Por Rafael Marchetti Marcondes
A criação das Sociedades Anônimas do Futebol tem sido assunto recorrente no meio esportivo. As SAF’s, como ficaram conhecidas, têm sido apontadas por muitos como a tábua de salvação dos clubes brasileiros, que vivem assombrados por dívidas monstruosas. A fim de impulsionar a migração dos clubes do formato associativo para o formato empresarial, o Congresso Nacional apostou na concessão de incentivos fiscais, que acabaram vetados pelo Presidente da República e agora voltaram a valer por força de deliberação do Parlamento, que derrubou os vetos culminando na promulgação no dia 6 de outubro, das partes vetadas da Lei no 14.193/2021.
Mas afinal, agiu bem ou agiu mal o Governo brasileiro ao tentar (ineficazmente) barrar essas medidas? É essa questão que nos propomos responder a seguir.
Antes de avançarmos no debate sobre a decisão presidencial de vetar os benefícios fiscais, é importante entender as idas e vindas desse tema.
Originalmente, no Projeto de Lei nº 5.516/2019 – de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (DEM) e que resultou na Lei no 14.193/2021 – estava prevista a criação do Regime Transitório de Apuração de Tributos Federais (ReFut), que propunha um período de transição de 5 anos, no qual os clubes associativos que optassem por se converter em SAF’s, teriam uma tributação diferenciada. Isto é, deixariam de gozar de isenções de IRPJ, CSL e COFINS, bem como deixariam de tributar o PIS à alíquota reduzida de 1% sobre a folha de salários, em contrapartida de passarem a recolher esses tributos em conjunto, sob uma alíquota única de 5%.
Passados os 5 anos, os clubes-empresa, como ficaram popularmente conhecidas as SAF’s, teriam suas receitas tributadas normalmente, como as demais empresas de outros setores econômicos, com alíquotas substancialmente maiores.
O Congresso Nacional, pressionado pelos clubes, implementou uma mudança na proposta feita pelo Senador Rodrigo Pacheco. Sob a relatoria do Senador Carlos Portinho (PL) e sob a desculpa de que os clubes precisam de “incentivos” para fazer a migração para o formato empresarial, foram inseridas no texto do Projeto de Lei nº 5.516/2019, duas importantes alterações quanto à tributação das SAF’s.
A primeira delas foi excluir da tributação no período em que se encontrava em vigor o ReFut, as receitas dos clubes obtidas com a cessão de direitos esportivos, principal fonte de renda das agremiações na atualidade. A exclusão desse montante da base de cálculo dos tributos representa substanciais vantagens aos clubes.
O segundo aspecto é que tais receitas só passam a ser tributadas a partir do 5º ano após o clube ter se tornado SAF. E, ainda assim, do 5º ano em diante, a alíquota vigente no período de transição de 5% sobre a receita bruta, é reduzida para 4%, de forma permanente, fazendo surgir o Regime de Tributação Específica, o TEF.
Em suma, o Congresso Nacional, como forma de estímulo para os clubes migrarem de associações para empresas, criou uma carga fiscal permanente de 4% da receita bruta, apurada pelo regime de caixa, enquanto empresas de outros segmentos sofrem a cobrança de IRPJ e CSL sob a alíquota conjunta de 34% sobre a sua renda e de 9,25% de PIS e COFINS sobre a receita bruta no regime de competência.
Enfim, para não dizer que os clubes pagam praticamente nada no modelo associativo, instituiu-se uma tributação (mínima), muito aquém da realidade das demais empresas e empresários brasileiros.
A despeito do posicionamento do Congresso Nacional, o Presidente da República simplesmente vetou tanto o regime transitório (ReFut) quanto o regime permanente diferenciado (TEF). A chiadeira foi grande. Um clube que optasse por se transformar em SAF – diante dos vetos presidenciais – seria tributado como qualquer outra empresa brasileira. Sua vantagem, em relação aos clubes associativos, seria, “apenas”, a possibilidade de captação de recursos via debêntures-fut (títulos de dívida) ou a abertura do seu capital na Bolsa de Valores (IPO), além de poder discutir suas dívidas cíveis e trabalhistas de forma centralizada e se socorrer da recuperação judicial.
