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A suposta autonomia dos atletas da luta

Elthon José Gusmão da Costa*

Introdução

Gegard Mousasi ex-campeão do evento de MMA Bellator, ainda não tem um processo em curso, mas ele e alguns outros lutadores têm reclamações em relação aos seus contratos com cláusulas de exclusividade.[1]

Depois que o seu contrato foi adquirido pela PFL[2], ele alega não conseguir que a promoção lhe dê uma luta. O seu valor de bolsa para lutar seria muito alto e o evento estaria esperando-o “morrer de fome”, o que o faria aceitar uma bolsa menor para conseguir lutar.

Nesse ínterim, convém trazer à baila a cláusula contratual de exclusividade presente nos contratos da PFL, recentemente revelados por conta de processo que tramita na Justiça do Trabalho brasileira:

  1. Direitos promocionais e lutas de MMA.

3.1 O Lutador concede à PFL o direito exclusivo, irrestrito e mundial de promover e explorar lutas de MMA a serem realizadas pelo Lutador durante o Prazo em toda e qualquer mídia e de qualquer maneira.

3.2 O Lutador também concede à PFL um direito e licença mundial, irrevogável, livre de royalties, totalmente pago, perpétuo e sublicenciável para explorar a imagem do Lutador em toda e qualquer mídia, conhecida agora ou futuramente, em conexão com: (a) projeto, desenvolvimento, produção, marketing, publicidade, promoção, distribuição, venda, licenciamento, publicação, exibição e outra exploração de qualquer Luta(s) de MMA e Atividade(s) Promocional(is), bem como todo e qualquer direito relacionado a isso; (b) marketing, publicidade e promoção da PFL, e (c) projeto, desenvolvimento, produção, marketing, publicidade, promoção, distribuição, venda, licenciamento, publicação e outra exploração de qualquer produto(s) e/ou serviço(s) da PFL (coletivamente, os “Direitos”). A PFL pode permitir que os Direitos sejam exercidos por terceiros, incluindo, sem limitação, licenciados, patrocinadores e parceiros de distribuição[3]. (tradução e grifo nossos)

Cumpre ressaltar que o mencionado “prazo” na cláusula contratual acima destacada geralmente é de 5 anos, quando se trata de atletas no nível de Mousasi. A PFL pode até “congelar” o contrato do atleta indefinidamente (!) se este não quiser enfrentar um determinado adversário, por exemplo, ou mesmo se estiver lesionado, se não, vejamos a cláusula contratual referente:

  1. Suspensão e rescisão.

17.1 Se o Lutador violar qualquer disposição material deste Contrato e/ou se qualquer um dos seguintes problemas ocorrer (para fins de clareza, cada um desses problemas constituiu uma violação de uma disposição material deste Contrato), a PFL terá o direito, mediante notificação ao Lutador, de suspender o Prazo por um período razoável até que a violação/questão aplicável seja resolvida, reter a compensação de outra forma pagável ao Lutador e/ou (a critério exclusivo da PFL) rescindir este Contrato por justa causa:

(…)

17.1.10 O lutador não puder, não quiser e/ou se recusar a competir e/ou treinar em qualquer luta de MMA por qualquer motivo[4]. (tradução nossa)

A brasileira e ex-campeã do Bellator Cris “Cyborg” também veio à público questionar o fato de não ter recebido propostas de luta desde que o seu contrato foi adquirido pela PFL.  Mesmo depois que a PFL anunciou que ela lutaria em um grande card que teria a presença da estrela Francis Ngannou, a atleta declarou que não foi oferecida uma data e, após um ano sem lutar, ela não poderia esperar para sempre.[5]

No passado, algo semelhante ocorreu com o evento Elite XC, onde muitos lutadores estavam presos e tentando sair. Em 2008, após o colapso da promoção[6], os lutadores foram deixados no limbo por meses, presos a contratos que o evento não tinha intenção de cumprir, se recusando a liberar os atletas. Os advogados do setor estavam buscando US$ 100.000 ou mais para iniciar o processo de litígio em nome dos lutadores.

Os atletas então formaram uma associação, a Mixed Martial Arts Fighters Association (MMAFA), como forma de diminuir os custos do eventual litígio, e encaminharam uma carta aos funcionários do EliteXC buscando a liberação de seus membros dos contratos com a promoção.

A MMAFA também elaborou uma reclamação que estava preparada para apresentar caso a EliteXC se recusasse a liberar voluntariamente os lutadores de seus contratos A disputa foi resolvida pouco tempo depois, quando a Strikeforce, uma promoção de artes marciais mistas, adquiriu os contratos promocionais dos lutadores em uma venda de ativos, que foi justamente a mesma operação que ocorreu com a venda do Bellator para a PFL.

Na época do fim do EliteXC, os dois contratos mais valiosos do lote eram os de Gina Carano e Cris Cyborg, as duas mulheres de maior visibilidade no MMA na época.

