Por Alice Laurindo e Beatriz Chevis
Apesar da recente virada do ano, a temporada esportiva de 2020 está longe de ter um fim. Em razão dos obstáculos gerados pela pandemia de COVID-19, as entidades de administração do desporto foram forçadas a se reinventar e a adequar o seu calendário, de modo que alguns campeonatos tiveram o seu início prorrogado e ainda não se encerraram. É o caso, por exemplo, da Série A2 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino que, depois de um adiamento forçado de mais de seis meses, tem as suas semifinais agendadas para os próximos dias 10 e 17 de janeiro de 2021. Ainda que pouco divulgada, trata-se de competição de suma importância para o desenvolvimento da modalidade no Brasil, conferindo acesso à elite do esporte nacional. Não obstante, fato é que seu regulamento – e, principalmente, a sua formatação para a próxima edição – permanecem um mistério para boa parte dos amantes do futebol, ensejando uma análise própria à luz dos impactos gerados pela crise.
Em linhas gerais, a Série A2 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino é composta por cinco fases, sendo disputada, atualmente, por trinta e seis agremiações. No que se refere ao acesso e ao descenso[i], as quatro equipes semifinalistas se classificam, automaticamente, para a Série A1 do ano subsequente. A título de exemplo, os times Real Brasília (DF), Napoli (SC), Botafogo (RJ) e Bahia (BA), semifinalistas da edição de 2020, já galgaram a vaga para a elite do futebol feminino de 2021[ii]. Da mesma forma, os quatro últimos colocados da Série A – que em 2020 foram Vitória (BA), Ponte Preta (SP), Audax (SP) e Iranduba (MA) – já estão imediatamente rebaixados para a Série A2 da próxima edição[iii].
As demais trinta e duas vagas, à semelhança do que ocorre na Série D do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino, não são fixas. Assim, nos termos do artigo 2º do Regulamento Específico da Competição – Campeonato Brasileiro Feminino A2 de 2020 (REC), os cinco melhores classificados do Ranking Nacional de Clubes Masculinos de 2020 que ainda não possuíam vaga na Série A1 ou na Série A2 se classificaram para a segunda divisão feminina desta edição. Interessante notar que, muito embora a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) também mantenha um ranking das equipes femininas, ele não serve como parâmetro para a classificação, sendo essa exclusivamente pautada no resultado masculino.
O referido critério pode suscitar polêmicas. Por um lado, possibilita a entrada na modalidade de novos projetos, sobretudo à luz da obrigatoriedade imposta pelas Condições de Licenciamento de Clubes da CBF. No entanto, também se argumenta que a regulamentação acaba por privilegiar clubes já consolidados no mercado do futebol masculino em detrimento dos projetos tradicionais especificamente voltados para o futebol das mulheres. É dizer, por exemplo, que um clube com um bom projeto de futebol feminino que eventualmente terminasse em quinto colocado na Série A2 do Campeonato Brasileiro teria que ceder o seu espaço (e, consequentemente, descontinuar os seus investimentos) em prol daquelas agremiações que obtivessem melhores resultados nas competições masculinas. Para contornar essa inconsistência, interessante seria a substituição, ainda que gradual, pelo ranking próprio da modalidade.
O restante das vagas, por sua vez, é reservado aos vinte e sete campeões estaduais da modalidade, que poderão ser substituídos, caso a equipe vencedora já possua vaga na Série A1 ou na Série A2 do Campeonato Brasileiro, seguindo a ordem de classificação na competição regional. Por sua vez, tal mecanismo revela uma política nacional de valorização dos campeonatos estaduais, que, portanto, demanda uma constante harmonia entre a CBF e as federações estaduais responsáveis pela organização das competições locais.
Ocorre que as engrenagens desse sistema foram profundamente atingidas pela atual pandemia de COVID-19, descrita pela Organização Mundial de Saúde como Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional (PHEIC). Com efeito, diante do cenário pandêmico, da paralisação das atividades esportivas por meses e da consequente crise financeira dos clubes, muitos campeonatos estaduais de futebol feminino deixaram de ser realizados em 2020. Um exemplo notório é o caso do campeonato carioca, cuja edição de 2020 não foi organizada, até o momento, pela renomada Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ)[iv].
