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A questão do técnico não é só técnica

Por Cáscio Cardoso

Esse texto é quase uma soma de elucubrações, uma conversa do “eu comigo mesmo” que certamente seria despejada na mesa do bar ou na dispersão de uma sala de reunião e eu gostaria de compartilhar aqui com você. É sobre técnicos de futebol no Brasil, o intercâmbio promovido pela “invasão” estrangeira e as reações dos brasileiros enciumados. Já escrevi sobre técnicos outras vezes aqui no Lei Em Campo, aqui e aqui, é um assunto que me interessa demais. Vamos lá: técnicos estrangeiros à frente de clubes brasileiros somaram muitas conquistas nos últimos anos. A Libertadores da América, vencida por Jorge Jesus e por Abel Ferreira, duas vezes, a Supercopa do Brasil, vencida por Jorge Jesus e Turco Mohamed, o Brasileirão, vencido por Jorge Jesus (Abel Ferreira “loading”), a Copa do Brasil, com Abel Ferreira, e até Copa do Nordeste, com o Fortaleza de Vojvoda, consolidaram a percepção nos dirigentes, torcedores e na comunidade esportiva de que “se é gringo, é bom”.  O processo de “globalização” da função em nosso futebol, a partir daí, se deu de forma rápida e, sem surpresas, atabalhoada. Como se o passaporte dos técnicos estrangeiros fossem cartas de “Supertrunfo” , os clubes correram na mesma direção, da histeria coletiva, para contratar técnicos estrangeiros como se eles fossem resolver problemas de clubes sem gestão, sem dinheiro, sem planejamento, sem organização, sem convicção de seus passos. Em 2021, clubes médios em âmbito nacional como Bahia e Sport buscaram Diego Dabove e Gustavo Florentin, por exemplo. Caíram pra série B. Em 2022, em determinado momento da série A, metade dos times tinham técnicos estrangeiros e a “grita” era grande dos alguns incomodados e/ou acomodados técnicos brasucas. Pois bem, vejamos o outro lado da moeda: nos últimos anos o técnico brasileiro Cuca ganhou a Copa do Brasil em 2021 e o Brasileiro do mesmo ano. Rogério Ceni ganhou o Brasileiro de 2020 e a Supercopa do Brasil de 2021. Ganhou também a Copa do Nordeste de 2019. A Libertadores de 2022 terá um técnico brasileiro campeão: Dorival Jr ou Felipão, campeão brasileiro de 2018. Alberto Valentim foi campeão da Sul-Americana 2021. Tiago Nunes campeão da Sul-Americana 2018 e da Copa do Brasil 2019. Agora, observemos: Todas essas conquistas citadas desde início do texto até aqui orbitam em torno de poucos clubes. Flamengo, Palmeiras, Atlético-MG, Athletico-PR e Fortaleza. 19 títulos e prováveis títulos nas mãos de apenas 5 clubes. Com técnicos estrangeiros ou não, basta um pouco de atenção para percebermos que a organização, os processos bem estabelecidos e a capacidade financeira dos clubes fazem muito mais a diferença do que a nacionalidade de quem comanda o time à beira do gramado. Mas, porque sendo mais organizados ou com mais poder de compra, com bons processos internos e profissionais de bastidores mais qualificados, esses clubes buscam tantos estrangeiros? Dá pra entender porque os desorganizados, grandes, médios e até pequenos clubes foram atrás de técnicos estrangeiros, como em um estouro de boiada, se apegando em milagres do idioma distinto e do sotaque. Mas e os grandes e médios endinheirados e organizados? Porque fizeram e seguem fazendo escolhas por estrangeiros? Porque, de forma geral, falta confiança no trabalho dos técnicos brasileiros? Relações rapidamente desgastadas e pouco tempo de trabalho aceleraram o esfarelamento da reputação de técnicos brasileiros e alguns desses técnicos ajudam na percepção de que  estão atrasados em alguns aspectos, quando comentam o assunto, a exemplo de Jorginho, que boquirretou contra Abel Ferreira, enquanto técnico do Atletico (GO), ou Renato Gaúcho, do Grêmio, que falou um monte sobre o Flamengo com Jorge Jesus mas quando assumiu o rubro-negro carioca, no fim das contas, não venceu nem convenceu. Declarações toscas como as recentes de Oswaldo de Oliveira e Luxemburgo  sobre técnicos estrangeiros e sobre táticas, sugerem um protecionismo arcaico,  sem argumento e reforçam esse sentimento de figuras “inseguras”. E não só isso: no exercício da função, posturas como a do próprio Jorginho, quando alegou problemas familiares para deixar o Ceará com pouco tempo de trabalho e logo apareceu no Vasco reforçam esse sentimento de enfraquecimento dos nossos profissionais. O que falar de Lisca, que fez juras de amor ao Sport; fechou com o clube pernambucano, começou o trabalho prometendo longevidade, mas logo depois aceitou convite do Santos, e usou a reação da torcida a essa novidade como motivo pra sair, escancarando uma falta de coragem absurda de lidar com suas próprias escolhas? Esse papelão diante de posturas mais éticas e até leais a projetos, como por exemplo de Abel Ferreira e Juan Pablo Vojvoda, aumentam a desconfiança. Abel e Vojvoda, dois dos técnicos que foram sustentados por seus clubes em momentos bem difíceis de resultados  e sustentaram a palavra com esses mesmos clubes quando tiveram propostas pra sair e viveram bons momentos, são dois dos mais longevos trabalhos de clubes brasileiros e dois dos melhores trabalhos na relação tempo x qualidade. Sobrevivem em um país onde a média de permanência de um técnico é de 168 dias, pouco menos de 6 meses, o que corresponde a menos que o dobro de um período de experiência em uma empresa. E isso certamente não se dá só pelo campo.

