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A ressuscitação do passe (PL 3353/2021): teratologia jurídica made in Brazil

A notícia que certamente chama mais atenção durante esta semana é o avanço do famigerado projeto de lei n. 3353/2021 que pretende a ressuscitação do instituto do passe com uma agravante extremamente sem nexo: determinar que a partir dos 14 anos os atletas de futebol serão considerados autônomos, segundo a informação do noticiário.[1]

Uma proposta made in Brazil como o PL n. 3353/2021 não encontra paralelo em nenhum país do mundo, nem mesmo nos Estados Unidos da América que vive o atual free agency sem nenhuma norma ou sequer proposta de norma que vise a restaurar o passe (conhecido no país anglo-saxão de reserve clauses).

Se compararmos com os demais países europeus onde o futebol profissional é forte, também inexiste qualquer norma ou projeto de lei que revide o famigerado passe.

Na Europa o passe restou conhecido por cláusulas de transferências, abolidas desde o caso Bosman e sem possibilidade de retorno em todos os países da Comunidade Europeia.

Um ressurgimento do instituto do passe na Europa seria afronta aos tratados de constituição da União Europeia (UE), pois conforme o declarado na sentença Bosman, reiteradamente confirmado em outros processos, violaria a não discriminação, a liberdade de circulação e de residência dos cidadãos atletas entre as nações comunitárias, todos princípios de integração da UE.

Voltando ao Brasil, o PL n. 3353/21 ao pretender o restabelecimento do passe se afigura uma proposta teratológica, sem nenhum nexo filológico, radicalmente contraditório, primeiro porque propõe o renascimento do passe, mas ao mesmo tempo explicita que o atleta a partir dos 14 anos será autônomo. Afinal será um autônomo com o instituto do passe a lhe prender?

Autonomia pressupõe que o sujeito prestador do serviço detém total liberdade na sua prestação, rejeitando a subordinação e a pessoalidade, o que sabemos ser impossível no labor do jogador profissional. Nenhum clube empregador contrata um atleta para que outro jogue em seu lugar e quase nenhum time brasileiro permite se abdicar do período de concentração para os atletas. Isto para não mencionar as outras espécies de tempo à disposição: treinos, pré-temporada, preleção, recuperação, viagens a que se submetem os praticantes esportivos profissionais.

Antes de ser extinto no Brasil, com o advento do art. 28 da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé), o passe era o único instituto jurídico sobrevivente que se aludia à escravidão, inclusive tolerado pela jurisprudência do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, representava que o vínculo desportivo perdurava mesmo após a extinção do contrato de trabalho atlético, o que só permitia o atleta contratar com outro clube contratante se o atual empregador recebesse um valor estipulado pela sua transferência.

Sob os auspícios do passe, o jogador supostamente sujeito de uma relação jurídica trabalhista tinha um valor estipulado para que pudesse exercer a sua profissão. Sem a quitação “do seu preço” o atleta não era livre para exercer o seu trabalho, mesmo após a extinção do seu contrato de trabalho desportivo.

Consoante já publicamos, repetidamente, em vários periódicos e no livro “Curso de Direito do Trabalho Desportivo. 2. ed. Editora Juspodivm, 2022”, o decrépito passe reifica (coisifica) o trabalho dos atletas profissionais de futebol, pois restringe intensamente a liberdade de trabalho (art. 5o, XIII, da CF/88), e por tabela transgride a valorização social do trabalho e da livre iniciativa, a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, IV, da CF/88), a não discriminação e a igualdade perante os outros tipos de labor (arts. 3o,IV, art. 5o, caput, da CF/88), o primado do trabalho (art. 193, caput, da CF/88), etc. Todos estes são pilares integrantes dos direitos humanos fundamentais de primeira e segunda dimensões.

Tal projeto de lei é eivado não apenas de inconstitucionalidade, mas também de inconvencionalidade, na medida em que infringe tratados internacionais que o Brasil ratificou sobre o direito de livre acesso e exercício de labor em nosso ordenamento jurídico, tais como: art. 23/1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; arts. 5o e 6o do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; art. 2o/1/a) da Declaração Sociolaboral do Mercosul; item I do anexo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT – Declaração de Filadélfia) e art. 2o da Convenção n. 111 da OIT.

Segundo se extrai do discorrido acima, se existir realmente uma Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) a atuar no PL n. 3353/21, seus componentes esclarecerão o quanto ele se revela inconstitucional e inconvencional – um verdadeiro prato cheio para os plenários do Colendo Tribunal Superior do Trabalho e do Excelso Supremo Tribunal Federal.

O Rei do futebol, recém falecido Pelé, importante personalidade negra, participante da abolição da Lei n. 6.354/1976 (Lei do Passe), que até hoje empresta seu nome famoso à Lei n. 9.615/1998 deve estar densamente triste pelo retrocesso congressista do Brasil.

A “onda bolsonarista” parece ter saído do Poder Executivo Brasileiro, mas decerto não saiu do Congresso Nacional do Brasil. A filosofia congressista de expelir para a sociedade normas jurídicas opressoras e violadoras de toda a ordem jurídica brasileira e internacional persiste, tudo para manter o desequilíbrio social, que ganha contornos e destaques no esporte profissional também.

At last but not least, a ressuscitação do passe é tão ultrapassada e disforme que, atualmente, se ela passar na votação do Congresso, servirá tão somente para subjugar mais ainda os atletas hipossuficientes, iniciantes de carreira, sem poder financeiro e de barganha, ao passo que prestigiará os mais fortes, sem nenhuma intenção de aquecer o mercado do setor esportivo profissional, pois os clubes brasileiros, em sua esmagadora maioria, permanecem exportadores de atletas.

Explicando resumidamente, o passe era feito para uma época em que se desejava manter por tempo indeterminado o jogador no clube empregador para que ele não fosse jogar no arquirrival regional, mas isso porque não existia mercado aberto na Europa e em outros continentes, hoje os clubes brasileiros querem “expor jogadores” para obter receitas o mais rápido possível. Portanto, além das antijuridicidades, não há qualquer motivo econômico e social que justifique o renascimento do passe made in Brazil.

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[1] O pl que cria “passe” no futebol ganha novo relator e avança na Câmara. Lei em campo. Disponível em: <https://leiemcampo.com.br/pl-que-recria-passe-no-futebol-ganha-novo-relator-e-avanca-na-camara/>. Acesso em: 31 mar. 2023.

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