Nesse contexto, é importante ressaltar que, em consonância com as determinações da CBF, as competições estaduais devem contar com, no mínimo, quatro agremiações participantes. Sucede, porém, que muitas federações reportaram não contarem com o número necessário de clubes interessados, sendo certo que, até o momento, apenas dez entidades de administração estaduais conseguiram realizar as suas respectivas competições de futebol feminino referentes à temporada de 2020, algumas justamente valendo-se do piso de participantes.
Diante disso, a CBF estendeu até 28 de março de 2020 o prazo para que tais campeonatos sejam realizados[v], tendo-se já notícia de que a Federação Cearense de Futebol[vi] e a Federação Norte-Rio-Grandense de Futebol[vii] o farão até o término de fevereiro de 2020. Também foi divulgado pela entidade de administração do futebol que a edição de 2021 da Série A2 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino será realizada entre 16 de maio e 5 de setembro deste ano, contando com o mesmo número de agremiações e a mesma forma de acesso[viii].
No entanto, considerando que até quinze campeonatos estaduais poderão permanecer cancelados, resta saber como será repensado o acesso à Série A2 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino de 2021 e quais serão os efeitos dessas alterações para o fomento da modalidade em escala nacional. Sobre esse tema, a atual edição do REC, em seu artigo 24.c, determina que, inexistindo campeonato estadual, a Diretoria de Competições pode, a seu critério, tolher o direito da federação de indicar participante. Nessa hipótese, as vagas remanescentes seriam distribuídas de acordo com o Ranking Nacional de Clubes Masculinos de 2020, retomando a polêmica inerente à utilização de um critério masculino para uma competição do futebol de mulheres.
Nesse contexto, alternativa interessante seria, por exemplo, a utilização do ranking nacional de futebol feminino, com direcionamento da vaga à agremiação vinculada à federação estadual em questão que esteja em melhor colocação na sua classificação. Inclusive, importante ressaltar que já se tratavam de vagas oriundas de critérios relacionados à própria modalidade, uma vez que se originavam de campeonatos estaduais de futebol feminino. Exemplo disso é o fato de que, após a Federação de Futebol do Piauí comunicar à CBF que não realizaria o Campeonato Piauiense Feminino de 2020, já se criou a expectativa de que o Tiradentes (PI), atual equipe do estado com melhor colocação no ranking feminino, seja classificado à Série A2 de 2021[ix].
Assim sendo, pode-se constatar que, muito embora o campeonato nacional seja de suma importância para o desenvolvimento do futebol feminino brasileiro, o sistema não está desenhado de forma que se possa prescindir dos campeonatos estaduais. Outrossim, conforme apontado por Aline Pellegrino, coordenadora de competições femininas da CBF, “não adianta a gente ter competições nacionais muito fortes se a gente não tem os estaduais acompanhando isso”[x]. Isso porque, os campeonatos estaduais constituem a matéria-prima da modalidade e podem ser tidos como essenciais para o surgimento e para a consolidação de novos projetos e/ou de novos clubes. Bem por isso, noticiou-se, inclusive, que tem sido estudada a criação de torneios regionais.
Em linha com o exposto, trata-se de processo que depende de sincronia entre a CBF e as federações estaduais, garantindo um desenvolvimento conjunto. Para tanto, deve-se realizar um planejamento coletivo do calendário de futebol feminino, de modo a garantir jogos competitivos e espalhados ao longo do ano não só para as agremiações que compõem a elite da modalidade – sobretudo de forma a possibilitar a continuidade de projetos voltados especificamente ao futebol feminino.
À luz de todas essas reflexões e das poucas respostas sinalizadas até esse momento, enquanto acompanhamos as próximas e derradeiras partidas da edição de 2020 da Série A2 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, cabe a todos os espectadores e integrantes do mercado aguardar os esclarecimentos pendentes pelas entidades reitoras de esporte, bem como acompanhar atentamente o enfrentamento dos desafios que surgirão para a próxima edição.
