Introdução
Em artigo anterior, discorri sobre a possibilidade de edição de normas regulamentadoras que protejam a saúde dos atletas da luta, nos moldes do art. 200 da CLT.[1]
As Normas Regulamentadoras (NRs) são disposições complementares ao Capítulo V (Da Segurança e da Medicina do Trabalho) do Título II da CLT, com redação dada pela Lei n. 6.514/1977, que estabelecem um feixe de obrigações técnicas aos empregadores e aos trabalhadores com vistas a garantir um trabalho seguro e sadio, prevenindo a ocorrência de doenças e acidentes relacionados ao trabalho.[2]
Atualmente, tais normas regulamentadoras são elaboradas e revisadas por meio de grupos e comissões compostas por representantes do governo, de empregadores e de trabalhadores, em um sistema tripartite paritário. As NRs corporificam um sistema regulatório direcionado à redução dos riscos inerentes ao trabalho a partir dos parâmetros fixados pela lei trabalhista, aberto, portanto, para integração por normas sanitárias e ambientais, todas exigíveis daqueles que têm o dever de manter o MAT (Meio Ambiente do Trabalho) equilibrado.[3]
A ideia seria que uma NR direcionada aos profissionais de luta teria o condão de implementar um MAT mais razoável aos lutadores, em que pesem os riscos inerentes à profissão, o que também é o caso de várias profissões que já possuem suas próprias NRs como tentativas de minoração de risco.
A Encefalopatia traumática crônica e os riscos da profissão de lutador
Sobre a questão dos riscos de lesões na luta, um dos problemas mais delicados é a da encefalopatia traumática crônica (ETC), doença degenerativa progressiva do cérebro que pode ocorrer após trauma craniano repetitivo.
Em um estudo intitulado Lack of Association of Informant-Reported Traumatic Brain Injury and Chronic Traumatic Encephalopathy (Falta de associação entre lesão cerebral traumática relatada por informantes e encefalopatia traumática crônica), os pesquisadores examinaram dados de 580 indivíduos falecidos que foram expostos a repetidos choques cerebrais causados pelo futebol.
A ETC foi encontrada em 405 desses indivíduos. Entre os participantes, 213 relataram pelo menos uma lesão cerebral traumática sem perda de consciência. 345 tinham pelo menos uma lesão cerebral com perda de consciência e, desses, 36 tinham pelo menos uma lesão cerebral moderada a grave. 22 participantes não relataram nenhum traumatismo cranioencefálico anterior.[4]
O esporte de combate é um esporte perigoso. Uma em cada 5.000 lutas de boxe profissional termina em morte por trauma cerebral.[5]
Mês passado, o peso-pesado Ardi Ndembo morreu após sofrer uma derrota por nocaute em uma luta em 5 de abril de 2024 em Miami. Ele ficou inconsciente por vários minutos após sua derrota e foi colocado em um coma induzido. Ele permaneceu em coma até falecer.[6]
Em que pese ainda não se ter à disposição informações fidedignas sobre a questão da saúde do atleta, fato é que, havendo risco nesse tipo de profissão, o que ocorre também aqui em nosso país, o poder público deveria intervir para editar normas que garantam a segurança dos profissionais que se aventuram em tal labor, lembrando que muitos casos assim no Brasil sequer chegam a serem conhecidos pelo público.
A Profissionalização do atleta da luta e a regulamentação da saúde e segurança de seu MAT
Quando à figura do lutador, se seria atleta profissional ou não para efeitos de regulamentação da profissão, convém ressaltar que a nova Lei Geral do Esporte já considera o atleta da luta como profissional, se não, vejamos:
LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023
(…)
Subseção II
Dos Atletas
Art. 72. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.
Parágrafo único. Considera-se atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração.
Dessarte, se o lutador compete em alto nível, de forma remunerada (seja por bolsa ou prêmio da competição etc.) e de maneira permanente, auferindo dessa atividade sua principal fonte de renda, estar-se-á diante da figura do atleta profissional.[7]
Como a evolução histórica das normas de saúde e trabalho tem sido influenciada por fatores como a conscientização sobre a saúde e a segurança em determinados ramos profissionais, é hora de se olhar com mais cuidado para a luta.
Nesse ínterim, a própria Organização Internacional do Trabalho já enxerga o atleta da luta como alguém cuja saúde deve ser observada:
Em alguns esportes, especialmente os individuais, os atletas são considerados “contratantes independentes”, recebendo remuneração pela participação em ligas e jogos, mas não necessariamente se qualificam para negociar coletivamente ou para receber benefícios como licença remunerada e proteção social. Esse é o caso dos atletas de vários torneios de golfe e dos lutadores do UFC e da World Wrestling Entertainment.