Eu acho muito interessante que o futebol brasileiro tenha aberto as portas para técnicos de outros países, culturas e formações esportivas. Isso promove o enriquecimento de ideias e debates, que pode nos incluir no que de melhor está acontecendo no mundo, mas lamento que os maiores potenciais beneficiados por isso, os técnicos brasileiros, de forma geral, dêem pouca importância e até reajam de forma negativa a esse fenômeno. Muitos até que já foram a outros países trabalhar e foram muito bem recebidos lá, aqui agem de forma  infantil. E não tiram melhor proveito da situação. Estamos falando de técnicos que não vão sofrer com problemas financeiros por estarem vendo cargos ocupados por estrangeiros. São profissionais resolvidos financeiramente, que se apegam muito mais na vaidade, no preconceito, no “jogar pra torcida” da classe do que por sentir o risco da escassez financeira. Uma pena. É bem verdade que, no momento, vemos algumas “reações” da turma brasileira dentro de campo, com Mano Menezes no Inter, Luiz Felipe Scolari no Athletico, Dorival Júnior no Flamengo (que largou o trabalho no Ceará para assumir o clube carioca) , de Fernando Diniz no Fluminense, mas a Copa está chegando e será a despedida do técnico da seleção, Tite. Quem você acha que poderia substituí-lo? Em quem você confia, de forma mais ampla, para conduzir a seleção brasileira a partir de janeiro? Será um estrangeiro? Estamos prontos para esse passo? Não consigo responder essas perguntas, só consigo me sentir desconfortável pra dizer que o problema dos técnicos do Brasil não é só técnico. Como bom brasuca, não faço a menor ideia de quem escalar.

Crédito imagem: Lucas Emanuel/Agif/Gazeta Press

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Cáscio Cardoso é apresentador e comentarista esportivo da TV Aratu (SBT), da Rádio Sociedade da Bahia, do Podcast 45 Minutos e do Futebol S/A. Acredita em um futebol melhor a partir do aprofundamento das ideias e do equilíbrio na relação entre paixão e razão na condução do esporte mais encantador do mundo. É sócio do Futebol S/A.

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