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A primeira Federação de Jiu-Jitsu da história e a celeuma Gracie x Gracie (parte 3)

Elthon Costa*

Ricardo Garcia Horta**

Na coluna de hoje, encerrando a série, faremos uma análise sobre todos os litígios judiciais acerca do controle da FJJRio, que giram em torno de Kyra Gracie, candidata à presidente da federação e Kenya Gracie, sua tia e atual presidente.

Vamos a ela.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Da leitura do Estatuto da FJJRIO, depreende-se que somente estão aptos a votarem e serem votados nas Assembleias Gerais[1] Eletivas os “associados”, no entanto, não há definição expressa sobre quem seria estes. Poderiam, pela leitura do documento, serem entendidos como aqueles que pagaram mensalidade à FJJRIO regularmente por, ao menos, 4 anos contínuos.

Além disso, o documento define que estes devem ter participado de pelo menos 3 campeonatos nos últimos 12 meses (como atleta, árbitro ou organizador dos eventos) e que não podem ter recebido qualquer punição nos últimos 4 anos, não especificando o Estatuto se punições perante a Justiça Comum se enquadrariam nesse perfil.

Insta salientar também que, a partir da análise da Ata da Assembleia Geral Eletiva de 2019, apenas um associado de cada Entidade Filiada teria votado.

Nesse sentido, está expresso no Estatuto da FJJRio:

Art. 2; V – São Direitos dos associados fazer-se representar, votando nas Assembleias Gerais;

Art. 14 – Condições para o direito a voto: I) estar em dia com suas atribuições fiscais e legais; II) ter completado mais de 4 anos contínuos de associação; III) participar de, pelo menos, 3 campeonatos nos últimos 12 meses, trabalhando e contribuindo na organização do evento, ou como atleta; IV) não ter recebido qualquer punição nos últimos 4 anos.

Art. 15 – Condições para ser votado: I) estar em gozo dos seus direitos civis e estatutários; II) cumprir as exigências do art. 14; III) passível de reeleição.

Em suas alegações, Kyra afirmou que na Assembleia Geral Ordinária Eletiva de 2019 constavam na Ata da sessão pessoas que não estariam presentes, bem como foram nomeadas à composição do Tribunal de Justiça Desportiva pessoas que também não estavam presentes. Logo, esta deveria ser anulada.

Contudo, esse não foi o entendimento da Justiça Comum.

Portanto, independente das omissões estatutárias alegadas por Kyra, ela não estaria apta a participar das eleições de 2023, por fundamentação dos artigos 14 e 15, tendo sido este o motivo da impugnação de sua candidatura.

Até o momento, a eleição de Kenya não foi impugnada.

OS QUE PENSAM OS ATLETAS?

Pouquíssimos foram os atletas que se manifestaram sobre o litígio, isso é um fato.

Entretanto, diante da ausência da constituição de uma comissão de atletas na FJJRIO, exigência prevista nos artigos 22 e 23, III §2º da Lei 9.615/98 e Artigo 60, Lei 14.597/2023, os atletas poderiam alegar a não representação no processo eleitoral da Federação e pedir a suspensão da eleição.

Realmente não há participação de atletas no processo eleitoral, tendo apenas votado os representantes dos entes filiados (academias).

Todavia, é importante que se destaque o advento das Comissões de Atletas, órgão este responsável por dar voz aos praticantes da modalidade vinculados a uma determinada Federação, bem como garantir a representatividade destes nos processos eleitorais.

Dito isso, pensamos que o cenário ideal seria: 1 representante de cada chapa discutindo melhorias efetivas para o Jiu-jitsu, além de alguém imparcial conduzindo as campanhas na época das eleições para configurar um processo eleitoral claro. Importante salientar que a rotatividade de mandatos é saudável, também.

REFLEXÕES

O Jiu-jitsu, enraizado na história do Rio de Janeiro através da família Gracie, testemunhou sua ascensão de uma prática marginalizada para uma forma de arte marcial amplamente respeitada.

Portanto, a “arte suave” não pode ter sua estrutura organizacional “rachada” ou vulnerável, como no momento, sendo um assunto que é tão poucas vezes ventilado na mídia e, quando é, está atribuído a eventos negativos e não à sua essência de superação, persistência e fair play entre os praticantes.

A resolução do impasse entre Kyra e Kenya não apenas moldará o destino da federação, mas também terá repercussões mais amplas para a comunidade do Jiu-jitsu e para a governança esportiva no país.

Logo, ao longo do texto, não se buscou tratar o impasse como uma briga, luta, rixa, disputa por poder ou conflito familiar, mas sim realizar uma análise jurídica acerca do imbróglio entre Kyra, Kenya e seus apoiadores.

Subsidiariamente, uma análise crítica é necessária, pois, embora as federações das modalidades esportivas mais rentáveis no Brasil possam estar em conformidade com as disposições legais estabelecidas em seus estatutos e regulamentos, a grande maioria, sejam federações antigas ou de esportes recém-criados, carece de estruturas normativas robustas ou, em alguns casos, estão em desacordo com a legislação vigente.

Um exemplo internacional que ressalta a importância da liderança visionária e de estatutos sólidos alinhados com os princípios da lei e da ética esportiva é a Federação de Jiu-Jitsu dos Emirados Árabes Unidos (EAU)[2]. Sob a orientação de uma liderança comprometida com o desenvolvimento e a promoção do Jiu-jitsu, a federação dos EAU alcançou um sucesso notável em níveis nacional e internacional.

Retornando ao cenário do nosso país, isso evidencia uma lacuna significativa entre as normas estatutárias e as exigências jusdesportivas, destacando a necessidade premente de reformas e atualizações nos estatutos das federações esportivas brasileiras.

Tais alterações são fundamentais para garantir uma governança eficaz, transparente e alinhada com os princípios da legalidade, equidade e integridade, além de contribuírem para o fortalecimento do sistema esportivo como um todo.

Uma federação (ou qualquer outra organização) que desrespeita suas disposições estatutárias está agindo de forma contrárias às suas próprias regras e regulamentos.

Assim, as disposições estatutárias representam o conjunto de regras e princípios que governam a entidade e estabelece as diretrizes acerca de seu funcionamento como Organização de Administração Esportiva, conforme denominação dada pela Lei 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte).

Inclusive, de um modo geral, pouco se comenta sobre as fragilidades e conflitos estruturais das Federações. Porém, esse argumento também pode ser usado como uma forma de “derrubar” mandatos e até mesmo uma afronta ao artigo 217 da CRFB/88 e princípio da autonomia desportiva, mas isso é uma outra história. Oss!

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* Master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía – ISDE). Advogado, professor, palestrante e autor e organizador de livros jurídicos. É membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial, especialista em Direito Desportivo (CERS), pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya), diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe), diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing), diretor do Departamento Jurídico da WAKO Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo). É membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab), membro do núcleo de estudos “O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral” (NTADT), da Faculdade de Direito da USP, auditor do TJDU-DF, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (Coluna “Luta e Desporto”). [email protected].

** Advogado no escritório Garcez e Associados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) e Mestrando em Direito Desportivo na mesma instituição.

[1] Conforme expresso no Artigo 19, do Estatuto da Federação, que versa que a Assembleia Geral é o Órgão máximo da FJJRIO.

[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. O cenário legal dos esportes de combate nos emirados árabes unidos. Lei em Campo, 05 de outubro de 2022. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-cenario-legal-dos-esportes-de-combate-nos-emirados-arabes-unidos/ Acesso em 05 de abril de 2024.

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