[2][3].

Em 1967, fundou-se a Federação de Jiu-Jitsu da Guanabara (hoje a FJJRIO) – a 1ª Federação da modalidade do mundo – com Hélio Gracie como primeiro presidente[4].

A família Gracie, uma família de lutadores brasileiros, de ascendência escocesa, radicados em Belém do Pará, seriam os grandes responsáveis pelo desenvolvimento do estilo de arte marcial brasileiro conhecido hoje como Gracie Jiu-Jitsu, Brazilian Jiu-Jitsu ou BJJ. Eles desenvolveram uma técnica para que um lutador “fraco” pudesse derrotar um oponente mais forte, usando suas técnicas na forma de estrangulamentos, alavancas, imobilizações e torções.

Os integrantes do “Clã Gracie” viriam a popularizar o Jiu-jitsu no Brasil após realizarem “intercâmbios” com Masahiko Kimura e Conde Koma (Mitsuyo Maeda), mestres no Judô[5].

Além disso, ainda que o primeiro evento oficial de MMA, o UFC 1, só tenha ocorrido em 1993 – vencido por Royce Grace – a família já realizava disputas (sempre acordadas e com regras pré-estabelecidas) com praticantes de outras Artes Marciais, como o Boxe, Karatê e Muay Thay, o chamado “Desafio Gracie”[6].

É uma exceção entre os homens na família Gracie não praticar a “arte suave”, ou até mesmo não ser faixa preta. Muitos Gracies, inclusive, são multicampeões mundiais de Jiu-Jitsu, do ADCC e alguns ainda possuem cartéis invejáveis no MMA, sendo dignas de destaque as jornadas combativas de Royce, Renzo, Rickson e Roger Gracie.

É nesse sentido que cresce a importância de um célebre membro do “clã”, Kyra Gracie, que quebrou barreiras na própria família e foi a primeira mulher entre os seus familiares a tornar faixa preta em Jiu-jitsu (hoje, faixa preta 4º grau) e Judô, bem como a conquistar campeonatos, destacando-se os cinco Campeonatos Mundiais de Jiu-jitsu (2004, 2006, 2008, 2010 e 2011); três Campeonatos ADCC World Championship (2005, 2007 e 2011)[7].

No entanto, Kyra se encontra em diferente luta no momento, essa contra os próprios familiares, por conta de disputa pelo comando da federação mais importante da história da “arte suave”, como veremos a seguir.

O CONFLITO ENTRE KENYA e KYRA – FEDERAÇÃO DE JIU-JITSU DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (“FJJRIO”):

É de conhecimento público, há mais de 10 anos, uma disputa interna na família Gracie pelo controle da FEDERAÇÃO DE JIU-JITSU DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – FJJRIO, tendo tal celeuma se iniciado mais precisamente após o afastamento por improbidade administrativa de Flávia Gracie, vice-presidente da Federação à época (mãe de Kyra) por suposta “gestão temerária”[8].

O mais recente episódio dessa luta começou depois que, em Assembleia Geral realizada em dezembro de 2019, Kenya Gracie foi eleita como Presidente da FJJRIO, com mandato vigente de 2019 até o final de 2023[9].

Em 2023, Kyra acabou se apresentando como candidata à presidência para disputar o processo eleitoral relativo à gestão seguinte, tendo o feito logo após a morte do tio, Robson Gracie, ex-presidente da FJJRIO (tendo sido o presidente mais longevo no cargo) e pai da então presidente, Kenya, o que gerou novo problema familiar.

Kyra então formou oposição à Kenya Gracie (Presidente) e Hanna Gracie (Vice-Presidente), tias de Kyra e irmãs de Flávia, mãe de Kyra, tendo recebido o apoio de outros membros da família, como os tios Renzo e Ralph, lendas do Jiu-jitsu.

É digno de nota que as gestões anteriores à de Kenya se originam, sem exceção, de um mesmo núcleo da família Gracie, no qual há troca de acusações de gestão temerária (em que pese a candidata à presidência Kyra nunca ter participado da gestão), não-aprovação de contas e blindagem eletiva, que teriam o suposto objetivo de perpetuar a família no poder, no caso, o núcleo comandado por Kenya e Hanna, filhas do falecido Robson, ex-presidente.

Segundo Reyson Gracie, membro do Clã, Kenya e Hanna (filhas de Carlos) teriam revitalizado a Federação, enquanto a gestão anterior (da mãe de Kyra, Flávia) teria chamado negativamente a atenção do Presidente da CBJJ (Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu), que ameaçou desfiliar a FJJRIO do sistema federativo da modalidade[10].

