O esporte tem vivido uma revolução que poucos tem enxergado. Nas conquistas recentes de direitos humanos dentro do ambiente esportivo, uma aconteceu neste mês de setembro e teve como protagonistas as mulheres que conquistaram o mundial de futebol. Foi a “Revolta das Campeãs do Mundo”.
Na luta por direitos, muitas das principais jogadoras da Espanha decidiram não se apresentar na primeira convocação feita após a conquista do mundial no meio do ano. Elas exigiam da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) “mudanças profundas e imediatas” em sua estrutura.
A decisão das atletas aprofundou a crise deflagrada após o ex-presidente da entidade Luis Rubiales dar um beijo forçado na atleta Jenni Hermoso durante a entrega das medalhas às campeãs, após a final da Copa do Mundo na Austrália.
Usando instrumentos legítimos de pressão, a Federação foi obrigada a conversar. O diálogo trouxe aprendizado e avanços. Poucos dias depois do boicote, e após uma reunião de mais de sete horas em um hotel próximo a Valência que incluiu jogadoras, autoridades da RFEF, do Conselho Nacional de Esportes (CSD) e do sindicato de futebolistas Futpro, as atletas anunciaram o fim do movimento e a garantia de novas conquistas.
A Federação anunciou a unificação do nome da seleção espanhola de futebol, que não mais será chamada de “masculina” ou “feminina”, removendo a referência de gênero e harmonizando o nome das duas equipes.
“Além de ser um passo simbólico, queremos que seja uma mudança de conceito e o reconhecimento de que o futebol é [apenas] futebol, não importa quem o pratique”, disse o atual presidente da Federação, Pedro Rocha. A decisão ajuda na luta a desenvolver um conceito de esporte mais igualitário.
A derrota do silêncio
O movimento das campeãs do mundo é mais um exemplo da forca coletiva que atletas têm. Mas poderíamos citar vários outros, mas vamos lembrar de um recente. A luta coletiva contra o racismo desencadeada após a morte de Goerge Floyd, um negro assassinado por um policial branco nos Estados Unidos.
De maneira espontânea, vários atletas esqueceram os regulamentos internos, a força coercitiva do direito e começaram a se manifestar contra o racismo e pela igualdade, na contramão do interesse do movimento esportivo. Pela proporção que a mobilização ganhou, com o reforço da opinião pública e de patrocinadores, o esporte teve que ceder.
Houve a quebra de um paradigma, do histórico déficit de participação dos atletas nas discussões sobre o esporte. O esporte passou a viver a experiência dessa ruptura com um passado de silêncio e punições.
Com pressão interna e externa, a força coercitiva dos regulamentos não foi mais capaz de manter o esporte em “território neutro” e ele cedeu. A irritação provocando aprendizados no movimento autônomo do esporte. Atletas reforçando que direitos humanos são um autolimite do próprio movimento esportivo.
Direitos humanos e esporte
Os direitos humanos são uma conquista da humanidade, buscada desde sempre, à base de muitas lutas e perdas. Diante de casos recentes e do eco que a modernidade trouxe a essa causa, nos parece evidente que a proteção de direitos humanos não pode estar restrita à relação entre Estado e indivíduos. Ela é uma responsabilidade de todos, inclusive do movimento privado do esporte.
É incontestável que o esporte se encontra dentro de uma organização global reconhecida por todos, em que a “neutralidade” buscada se apresenta quase como uma utopia diante da inafastável presença política permanente nas relações sociais e do compromisso moral inegociável.
Portanto, a proteção da dignidade da pessoa humana seria o único caminho possível também dentro do ambiente privado do esporte, ou a “única resposta correta” de acordo com o pensamento de Dworkin.
Ao julgador cabe o ensinamento de Aristóteles sobre a busca da justiça: “A equidade é o justo, ou melhor, uma espécie de justiça, a expressão do justo natural em relação ao caso concreto, o que vale dizer a justiça concreta”
Ou seja, é importante se entender como necessária uma relativização não só dos regramentos privados do esporte como da própria soberania dos Estados nacionais em face à efetivação da proteção internacional dos direitos humanos. Os atletas podem ter papel decisivo nesse entendimento dentro do movimento esportivo, dando voz à causa e superando a regra geral de que o subalterno não pode falar.
Tensão gera mudança, de fora para dentro. Mobilizados, atletas, opinião pública e coletivos globais já mostraram a força que muitos ainda desconhecem ter. Eles são e podem ser ainda mais agentes transformadores.
O esporte se organiza dentro de cadeias associativas. A adesão de todos às regras é o que garante uma estabilidade jurídica a esses movimentos. E, claro, atletas fazem parte da cadeia associativa. E, por isso, precisam ter voz nas discussões, inclusive sobre regras e fórmulas de campeonatos.
A “Revolta das Campeãs do Mundo” é o exemplo mais recente. Ela provocou irritações nesse sistema, obrigando a Federação a dialogar, até como forma de sobreviver. O ‘déficit democrático’ na cadeia associativa do esporte sendo vencido. O silencio sendo derrotado.
São avanços como esse que servem de exemplos para o esporte e para a vida. Como bem disse Nelson Mandela220:
O esporte tem o poder de transformar o mundo. Tem o poder de inspirar, tem o poder de unir as pessoas de um jeito que poucas coisas conseguem.
Crédito imagem: Getty Images
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