As razões do veto indicam que a manutenção do benefício acarreta renúncia de receita e contraria, assim, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Os argumentos utilizados são um tanto quanto questionáveis, para não dizer falaciosos. O Estado vem custeando e financiando os clubes há décadas, com imunidades, isenções, parcelamentos e patrocínios. Riscos de violação às referidas leis nunca foram levantados anteriormente.
A despeito das razões do veto, um ponto merece uma reflexão mais aprofundada. Nos últimos 20 anos foram mais de 40 parcelamentos concedidos pelo Governo Federal. Em 2000, quando foi instituído o primeiro deles, o REFIS, foram 129 mil contribuintes beneficiados. Em 2009, no REFIS da Crise, o número saltou para impressionantes 537 mil contribuintes que ingressaram no programa.
Os números não mentem. A recorrência dos programas tem gerado estímulo ao inadimplemento dos tributos, inclusive no meio esportivo. Historicamente 50% dos optantes pelas anistias tornam-se inadimplentes, seja com o parcelamento, seja com tributos correntes.[1] Essa situação é mais frequente com os clubes de futebol.[2]
Mesmo a transação tributária, instituída pela Lei 13.988/2020, que surgiu como uma alternativa às anistias e com a promessa de pôr fim aos seguidos benefícios fiscais instituídos pelo Governo Federal parece não ter resolvido o problema. Santos (20%), Corinthians (25%), Internacional (30%), Atlético Mineiro (30%) e Cruzeiro (54%) tiveram substanciais reduções nas dívidas. Os acordos foram firmados em 2020 e, já em 2021, muitos desses clubes se encontram endividados com a União novamente.[3]
Como dissemos inicialmente, ano após ano, o País implementa políticas fiscais, com um olhar paternalista sobre o futebol brasileiro, vem tentando tapar o sol com a peneira, remediando administrações ineficientes com seguidos estímulos financeiros. Porém, os números indicam de forma clara que essa postura não tem resolvido o problema do futebol no Brasil, que vê seus clubes mergulharem em crises cada vez mais profundas.
A experiência mostra: remédios fiscais não solucionam más gestões. Assim, por mais que essa não tenha sido a razão do veto presidencial à criação do ReFut e do TEF, o fato é que a não criação de um regime diferenciado para os clubes, serviria como impulso para a sua modernização e, mais do que isso, a tão sonhada profissionalização. O que já demora a acontecer.
Sem os incentivos fiscais certamente seria mais difícil que clubes não conseguissem se reerguer. Mas talvez, fosse preciso que alguns amargassem os efeitos colaterais de seguidos anos de irresponsabilidades, para que outros clubes evitassem ir pelo mesmo caminho, implementando o quanto antes políticas mais responsáveis.
A prática corrobora o que estamos a dizer. Em 2018, quando o atual Governo assumiu o Planalto, o patrocínio de diversos clubes pela Caixa Econômica Federal foi cortado. Muitos pensaram que seria o fim do futebol brasileiro. Mas não foi. Os balanços financeiros dos principais clubes do Brasil refletiram isso. A maioria dos clubes da Séria A do Campeonato Brasileiro que eram patrocinados pela Caixa Econômica Federal, após perder seu patrocínio, conseguiram obter novos em condições mais vantajosas e, mesmo aqueles que perderam em arrecadação, sofreram perdas pequenas.[4]
Enfim, como popularmente se diz, quando a água bate na bunda, o sujeito se movimenta! Respondendo à questão inicial, os incentivos fiscais não são necessários para impulsionar a profissionalização dos clubes de futebol. A SAF, com seus mecanismos de captação de recursos (debentures-fut e IPO), por si só, já é suficiente. O Governo Federal, por vias oblíquas, é verdade, dessa vez parecia ter acertado a mão ao vetar o ReFut e o TEF mas, infelizmente, o Congresso Nacional derrubou tais vetos e, mais uma vez, passou a mão na cabeça dos clubes, retomando o olhar paternalista da sociedade com o futebol, que vem reinando nas últimas décadas.
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Rafael Marcondes é advogado, professor de Direito Esportivo e Tributário, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES
[1] Fonte: Estudo sobre o impacto dos parcelamentos especiais elaborado pela RFB em dez/2017
[2] Fonte: Análise Econômico-financeira dos clubes brasileiros de futebol do Itaú BBA, 11ª edição.
[3] Fonte: “Dívida Aberta” da PGFN, dados de mar/2021.
[4] Fonte: Balanços financeiros divulgados pelos clubes em 2018 e 2019.