Um dos mais icônicos e emblemáticos capítulos da história do Brasil, a Inconfidência Mineira e o notável caso de Tiradentes, séc. XVIII, nos revela em parte uma grande semelhança ao que estamos presenciando nos dias atuais. Portanto, nossa análise será voltada a fazer um cotejo ou traçar um paralelo entre aquele período histórico e os dias atuais, com ênfase no que vem ocorrendo com a regulamentação da Tributação Específica do Futebol (TEF), com previsão nos artigos 31 e 32 da Lei n° 14.193/2021.
O Brasil, séc. XVIII, possuía algumas de suas principais riquezas exploradas por Portugal, o ouro e os diamantes das Minas Gerais. Os portugueses ao perceberem que a respectiva exploração vinha sofrendo impactos por inúmeros motivos, resolveram cobrar impostos mais altos visando combater a inadimplência de uns em detrimento da adimplência de outros. A coroa portuguesa cobrava a época 20% de impostos, daí vem a expressão popularmente conhecida por “Quinto dos Infernos”, visto que a 5ª (quinta) parte de toda exploração era entregue à título de impostos – este é o primeiro ponto que coincidentemente é paralelo com a alíquota mais recente imposta pelo Fisco federal à título de multa para as SAFs.
A Receita Federal brasileira editou o Ato Declaratório Executivo Codar nº 6, de 17 de maio de 2022, com publicação no Diário Oficial da União (DOU), em 20 de maio de 2022, em sua página N° 43, seção 1, instituindo o código de receita para recolhimento de valores referentes ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF). A ausência de regulamentação do TEF, em verdade acabava por causar insegurança jurídica aos clubes interessados em migrar para o modelo regulamentado pela Lei n° 14.193/2021 (Lei da SAF).
O Ato Declaratório em seu artigo 1º estabelece que o Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF) terá como código o número “1573” para recolhimento unificado das receitas tributárias.
Como é sabido, alguns clubes no Brasil, como o Cruzeiro Esporte Clube e o Botafogo de Futebol e Regatas, optaram por constituir suas SAFs mediante a cisão do seu departamento de futebol. Todavia, estas adoções ocorreram em momento pretérito a presente regulamentação. Vimos em outras conversas que a SAF poderá se constituir pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original, (art. 2°, inciso II, Lei n° 14.193/2021).
Por óbvio, alguns questionamentos foram levantados, entre eles, como os clubes que se transformaram em SAF deveriam proceder para adimplir suas obrigações tributárias principais e acessórias?
De um lado, alguns entendiam que o caminho era fazer uma simples consulta a Receita Federal – o que sempre refutei como irrelevante, visto que Fisco apenas responde suas consultas com base em suas regulamentações, ora, se estamos a falar de falta de regulamentação é obvio que a resposta seria similar a um silêncio quase que fúnebre.
Por outro, temos aqueles que tiveram como estratégia fazer uso do Mandado de Segurança, que é um remédio constitucional que tem por função afastar ou prevenir lesão a um direito líquido e certo (art. 5º, LXIX e LXX, da CF/88). Acredito que na práxis advocatícia tributária esta seja a melhor e mais eficaz ferramenta que o constituinte nos deixou para sanar satisfatoriamente a lesão ou a ameaça de lesão a direitos dos contribuintes ante a falta de regulamentação, porque se assim não fosse muitas pessoas sairiam prejudicadas nos seus direitos, ainda que não perfeitos e acabados por legislação regulatória.
Após a parcial regulamentação implementada, podemos dizer que tivemos a volta do “Quinto dos Infernos”, ou seja, a Receita Federal diante da ausência de regulamentação fixou para os clubes que já se transformaram em SAF a alíquota de 20% de multa sobre o valor principal que deveriam ter sido recolhidos. Com esta postura a Receita Federal somente vem a causar enorme insegurança jurídica ao mercado do futebol, advinda entre outros fatores da sua tamanha ineficiência em não regulamentar o que se esperava desde o final de 2021, ainda assim, busca punir os clubes com a respectiva multa, seria esta uma tentativa de fazer com os clubes o que a coroa portuguesa fez com Tiradentes?
A manutenção da confiança em qualquer relação é de suma importância, o que não seria diferente nas relações fiscais entre os entes tributantes e os contribuintes. Em matéria tributária, podemos dizer que a confiança nas relações Fiscais deriva do Princípio da Segurança Jurídica consagrado pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, onde deve imperar aspectos objetivos, gerando estabilidade, de modo a afastar quaisquer subjetivismos na aplicação das normas, sejam elas normas legais ou administrativas. Quando pensamos em segurança nas relações tributárias, em verdade, estamos a falar no direito do contribuinte poder se programar frente ao ônus que terá em adimplir suas obrigações tributárias principais e acessórias.
Diante do respectivo cenário, não me parece razoável esperar qualquer tipo de complacência do órgão regulador, logo, se faz necessário recorrer ao Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966), visando minimizar possíveis danos causados aos clubes, embora estes não tenham dado causa. O art. 138 do CTN regulamenta a figura da Denúncia Espontânea, como pode se extrair da leitura a seguir:
Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.
Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.
Levando em consideração a leitura desse dispositivo, mesmo que não me pareça em termos práticos uma justa medida, em verdade frente ao momento fático, constitui-se como a melhor e mais eficaz ferramenta visando mitigar maiores prejuízos aos clubes, ante a exclusão da responsabilidade pela denúncia espontânea da infração. Assim, surge a seguinte questão: qual a infração causada pelos clubes? Por seu turno, o parágrafo único dispõe sobre o momento eficaz para uso da respectiva ferramenta tributária, qual seja, antes do início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização face a infração alegada.
Ante ao exposto, recomendo modelo textual para uso nos autos de infração confeccionados pela Receita Federal, nos seguintes dizeres: “Diante da ineficiência deste órgão em não disponibilizar as ferramentas necessárias para que o contribuinte de boa-fé pudesse adimplir suas obrigações tributárias principais e acessórias, procedemos com a respectiva autuação”. Acredito que para o não conhecedor da matéria tributária poderia soar no mínimo como uma péssima piada. De fato, a regulamentação parcial do TEF é uma amarga realidade, pois instituiu uma multa de 20% aplicada a períodos anteriores a sua regulamentação.
Longe de dizer que estamos próximo do que chamamos de Justiça Fiscal, em verdade, o que nos resta como operadores da advocacia tributária é fazer uso do posto no artigo 138 do CTN, sob pena de enforcamento das SAFs como ocorreu com Tiradentes. Façamos o que tem que ser feito com responsabilidade.
Sai pra lá “Quinto dos Infernos”!
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 de maio de 2022.
BRASIL. Ministério da Fazenda, Secretaria da Receita Federal. Ato Declaratório Executivo Codar nº 6, de 17 de maio de 2022. Institui código de receita para recolhimento de valores referentes ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF) de que tratam os arts. 31 e 32 da Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=124106. Acesso em: 26 de maio de 2022.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 26 de maio de 2022.
BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis n.º 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 26 de maio de 2022.