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Alice Maria Salvatore Barbin Laurindo é graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados. É conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membra da IB|A Académie du Sport.
Beatriz Chevis é advogada associada do CSMV Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da USP. Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Universitária Paulista de Esportes.
[i] Em competições esportivas, o conhecido dispositivo do “acesso e descenso” (também referido como promoção e rebaixamento ou acesso e rebaixamento) prevê a mobilidade dos clubes ou competidores entre as diferentes divisões de uma mesma liga ou federação.
[ii] CHAVES, Lincoln. Botafogo bate Ceará e assegura retorno à elite do Brasileiro Feminino. 20 de dezembro de 2020. Disponível em < https://agenciabrasil.ebc.com.br/esportes/noticia/2020-12/botafogo-bate-ceara-e-assegura-retorno-elite-do-brasileiro-feminino >.
[iii] ASSESSORIA CBF. Brasileirão Feminino A1 2020 finaliza maior edição em oito anos de competição. 07 de dezembro de 2020. Disponível em < https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/noticias/campeonato-brasileiro-feminino/brasileirao-feminino-a-1-2020-finaliza-maior-edicao-em-oito-anos-de-co-1 >.
[iv] Diante da ausência do campeonato carioca organizado pela FERJ, a União de Clubes de Futebol Feminino do Rio de Janeiro (Unifoot) estruturou uma competição própria, denominada Taça Unifoot Diamante Pró, que contou com a participação de oito entidades de prática desportiva e na qual a Academia Pérolas Negras se sagrou campeã (REPSOL SINOPEC. Equipe feminina da Academia Pérolas Negras conquista a Taça Unifoot Diamante. 21 de dezembro de 2020. Disponível em < https://www.repsolsinopec.com.br/noticias/equipe-feminina-da-academia-perolas-negras-conquista-a-taca-unifoot-diamante/ >).
[v] BARLEM, Cíntia. CBF prorroga prazo para realização dos estaduais femininos 2020 e reforça importância às federações. 08 de dezembro de 2020. Disponível em < https://globoesporte.globo.com/blogs/dona-do-campinho/post/2020/12/08/cbf-prorroga-prazo-para-realizacao-dos-estaduais-2020-e-reforca-com-federacoes-importancia-das-disputas.ghtml >.
[vi] FUTEBOL CEARENSE. Cearense Feminino terá início em janeiro. 30 de dezembro de 2020. Disponível em < https://futebolcearense.com.br/2020/noticia_ver.asp?id=11985 >.
[vii] REDAÇÃO DO GLOBO ESPORTE. Com volta do América-RN, Campeonato Potiguar Feminino terá quatro clubes. 23 de dezembro de 2020. Disponível em < https://globoesporte.globo.com/rn/noticia/com-volta-do-america-rn-campeonato-potiguar-feminino-tera-quatro-clubes.ghtml > .
[viii] ASSESSORIA CBF. CBF publica calendário das competições femininas de 2021. 05 de janeiro de 2021. Disponível em < https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/noticias/campeonato-brasileiro-feminino/cbf-publica-calendario-das-competicoes-de-futebol-feminino-de-2021 >.
[ix] ARAÚJO, Jade. Sem Campeonato Piauiense feminino, representante do estado no Brasileiro de 2021 será definido pelo ranking da CBF. 17 de dezembro de 2020. Disponível em < https://globoesporte.globo.com/pi/piaui/noticia/sem-campeonato-piauiense-feminino-representante-do-estado-no-brasileiro-de-2021-sera-definido-pelo-ranking-da-cbf.ghtml >.
[x] BARLEM, Cíntia. Calendário confirmado, proposta de torneios regionais e o fim do legado da Copa: Aline Pellegrino projeta 2021. 04 de janeiro de 2020. Disponível em < https://globoesporte.globo.com/blogs/dona-do-campinho/post/2021/01/04/calendario-confirmado-proposta-de-torneios-regionais-e-o-fim-do-legado-da-copa-aline-pellegrino-projeta-2021.ghtml >.