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ABCD, Doenças Crônicas e Autorização de Uso Terapêutico: o Direito como garantia de fôlego para atletas asmáticos

Por Leonardo Herrero Domingos

A asma, ou bronquite asmática, é uma doença crônica que prejudica a passagem de ar no organismo devido à inflamação dos brônquios e hiperprodução de secreção nas vias aéreas. Como outros distúrbios de saúde sérios, caso não seja tratada, a asma pode levar à morte. Porém, com o avanço da medicina nas últimas décadas, passou-se a entender melhor suas causas e efeitos no organismo, possibilitando o surgimento de novos tratamentos para os seus portadores. Essa condição já atinge 300 milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo atletas de alto rendimento.

E essa é a realidade de Gustavo Silva, atacante de 23 anos do Sport Club Corinthians Paulista. A cada dia de trabalho no clube, Mosquito — como é apelidado pela torcida — realiza um ritual indispensável para impedir que a disfunção o faça deixar a bola cair, que consiste no uso de sua bombinha (recipiente usado para armazenar a medicação) antes de entrar nos gramados. Vale destacar que o atleta vive seu melhor momento na carreira atuando pela equipe paulista na temporada 2020–21. Quanto à “ajudinha” para desobstruir o entupimento respiratório e superar o problema da asma dentro de campo, esta é autorizada pelo regulamento antidoping.

De fato, muitas pessoas acreditam que atletas que possuem doenças crônicas devem pendurar as chuteiras, devido à crença de que tais enfermidades, inevitavelmente, barrariam o desenvolvimento e desempenho daqueles em suas respectivas modalidades. Contudo, esse tabu vem sendo quebrado graças ao avanço de campos como Medicina e Direito. Hoje, há mecanismos que possibilitam aos portadores de problemas crônicos não serem excluídos da prática desportiva, desde que o remédio para seus problemas não implique em ganho de rendimento esportivo, mas apenas o nivelamento de seus organismos ao de outros que não possuem as mesmas condições.

Especificamente no caso do atleta corintiano, o controle da asma é feito com uso de uma substância listada como permitida pelas entidades de controle antidopagem — como os antiasmáticos Aero-clenil, Aerojet, Aerolin, Serevent, Suxar e Teoden. Entretanto, se o remédio mais indicado para o atleta asmático não fosse algum dos anteriormente listados, como a medicação Berotec (que contém fenoterol, substância capaz de melhorar o rendimento esportivo), caberia ao jogador solicitar uma Autorização para Uso Terapêutico (AUT) de substâncias restritas ou proibidas para que, a partir de então, pudesse realizar o próprio tratamento com o referido medicamento.

No tocante ao jogador profissional, torna-se imperiosa a solicitação de uma AUT para que este possa fazer uso de medicamentos que contenham substâncias restritas ou proibidas, como no caso da medicação Berotec. Isso, pois, em conformidade com o item 4.2.2 do Código Mundial Antidopagem, o fenoterol é uma substância classificada como proibida a qualquer tempo (seja em competição ou fora dela) por figurar na classe S3 — Beta-2 Agonistas, da Lista de Substâncias e Métodos Proibidos, publicada anualmente pela WADA (World Anti-Doping Agency).

Caso seja apontada a existência de uma substância proibida ou restrita no organismo de um atleta, sem a devida AUT, o mesmo ficará sujeito a sanções disciplinares. E foi justamente esse os casos do futebolista Lucas Crispim e da judoca Rafaela Silva. Lucas, ex-atleta do Santos Futebol Clube, foi punido em 2017 por fazer uso de fenoterol no combate à asma. Já no caso de Rafaela, a atleta sofreu punição disciplinar por constar em seu teste, um ano depois do julgamento de Lucas, o mesmo composto. Em sua defesa, a lutadora alegou que a substância foi ingerida acidentalmente após contato com um bebê asmático, que fazia uso de medicamentos.

Importante salientar que isso tudo não se trata de mera burocracia. A preocupação com o controle das substâncias consumidas pelos atletas é justificável, visto que o principal objetivo do Programa Mundial Antidopagem não é impedir o tratamento de doenças crônicas, mas sim proteger o direito fundamental dos desportistas de poder participar de esportes livres de dopagem e, desta feita, promover a saúde, justiça e igualdade para atletas do mundo todo. Por conseguinte, apenas as substâncias que podem potencializar o desempenho esportivo, gerar risco à saúde do atleta ou que, de alguma maneira, violem o espírito do esporte são passíveis de restrição ou proibição.