Carano alcançou o estrelato como uma das lutadoras mais promovidas na extinta promoção. Lá, ela se tornou uma personalidade popular e o maior nome entre as lutadoras de artes marciais mistas. Quando o EliteXC foi comprado pelo Strikeforce, ela acabou se tornando rival por padrão da também lutadora Cristiane “Cyborg” Santos (agora lutando com seu nome de solteira, Justino), que a aposentaria após uma “surra” ainda no primeiro round.

A Showtime Networks, rede que transmitia os combates do EliteXC, chegou a anunciar um leilão público (!) dos contratos dos atletas da promoção em 2008[7], alegando dispor de tal propriedade por conta de seus contratos não-honrados pelo evento e pela lei aplicável.

A questão é se de fato de esses contratos seriam ou não legalmente transferíveis, justamente por se tratarem de serviços pessoais.

Os atletas da luta, como vimos, podem se encontrar presos a relações de trabalho com eventos que não os liberam para luta mesmo sem receber salário para esperar, precisando muitas vezes de intervenção judicial para que possam seguir sua carreira[8].

O status laboral dos atletas da luta

O status da relação de emprego dos atletas da luta[9]  é a maior complicação para efeitos de negociação de melhores contratos, pois impede a sindicalização e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva, inclusive a própria OIT já abordou essa questão.[10]

Em primeiro lugar, é importante citar o fato de que o MMA não tem um órgão centralizado de governança. Em segundo lugar, as comissões atléticas norte-americanas atualmente não supervisionam os contratos de MMA, o que poderia resultar em contratos sem “mutualidade de obrigações”, com mais deveres que direitos, como é o caso na luta.

Nos EUA, a National Labor Relations Board (comumente referida como NLB ou apenas como Board), agência administrativa federal independente, cuja função principal consiste em dar execução aos termos do NLRA[11], com atuação que envolve investigar e julgar administrativamente casos sobre práticas trabalhistas injustas, perpetradas pelos empregadores, entidades sindicais ou seus respectivos agentes, entre outras atividades, chegou a analisar questão envolvendo atleta de luta e evento contratante.

Em 2018, a ex-UFC Leslie Smith apresentou uma acusação de práticas trabalhistas injustas perante a NLRB alegando que o UFC não renovou seu contrato porque ela estava tentando criar um sindicato com outros lutadores do evento[12].

Smith argumentou que o UFC a classificou erroneamente como contratada independente. Isso por si só seria uma violação do NLRA. A NLRB indeferiu a reclamação de Smith contra a UFC em 19 de setembro de 2018, pois, como o UFC não retaliou contra Smith quando a pagou para sair de seu contrato e a liberou após uma luta cancelada contra Aspen Ladd em abril de 2018, o órgão não foi obrigado a responder à questão de se ela seria uma empregada ou contratada independente, o que foi uma parte central de sua reclamação contra a promoção.

A conseguinte apelação administrativa proposta por Smith também foi negada, resultado que o advogado de Smith atribuiu ao fato da tendência ao favorecimento, pró-empregado ou pró-empresa, da NLRB ser de acordo com a posição do governo no momento, sendo que o presidente Trump, que governava à época, é amigo pessoal do presidente do UFC, Dana White.

Considerações finais

Nos EUA, o tratamento equivocado de trabalhadores como autônomos (independent contractors), em fraude à relação de emprego, é uma das principais causas de violação às leis federais e estaduais sobre salário mínimo, jornada de trabalho e horas extras. Trata-se, portanto, de mais uma forma daquilo que os americanos comumente chamam de wage theft (em tradução literal, “roubo de salários”)[13].

Foi editada, em 9 de janeiro de 2024, uma “Final Rule” pelo Departamento do Trabalho estadunidense (o Ministério do Trabalho deles), regulamentando a Fair Labor Standards Act, lei federal que garante diversos direitos trabalhistas, um tipo de CLT deles. O objetivo do novo regulamento é substituir outro editado pelo órgão em 2021 sob a batuta de Donald Trump que, sob o pretexto de deixar mais clara a divisão entre empregado (employee) e trabalhador autônomo (independent contractor), tornava a caracterização da relação de emprego mais difícil e se afastava completamente da jurisprudência consolidada.

A intenção, assim, é de se retornar aos critérios consagrados por anos de discussões judiciais e ajudar empregadores e trabalhadores a melhor entenderem quando um trabalhador está na categoria de empregado e quando ele pode ser considerado um trabalhador autônomo para fins trabalhistas.[14]

No Brasil, na contramão daquilo que se busca regular corretamente quanto ao trabalho nos EUA (apesar do viés eminentemente contratualista e da proeminência conferida às ideias de liberdade contratual e autonomia da vontade presentes naquele país), o Supremo Tribunal Federal tem afastado a competência material da Justiça do Trabalho em vários casos onde se discute vínculo empregatício entre supostos autônomos e seus contratantes, ignorando-se o princípio norteador do Direito do Trabalho, o da primazia da realidade.