(…) É importante distinguir entre os impactos de curto e longo prazo das lesões. Enquanto algumas lesões menores podem deixar os atletas fora de ação por apenas algumas semanas, outras podem ter impactos para toda a vida ou até mesmo ser fatais. Talvez a conversa mais importante sobre esse assunto na última década tenha sido sobre os impactos das concussões em atletas de esportes de contato.[8] (tradução nossa)
A Constituição da República de 1988 assegura a todos, em seu art. 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se, ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O art. 7.°, inciso XXII, por sua vez, garante a todos os trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.[9]
Diante deste cenário, a edição de uma norma regulamentadora capaz de garantir a segurança dos atletas profissionais da luta seria uma abordagem necessária.
Considerações finais
Embora o esporte da luta seja perigoso, existem controles para evitar que lutadores compitam logo após serem nocauteados em outros países. Essa política precisa chegar ao Brasil.
Uma NR (aliada à “Lei do Nocaute”, como falamos[10]) capaz de apontar quais os exames necessários para que se diga se determinado atleta está apto a competir e também que diga quais os procedimentos que cada contratante deve fazer para minorar os riscos, pode ser um marco para a saúde e segurança dos atletas da luta em nosso país, não deixando de ser uma opção também para os atletas das demais modalidades.
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[1] COSTA, Elthon José Gusmão da. PL 3.559/20: Uma solução para a garantia da saúde de atletas da luta pós-nocaute. Migalhas, Brasil, 16 maio 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/407420/pl-3-559-20-garantia-da-saude-de-atletas-da-luta-pos-nocaute. Acesso em: 19 maio 2024.
[2] ZIMMERMANN, Cirlene Luiza. A INSUFICIÊNCIA DAS NORMAS REGULAMENTADORAS PARA A EFETIVIDADE DA PREVENÇÃO DE ACIDENTES E ADOECIMENTOS RELACIONADOS AO TRABALHO. In: DELGADO, Maurício Godinho et al, (org.). Normas Regulamentadoras (NR) relativas à Segurança e Medicina do Trabalho: Percursos para a Efetividade do Trabalho Decente: Coleção estudos Enamat. Brasil: ENAMAT, fev 2023. v. 2, p. 99-122.
[3] Idem.
[4] MACGRAKEN, Erik. Study – CTE Linked With Repeated Brain Rattling, Not Individual Brain Injuries. Combat Sport Law, EUA, 18 abr. 2024. Disponível em: https://combatsportslaw.com/2024/04/18/study-cte-linked-with-repeated-brain-rattling-not-individual-brain-injuries/. Acesso em: 19 maio 2024.
[5] No estudo, intitulado “Mortality Resulting From Head Injury In Professional Boxing Revisited” (Mortalidade resultante de lesões na cabeça no boxe profissional revisitada), os médicos analisaram as mortalidades relatadas em todo o mundo por lesões na cabeça no boxe profissional de 2000 a 2019. Essas mortes foram retiradas da Coleção de Fatalidades de Boxe Manuel Velázquez. As entradas de qualificação foram verificadas usando o BoxRec. As fatalidades incluídas foram então analisadas com outras variáveis, incluindo idade, ano da morte, se a luta terminou em KO ou TKO, resultado da luta, número de rounds, classe de peso, local da luta e muito mais. Ver mais em: https://ringsidearp.org/wp-content/uploads/2021/10/ARP-Vol4-Iss1_Supplement.pdf.
[6] https://revistamonet.globo.com/esportes/noticia/2024/04/boxeador-de-27-anos-morre-apos-coma-causado-por-primeiro-nocaute-da-carreira-e-comocao-toma-conta-das-redes.ghtml.
[7] COSTA, Elthon José Gusmão da; COSTA, Maria Luisa Borba da. O Contrato Desportivo do Atleta de MMA à Luz do Direito Trabalhista Brasileiro. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães et al. Direito do Trabalho Desportivo: Panorama, Crítica e Porvir: estudos em homenagem aos ministros Pedro Paulo Teixeira Manus e Walmir Oliveira da Costa in memoriam. 1. ed. Campinas, SP: Lacier, 2024. p. 169-181.
[8] Decent work in the world of sport, Issues paper for discussion at the Global Dialogue Forum on Decent Work in the World of Sport. Geneva, 22 January 2020. International Labour Office, Sectoral Policies Department, Geneva, ILO, 2019. Disponível em: https://webapps.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_dialogue/—sector/documents/meetingdocument/wcms_728119.pdf. Acesso em: 2 mai. 2024.
[9] ZIMMERMANN, Op. cit., P. 101.
[10] COSTA, Op. Cit.