Com efeito, impedir que um atleta busque o melhor tratamento para o seu organismo seria a mesma coisa que condená-lo em caráter perpétuo a competir em patamar de desigualdade junto dos demais colegas de profissão. Logo, a Autorização para Uso Terapêutico existe como forma de nivelamento da condição entre os atletas. De igual modo, com a existência da AUT preserva-se o valor intrínseco do esporte citado anteriormente: o espírito esportivo, o qual é resumido na busca ética da excelência humana através do compromisso de aperfeiçoamento dos talentos naturais de cada atleta.

A AUT pode ser concedida pela Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) ao atleta, quando solicitada com antecedência mínima de 30 dias. Para obtê-la, o jogador interessado deve preencher o formulário encontrado no site da entidade, além de anexar documentação médica atestando a necessidade do uso da substância (incluindo dosagem, frequência, via e duração da administração) junto com a comprovação de que:

I) sem essa substância o interessado teria sua saúde piorada ou afetada de forma substancial;

II) o interessado não terá nenhum ganho a mais daquilo que seu próprio corpo produziria em condições normais. Ou seja, seu rendimento não será potencializado;

III) não existe alternativa senão o uso da substância solicitada para seu próprio tratamento.

Conforme preconizam o art. 1º da Portaria nº 1, de 29 de Abril de 2020 e o art. 1º da Portaria nº 2, de 8 de Junho de 2020, ambas emitidas pela Secretaria Especial do Esporte, o pedido de AUT é analisado pela Comissão de Autorização de Uso Terapêutico (CAUT), uma comissão composta por até 21 membros médicos de reputação ilibada, detentores de notório conhecimento em medicina clínica esportiva. Tais profissionais serão responsáveis por analisar as solicitações de AUT estritamente com base nos preceitos legais existentes, pelo mandato inicial de 2 (dois) anos.

A CAUT tem 21 dias para decidir por conceder a Autorização ou não. Caso esta seja dada, a decisão que a consagrar deverá conter: dosagem, frequência, forma e duração da administração da substância. Na ocasião do não provimento, a decisão contendo a negativa deverá ser justificada, cabendo apelação desta em 15 dias para um painel nacional. Na hipótese de uma nova negativa, cabe apelação da última decisão ao CAS (Court of Arbitration for Sport), a última instância da Justiça Desportiva.

Todavia, conquanto bem estruturado, o combate ao doping também possui suas incoerências. Apesar do tamanho da responsabilidade de decidir sobre a concessão da AUT, bem como a necessidade de possuir grande bagagem acadêmica e prática para integrar a CAUT, a participação nesta comissão — de natureza privada — é considerada prestação de serviço público relevante e não remunerada. No entanto, o leitor não precisa se preocupar. Dada a profundidade dessa discussão, esse apontamento será considerado apenas como aquecimento para futuras discussões. Assim sendo, seguimos.

No caso de competições fora do âmbito nacional, as Federações Internacionais podem reconhecer ou não a AUT concedida no Brasil. Caso não reconheçam a validade da Autorização, deverão comunicar o atleta e a ABCD apresentando suas razões. Neste caso, o mesmo terá 21 dias para submeter a decisão à WADA para nova apreciação. Enquanto outra decisão não é proferida, a AUT concedida é considerada válida somente em território nacional. Ademais, vale dizer que a lógica inversa também é aplicável: a Autorização concedida por entidade internacional não necessariamente terá validade automática em território nacional, podendo ser necessário o cumprimento de requisitos apontados pela ABCD para que a decisão produza efeitos no país.

Por fim, ao contrário do que se pensa, é mister destacar que a prática de exercício físico ajuda e muito a promover a melhora do sistema cardiorrespiratório dos desportistas asmáticos e, consequentemente, a tolerância ao esforço físico. Há vários outros atletas que tocaram suas carreiras independentemente dessa condição como a rainha do futebol Marta, os astros ingleses David Beckham e Paul Scholes e os campeões da natação Gustavo Borges e Cesar Cielo. Por isso, problemas crônicos como a asma não devem ser encarados como barreiras intangíveis para quem deseja seguir no esporte. Para esses atletas, três coisas são essenciais para que suas dificuldades virem histórias de superação: a vontade de competir, um bom advogado desportivo e uma bombinha melhor ainda!

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Leonardo Herrero Domingos é fundador e corresponsável acadêmico do Grupo de Estudos Direito e Desporto (GEDD) São Judas e graduando em Direito na Universidade São Judas.

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