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A primeira vez

Por Marcelo Azevedo

Não me recordo exatamente qual foi o jogo, mas consigo me lembrar que tudo aconteceu num ensolarado final de tarde, ali por volta das 17:00, se forçar a memória talvez até fosse capaz de apostar que tudo se passou num domingo, afinal este era o dia e horário ideal para se apresentar a alguém um estádio de futebol.

Pois foi neste dia que você levou um menino para ver um jogo e trouxe de volta um filho eternamente ligado a você.

Não sei se você pensou nisso quando escolheu o primeiro jogo que me levaria na vida, se imaginou uma atmosfera perfeita para a minha estreia?

O que será que se passava pela sua cabeça?

São tantas lembranças daquele dia, eu sei, também me questiono se não estou romantizando minhas memórias. Mas se penso isso, rapidamente me corrijo pela convicção de que cada gesto seu, cada pequena experiência que você me fez viver, tudo partiu do capricho de alguém que pensava em todos os detalhes da obra.

Me lembro que não tínhamos carro próprio naquela época, havíamos tido antes, mas era um período de vacas magérrimas. Partimos então de transporte público, o estádio era bem localizado, acesso fácil, além disso tenho para mim que tu já quis me fazer sentir o calor e emoção desde o começo, né?

Depois de alguma espera no ponto, nosso ônibus chegou, eu vibrei quando percebi que o motorista tinha colocado uma bandeira do nosso time no espaço entre o volante e o vidro dianteiro, razão pela qual eu lhe pedi para sentar justamente na cadeira logo atrás dele, assim poderia ir assistindo àquela festa de cores e gentes que jamais havia presenciado. Você permitiu, mas ficou em pé ali do meu lado, num misto de segurança e chefe de torcida. O ônibus seguiu bem cheio, mas a cada instante subiam mais e mais torcedores, o que motivava o festivo motorista a apertar o dedo na buzina para chamar os indecisos a entrar na condução e seguir também para o estádio. Para completar, o sujeito ainda mandava uns cânticos estranhos, que você acompanhava com uns palavrões engraçados num dueto pra lá de improvável. Lembro de dar risada.

Me perguntei se ele era motorista de uma linha ou era o motorista contratado para o jogo. Fiquei com esta dúvida, mas não me lembro de lhe perguntar, até porque a medida que a condução se aproximava no estádio tudo começou a se transformar, uma energia, um magnetismo foi tomando conta do ambiente de tal maneira que não percebi que você já estava na porta, prestes a descer me gritando:

– Ôh, moleque, chegou

Quando entramos no estádio, a minha perplexidade evidenciava uma certa dose de incompreensão. Como poderia tanta gente estar ali para apenas ver um jogo de futebol, aquele esporte que minha mãe dizia que eram 22 homens correndo atrás de uma bola.

Agora você quer saber o que é mais engraçado, pai? Eu não faço a menor ideia contra quem foi o jogo, quem estava em campo correndo atrás da bola, ou ainda pior, quanto foi o placar final. E só há pouco tempo consegui entender a razão. Houve naquele dia um instante mágico, uma momento em que o portal do futebol se abriu para mim.

E sabe quando foi isso?

Na hora que lhe vi comemorando o gol do nosso time.

Não, eu também não sei de quem foi o gol. Mas tem algo que eu me lembro perfeitamente, e lembro de uma maneira tão especial, tão emocionante, que até aqui enquanto escrevo estas linhas para você, aquela cena se constrói em filme no meu prisma.

As suas expressões, a forma como você pulou, o seu grito acompanhado de um olhar enlouquecido, tudo era tão desconhecido para mim. Alguém me carregou nos braços, parecia um estivador de tão grande, bom, ao menos foi assim que me pareceu. Ele me colocou nos ombros e vocês dois se abraçaram. Como assim, como tudo isso aconteceu? Quem era aquele sujeito, como um gol poderia promover tamanha catarse?

