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A responsabilização criminal quanto à prática do desporto de combate no Brasil e na Espanha

Em minha obra, “Aspectos Jurídicos do Desporto MMA”, discorri, no capítulo 10, sobre a previsão legal criminal quanto à prática esportiva da modalidade.

No capítulo, trato da legislação brasileira em relação à exclusão de ilicitude quando do exercício regular de direito, previsão do art. 23 do Código Penal, in verbis:

Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I – em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II – em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 779)

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Excesso punível (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Estado de necessidade

Muito embora o ordenamento jurídico brasileiro contenha previsão que autorize a prática do MMA sem maiores dificuldades para o atleta em relação à possível enquadramento criminal, verdade é que a lei é inespecífica no Brasil nesse sentido.

Em que pese tal afirmação a doutrina brasileira é forte no sentido de aceitação do MMA e demais modalidades de combate desportivo em relação à licitude da prática, conforme Motta (2017[1]):

Quanto aos direitos incentivados ou fomentados pela ordem jurídica, dá-se especial destaque à pratica desportiva de viés violento, que necessariamente acarretam lesões corporais, tais como, boxe, karatê, kung-fu, etc. Imperioso se realçar que a prática dos desportos em geral é uma atividade fomentada pelo art. 217 da CF. (3) A Lei Maior não excepciona dessa área de fomento a prática de esportes violentos. Como o exercício regular desses esportes implica necessariamente uma lesão ao bem jurídico saúde e integridade corporal, forçoso é reconhecer que as lesões sofridas durante a sua prática não são eventos típicos, estando as condutas que as ocasionam amparadas pelo exercício regular de direito que, no caso, atua como excludente da tipicidade.

Para se chegar a essa conclusão, considera-se, repita-se, que o exercício regular de direito tem dupla natureza jurídica: causa de exclusão da ilicitude (art.23, III, do CP) e causa de exclusão da tipicidade. O não reconhecimento das lesões ocorridas durante a prática de esportes violentos como fatos típicos é fundamentado, invocando-se o instituto do concurso (conflito) aparente de normas. Efetivamente, nessas práticas desportivas que geram resultados lesivos, se observa a presença de duas normas aparentemente em conflito: a) a norma geral, pressuposta pelo tipo, que se dirige a todas as pessoas e que proíbe a ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem, (art. 129 do CP), e b) a norma especial que fomenta a prática dos esportes, violentos ou não (CF, art. 217), que se dirige aos atletas e aficionados que praticam esses esportes. Efetivamente, fomentar implica direcionar a conduta a um determinado fim (equivalente a uma norma imperativa: pratiquem atividades desportivas!).

O princípio da especialidade é que resolve esse aparente conflito. As condutas dos envolvidos no exercício desses esportes violentos, que obrigatoriamente causam lesões corporais, se ajustam, como mencionado, a duas normas: a norma geral, que proíbe a ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem e a norma especial, que fomenta a sua prática. Como a norma especial sempre prevalece sobre a norma geral (BOBBIO, 1997, p.95 e 96) o preceito constitucional que fomenta a prática desses esportes, incentivando e dirigindo o comportamento ao seu exercício, prevalece sobre o que proíbe a ofensa à integridade corporal. De fato, seria um contrassenso o Estado proibir aquilo que ele mesmo incentiva e fomenta.

Com essa afirmativa chega-se à conclusão de que a conduta dos praticantes desses esportes fomentados pela ordem jurídica, realizada com total observância de suas regras, que, no exercício regular de seu direito, ofendem forçosamente a integridade corporal e a saúde de seus contendores é atípica, pois não é antinormativa face à presença de fomento estatal, que incentiva a sua prática : não se pode proibir condutas que o Estado fomenta!

Isso explica o porquê de as lesões ocorridas nas práticas desses esportes não serem objeto de qualquer persecução penal, embora conhecidas pelas autoridades estatais. “Este entendimento preserva o nexo de harmonia que deve existir entre o direito material e o direito instrumental, evitando, consequentemente, as perplexidades decorrentes da consideração das entidades jurídicas em exame exclusivamente como causas de exclusão da ilicitude, não obstante os autores das mencionadas condutas “típicas” não serem submetidos a qualquer procedimento persecutório, o que seria um contrassenso.” (MOTTA, 2000, p.100).

Em alguns países as artes marciais e os esportes de combate são firmemente regulamentados e controlados, como no caso do Chile, que desde 1984 tem uma regulamentação sólida e rigorosa de 51 artigos que estabelece o Controle das Artes Marciais.

Na Espanha, a lei permite que a pessoa atacada se defenda mesmo à custa de prejudicar os direitos dos outros, mas sempre dentro dos limites estabelecidos no Código Penal Espanhol.

A lei espanhol, tal qual a brasileira, estabelece que o exercício de direito também é uma prerrogativa de isenção de responsabilidade criminal, conforme estabelecido no Artigo 20 do Código Penal Espanhol, Seção 7, in verbis:

Artigo 20.

Ficam isentos de responsabilidade criminal

(…)

  1. qualquer pessoa que aja em cumprimento de um dever ou no exercício legítimo de um direito, cargo ou posição. (grifo meu)

O artigo supra é o motivador da “tese da causa de justificação do exercício regular de um direito ou ofício”. Tal tese compreende o sujeito ativo como um cumpridor fiel da prática do esporte para que possa ser legitimado o exercício do direito pretendido.

Nesse caso, para que exista exclusão da responsabilidade penal, seria necessária a observação das normas de cuidado, gerais e especiais, por isso, a conduta, para fins penais, deixaria de ser negligente[2].

No artigo 155 do Código Penal Espanhol, o consentimento do atleta surge como uma prerrogativa para uma “autorização” da lesão esportiva, veja-se, pois:

Artigo 155.

No delito de lesão, se o consentimento válido, livre, espontâneo e expresso da parte ofendida tiver sido dado, a pena será um ou dois graus mais baixa.

O famoso “consentimento” do atleta agora entra em jogo como uma causa de exoneração de responsabilidade criminal. No supracitado artigo, podemos ver como o legislador aplica a redução da pena quando o consentimento da pessoa agredida é dado.

Porém, o consentimento que se entende ser assumido pelo atleta ao praticar um esporte não é o consentimento para sofrer uma lesão, mas sim o consentimento para o risco de que ela ocorra.

Mesmo dentro desta suposição de risco pelo esportista, teremos que estar cientes da observação na lesão das regras do jogo pelo agressor para a aplicação das regras penais ou disciplinares.

Devemos concluir, portanto, que quem pratica qualquer esporte legitimado pelo Estado, no exercício de um direito ou profissão, obedecendo às regras reguladoras desse esporte, com o dever objetivo de cuidado e sem exceder o nível de risco assumido pela vítima, não será o autor de uma infração penal, ficando sua eventual ação reprovável à disposição dos poderes sancionadores atribuídos pela lex sportiva a entidades desportivas para efeitos de punição.

Crédito imagem: GettyImages

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REFERÊNCIAS

COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2022.

[1] MOTTA, Ivan Martins. Natureza jurídica das lesões ocorridas na prática de desportos violentos e seus reflexos processuais penais. Boletim, IBCCRIM, ano 2017, n. 298. set. 2017. Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6034-Natureza-juridica-das-lesoes-ocorridas-na-pratica-de-desportos-violentos-e-seus-reflexos-processuais-penais. Acesso em: 1 nov. 2022.

[2] BEM, Leonardo Schimitt de et al, (coord.). Direito desportivo e conexões com o direito penal. 1ª. ed. Curitiba: Juruá, 2014. p. 458

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