Na coluna passada, eu falava acerca do fato de a Cisão Esportiva no esporte brasileiro ter passado pela disputa entre duas famílias expoentes no Rio de Janeiro (Guinle e Meyer), representantes de Fluminense e Botafogo.
Porém, se voltarmos a edições anteriores desta coluna, veremos que o racismo e o preconceito de classes serviam como fermento dessa divisão. A luta que entre Arnaldo Guinle e Rivadávia Meyer pelo controle das entidades dirigentes do esporte se apoiava na vedação ou não do profissionalismo no futebol, que tinha origem sempre na oposição de pobres e negros em clubes de elite.
As histórias acerca do preconceito classista e do racismo estão bem delineadas no clássico “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, lançado em 1947. A rebeldia de clubes como o Bangu do Rio de Janeiro – clube de fábrica de propriedade de ingleses que incorporou pioneiramente negros e operários no seu time de futebol – e o Vasco da Gama, também do Rio – primeiro dos grandes clubes de massa a aceitar trabalhadores e negros em suas fileiras, inclusive tendo um deles o presidido já em 1904 (Candido José de Araújo), dão a base para que o autor narre a longa trajetória de exclusão social no esporte.
Na obra estão expostas as razões diretas para que a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) – antecessora da atual Federação de Futebol do Rio de Janeiro (FERJ) tenha adotado em seu estatuto a explícita vedação de trabalhadores nos clubes a elas filiados: a postura do Vasco da Gama em escalar jogadores negros e pobres que se remuneravam do ofício esportivo em seu time de futebol e, consequentemente, sua necessária exclusão dos quadros da entidade.
Como escrevi em meu livro “Constituição e Esporte no Brasil (Ed. Kelps, 2017), Arnaldo Guinle foi o principal nome na criação da AMEA em retaliação à postura do Vasco da Gama em aceitar negros, pobres em seus quadros e lutar pelo profissionalismo.
Já Rivadávia Meyer era dirigente do Botafogo do RJ e acabou por tomar o poder na AMEA em 1932, justamente derrotando o grupo de Guinle. O profissionalismo, portanto, entra paradoxalmente na estratégia de Guinle para retomar o controle do futebol no Rio:
O movimento para a criação do profissionalismo iniciou quando Arnaldo Guinle e seu grupo perceberam que poderiam dominar o campo esportivo se criassem uma nova liga de futebol. Sabiam que o profissionalismo era uma questão de tempo. Porém, naquele momento, a AMEA era o órgão responsável pelos esportes no Rio de Janeiro e o grupo de Guinle levava uma grande desvantagem no interior da associação. Criar uma nova liga também significava esvaziar o poder de oponentes como Rivadávia Correa Meyer, Paulo Azeredo e João Lyra Filho, todos ligados ao Botafogo. (Alchorne de Souza. O Brasil entra em ação! Construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008, p. 44).
Criou, assim a Liga Carioca de Futebol (LCF), adepta do profissionalismo. Guinle também manteve o controle sobre a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e conservava apoio dos maiores clubes fluminenses. Rivadávia dominava a AMEA e, com isso, desfiliou os clubes que haviam se juntado à LCF, criando problemas para que compusessem sistema CBD-FIFA, já que sua entidade era a única filiada à CBD no Rio de Janeiro.
As entidades que compunham a “Pirâmide Olímpica” na área do futebol: CBD, nacionalmente – única reconhecida pela FIFA no Brasil, e suas filiadas nos maiores Estados (AMEA no Rio de Janeiro e Federação Paulista de Football – SP), continuam aferradas ao amadorismo. As dissidências estaduais levam à criação de uma cisão nacional: CBD – amadorista – e Federação Brasileira de Football (FBF), fundada em 1933, filiando os clubes com atletas profissionais.
Em vista da extrema divisão do esporte no país, agregado ainda a outros fatos políticos que contarei na próxima coluna, o Estado Novo percebia a oportunidade para uma intervenção na área esportiva, de modo a poder dominá-la.
Com esse movimento de Getúlio Vargas, o Clube de Regatas Vasco da Gama do Rio de Janeiro ainda fez uma tentativa grande para que a intervenção estatal não ocorresse.
Os dirigentes vascaínos buscaram o América – RJ para um pacto que salvasse a autonomia do futebol, como descrito por Drumond Costa (in SILVA; SANTOS, 2006, p. 121):
O pacto entre América e Vasco criava uma nova entidade no futebol carioca, à qual todos os grandes clubes da cidade estavam convidados a entrar como membro fundador. Com a criação de uma terceira entidade, tanto a FMD [Federação Metropolitana de Desportos, do Rio de Janeiro e filiada à CBD] quanto a LCF [Liga Carioca de Football, profissionalista e não reconhecida pela CBD] seriam dissolvidas. A nova agremiação se filiaria à Federação Brasileira de Football que, por sua vez, pediria filiação à CBD. Nesta nova organização de forças, a FBF ficaria responsável pelo futebol brasileiro e a CBD seria a responsável pela representação do futebol brasileiro no exterior. Desse modo, todos os clubes brasileiros deveriam se filiar à Federação Brasileira de Football, ou não poderiam enfrentar os outros clubes filiados à mesma (DRUMOND COSTA, Maurício S. Os Gramados do Catete: Futebol e Política na Era Vargas (1930-1945), in TEIXEIRA, SANTOS, 2006, pp. 107-132).
Efetivamente a partir deste momento, em uma resolução não-estatal, própria da organização interna do esporte, resolveu-se o “Dissídio Esportivo” dos anos de 1930.
A atuação de Vasco e América manteve a autonomia esportiva no Brasil, ao menos por alguns anos.
Quais seriam então os lances posteriores que levaram à autonomia tutelada no Brasil? Conto na próxima coluna.