Destarte, fazendo-se um exercício de direito comparado[15], levando em conta os altos valores de bolsas que lutadores como Mousasi e Cris Cyborg  recebem (eventualmente, sendo que há mais de um ano isso não ocorre), e apesar de todas as cláusulas que lhes restringem o direito de escolha em relação ao seu trabalho, seriam eles “hipersuficientes” diante da legislação brasileira, uma vez que, diante do caso concreto, estaria se tratando de profissionais com remuneração expressiva, capazes, portanto, de fazer uma escolha esclarecida sobre sua contratação?[16]

Crédito imagem: UFC/Divulgação

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* Master in International Sports Law (Instituto Superior de Derecho y Economía – ISDE). Advogado, professor, palestrante e autor e organizador de livros jurídicos. É membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho no Grau Oficial, especialista em Direito Desportivo (CERS), pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya), diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe), diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing), diretor do Departamento Jurídico da WAKO Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo). É membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Lab), membro do núcleo de estudos “O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral” (NTADT), da Faculdade de Direito da USP, auditor do TJDU-DF, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF (2022-2024), membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD) e colunista do website “Lei em Campo” (Coluna “Luta e Desporto”). [email protected].

[1] MARTIN, Damon. Gegard Mousasi lashes out at PFL over lack of communication, refusal to book him since buying Bellator. MMA FIGHTING, EUA, 19 abr. 2024. Disponível em: https://www.mmafighting.com/2024/4/19/24133795/gegard-mousasi-lashes-out-pfl-over-lack-communication-refusal-book-him-fight-since-buying-bellator. Acesso em: 27 abr. 2024.

[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. A aquisição do Bellator pela PFL. Lei em Campo, Brasil, 27 nov. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-aquisicao-do-bellator-pela-pfl/. Acesso em: 27 abr. 2024.

[3] Processo ATAlc 1001036-50.2023.5.02.0462, p. 59.

[4] Ibid., p. 71.

[5] https://x.com/criscyborg/status/1778987701150331166.

[6] REDAÇÃO. EliteXC decreta falência. Super Lutas, Brasil, 21 out. 2008. Disponível em: https://www.superlutas.com.br/noticias/1607/EliteXC-decreta-falencia/. Acesso em: 2 maio 2024.

[7] PUGMIRE, Lance. Showtime putting Elite XC assets on the auction block. Los Angeles Times, EUA, 5 nov. 2008. Disponível em: https://www.latimes.com/archives/blogs/sports-now/story/2008-11-05/showtime-putting-elite-xc-assets-on-the-auction-block. Acesso em: 2 maio 2024.

[8] COSTA, Elthon José Gusmão da. A competência da Justiça do Trabalho para julgar contrato de trabalho de atleta da luta firmado com evento estrangeiro. Lei em Campo, Brasil, 25 mar. 2024. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-competencia-da-justica-do-trabalho-para-julgar-contrato-de-trabalho-de-atleta-da-luta-firmado-com-evento-estrangeiro/. Acesso em: 26 abr. 2024.

[9] O atleta de MMA não é reconhecido como empregado para efeitos da legislação trabalhista norte americana, sendo tratado como contratado independente. COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023. p. 112.

[10] Decent work in the world of sport, Issues paper for discussion at the Global Dialogue Forum on Decent Work in the World of Sport. Geneva, 22 January 2020. International Labour Office, Sectoral Policies Department, Geneva, ILO, 2019. Disponível em: https://webapps.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—ed_dialogue/—sector/documents/meetingdocument/wcms_728119.pdf. Acesso em: 2 mai. 2024.

[11] National Labor Relations Act (NLRA), também conhecido como Wagner Act, consiste em lei federal destinada a regulamentar, no setor privado, o direito à sindicalização em determinada unidade de trabalho, as eleições necessárias à escolha de um sindicato, o processo de negociação coletiva e o direito de greve, também tendo o poder de adotar medidas aptas a remediar “práticas trabalhistas injustas” (unfair labor practices) perpetradas pelos empregadores.

[12] COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023. p. 114-115.

[13] FERNANDES, João Leal Renda. O Mito EUA: Um País sem Direitos Trabalhistas? 3ª. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2024.

[14] CARELLI, Rodrigo de Lacerda. AS LIÇÕES EM MATÉRIA TRABALHISTA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. TRAB21, 2024. Disponível em: https://trab21.org/2024/01/12/as-licoes-em-materia-trabalhista-dos-estados-unidos-da-america-para-o-supremo-tribunal-federal/. Acesso em: 18 jan. 2024.

[15] Lembrando que a Justiça do Trabalho brasileira, como falado no texto, já foi acionada para se manifestar sobre vínculo empregatício de atleta com a PFL, portanto, uma eventual decisão favorável ao atleta poderia ser alvo de rediscussão no âmbito do STF através de Reclamação Constitucional.

[16] BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. 56.499. AG.REG. NA RECLAMAÇÃO. DIREITO DO TRABALHO E PROCESSUAL DO TRABALHO. AGRAVO INTERNO EM RECLAMAÇÃO. OUTRAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DE PRODUÇÃO E TRABALHO. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2023]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15362038187&ext=.pdf. Acesso em: 27 abr. 2024.

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