Ao se apresentar como candidata na mídia, acusou a entidade de ocultar informações sobre o processo eleitoral — como lista de eleitores, data do pleito e demais candidatos:

“Minha advogada foi até a sede da federação para solicitar os documentos, mas infelizmente foi xingada e maltratada. Quando os oficiais de justiça chegaram, o porteiro informou que não estavam mais atendendo ao público. Conseguimos entregar a notificação na casa da presidente, porém até agora não recebemos nenhum documento em resposta”.[11]

Ela alegou, ainda, que foi bloqueada pelo perfil da entidade nas redes sociais ao cobrar transparência da administração. Após estes episódios, decidiu entrar com Ação de Exibição de documentos contra a Federação perante a Justiça Comum[12].

Veremos o desenrolar desse embate na segunda parte desta série.

Crédito imagem: Getty Images

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* Master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía – ISDE). Advogado, professor, palestrante e autor e organizador de livros jurídicos. É membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial, especialista em Direito Desportivo (CERS), pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya), diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe), diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing), diretor do Departamento Jurídico da WAKO Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo). É membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab), membro do núcleo de estudos “O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral” (NTADT), da Faculdade de Direito da USP, auditor do TJDU-DF, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (Coluna “Luta e Desporto”). [email protected].

** Advogado no escritório Garcez e Associados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) e Mestrando em Direito Desportivo na mesma instituição.

[1] DRYSDALE, Robert. Abrindo Closed Guard: As Origens do Jiu-Jitsu no Brasil: A história por trás do filme. Independent Publishing, 2020, p. 15.

[2] SILVA, Elton et al. Muito Antes Do MMA: O legado dos precursores do Vale Tudo no Brasil e no mundo (1845-1934). 1ª. ed. Independently Published, 2020. v. 3, p. 213.

[3] DRYSDALE, Op. cit., p. 69.

[4] A Federação de Jiu-Jitsu da Guanabara (que mais tarde seria conhecida como Federação de Jiu-Jitsu do Rio de Janeiro – FJJRJ), fundada em 1967, foi estabelecida com a autorização do Conselho Nacional de Desportos (CND). O CND foi um órgão administrativo brasileiro extinto em 1993, voltado para os esportes, tendo sido criado pelo Decreto-Lei n. 3.199/41.Apesar da opinião contrária da Confederação Brasileira de Pugilismo (que era a responsável por regular os esportes de combate no Brasil), o CND resolveu aprovar a federação carioca por conta da atuação do lendário advogado Valed Perry e do Dr. Meirelles Quintela, que defenderam a regularização da arte marcial do jiu-jitsu, conseguindo, ao final, uma vitória por unanimidade. SERRANO, Marcial. O Livro Proibido do Jiu-Jitsu: A história que os Gracie não contaram. 2013, p. 232.

[5] SILVA, Op. cit., p. 162.

[6] COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023, p. 40.

[7] DRYSDALE, Op. cit., 290-294.

[8] Desde 2011 a Lei Pelé passou a determinar a responsabilização dos administradores das entidades desportivas profissionais em razão de atos ilícitos praticados, atos de “gestão temerária” ou contrários às normas constitutivas das respectivas entidades desportivas, sejam elas, clubes, federações, confederações ou ligas. Entretanto, somente com o advento da Lei 14.597 de 2023, a definição da prática de “gestão temerária” foi positivada.

[9] MOURA, Athos. Kyra Gracie tem derrota na Justiça em disputa familiar pela Federação de Jiu-Jitsu do Rio de Janeiro. O Globo, 25 ago. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/panorama-esportivo/post/2023/08/kyra-gracie-tem-derrota-na-justica-em-disputa-familiar-pela-federacao-de-jiu-jitsu-do-rio-de-janeiro.ghtml. Acesso em: 30 mar. 2024.

[10] LEMOS, Alexandre. A BRIGA INTERNA NA FAMÍLIA GRACIE PELA FEDERAÇÃO DE JIU JITSU DO RIO DE JANEIRO | Reyson Gracie. Podcast Connect Cast, Youtube, 25 set. 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ChwGqkkToMA. Acesso em: 30 mar. 2024.

[11] MARTINS, André. Kyra Gracie quer comandar federação de jiu-jitsu em meio a racha familiar. Uol Esporte. 07 jun 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2023/07/07/kyra-gracie-busca-poder-de-federacao-de-jiu-jitsu-em-meio-a-racha-familiar.htm#:~:text=Medidas%20tomadas%3A%20%22Minha%20advogada%20foi,estavam%20mais%20atendendo%20ao%20p%C3%BAblico. Acesso em 30 mar 2024.

[12] Processo nº 0902361-54.2023.8.19.0001 (44ª Vara Cível da Comarca da Capital/RJ).

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