Mas foi ali naquele instante, velho, que você me apresentou ao futebol, em que enfim descobri a força deste jogo, foi que eu pude estabelecer a ponte afetiva mais bacana contigo. Olhando para você e aprendendo a gritar gol, imitando-o sem entender direito o significado de tudo aquilo.

É óbvio que não fui capaz de racionalizar tudo isso naquele instante, mas observe agora algo que nunca tive a chance de lhe dizer. Perceba a cronologia dos fatos. Primeiro veio o olhar para você, cheio de surpresa, deslumbramento e perplexidade, nos conectando de uma forma absolutamente desconhecida. Somente depois, muito depois, é que veio a compreensão do que acontecia em campo.

E isso faz tanto sentido para mim. Naquele dia você não me levou apenas para assistir pela primeira vez a uma partida de futebol. Ali, naquele dia, construímos a possibilidade de nos apresentar um ao outro, de sermos mais do que parecíamos na rotina do dia a dia. Eu, uma criança, você, um adulto, pai e filho, juntos num abraço que criou a infinitude do amor.

O futebol criou a ambiência perfeita para que ao longo da vida nos tornássemos ainda mais amigos e companheiros. Tão amigos que me sigo me sentindo conectado a você toda vez que nosso time entra em campo para jogar, por mais que isso ainda me confunda, tamanha a força da sua presença. Não é fácil não poder lhe abraçar mais, não poder correr o Brasil para vermos jogos juntos, levando você sentado no banco atrás do motorista, agora comigo em pé do seu lado.

Como eu gostaria de ter tido esta oportunidade só um pouco mais.

Definitivamente você não era um sujeito carinhoso, mas hoje entendo você, entendo seu jeito, entendo cada decisão, cada escolha, cara erro. E o compreendo cada vez mais, porque a sua ausência criou a companhia da saudade sorrateira, aquela que chega sem avisar, apenas chega e se senta ao lado. Então esta ausência me faz entendê-lo como nunca antes. Por isso me tocou tanto um texto de Carpinejar, um autor que não sei se cheguei a lhe apresentar, até porque você só gostava mesmo era de ler seu jornal diário. Todo ele, política, esportes e até quem havia morrido. Sim, você me ensinou isso também.

Voltemos a Carpinejar, ele escreveu sobre  um fenômeno pouco estudado ainda, o DNA da saudade. Pai, ele diz que quando você perde alguém que ama, assume a gratidão dos hábitos, evidencia as semelhanças, você lembra mais dos gestos e nega menos as diferenças. Esforça-se para que a pessoa não desapareça, incorporando conselhos e manias. Diante da ausência, você já muda e se propõe a uma homenagem consciente. A saudade vai moldando os nossos traços para a plena aceitação daquele que nos antecedeu ou nos acompanhou ao longo da convivência.

Eu cresci dizendo que gosto mais do nosso clube que de futebol. Mas chegando aos 50 anos, finalmente entendi que amo tanto o futebol, quanto o nosso clube, porque eles me fazem criar a mais perfeita ligação até você, meu velho. Simbolicamente, de alguma forma que faz sentido íntimo, mantenho viva estas expressões em mim porque sei que elas expressam parte da sua ancestralidade que pretendo fazer chegar aos nossos descendentes.

Em breve levarei suas netas para ver um jogo pela primeira vez. Talvez conte esta história para elas antes. Talvez as deixe simplesmente viver a experiência. Não sei ainda. Mas algo tenho certeza. Ao sair um gol do nosso time e elas me virem vibrando, parte de você estará presente ali. E a infinitude do amor, terá enfim, atravessado o tempo.

Até um dia, Zeva!

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Marcelo Azevedo é formado em Administração de Empresas com MBA em Gestão de Negócios. Publicitário por adoção, atua há mais de 30 anos liderando áreas de gestão e finanças. É convicto da força que o ecossistema do futebol pode produzir ao seu entorno.  Torcedor raiz, é um amante do jogo bem jogado, da boa disputa, mas gostar, gostar mesmo, ele gosta é do Botafogo, até mais do que do futebol. É sócio do Futebol S/A

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