Por Roberto Pugliese Jr.
“Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo!” dizia o poeta. Fiori Gigliotti, o autor desse e tantos outros inesquecíveis bordões, era muito mais do que um radialista ou locutor esportivo, era um poeta. Marcou época nas transmissões do futebol e de dez copas do mundo nas rádios Bandeirantes, Jovem Pan, Tupy, Record, dentre outras, em quase 60 anos de carreira. Se tornou “O Locutor da Torcida Brasileira’. Falecido em 2006, esse gênio da locução nos ensinou a ver (ouvir) o futebol como arte, imaginando o cenário e fantasiando cada segundo das emoções transmitidas.
Pois chegou a hora de ver o esporte de outra forma. As cortinas se fecharam, o espetáculo terminou. Como nunca antes visto, nem mesmo durante os períodos de guerra, o mundo parou. Inclusive o esporte, por conta dos efeitos da rápida transmissão e da violência da COVID19. Foi necessário parar o mundo para a redução do risco de contaminação e a indústria do entretenimento foi a primeira a sucumbir. As mais diversas competições esportivas foram suspensas, NBA, Champions League, as ligas de futebol em diversos países como Premier League, Bundesliga, La Liga, enfim. O glamoroso circuito da Fórmula 1 nem chegou a iniciar a temporada, os principais torneios de tênis, o circuito mundial de surf, a Taça Libertadores, tudo parou. Até os Jogos Olímpicos Tokyo 2020 marcados para julho, teve que ser adiado por conta da pandemia. O futebol brasileiro não poderia ficar de fora, com o Decreto Legislativo n. 6 que reconheceu o estado de calamidade pública no país, os campeonatos estaduais, Copa do Brasil e Copa do Nordeste, foram suspensos, e agora? Essa história é épica, digna de um best seller, de um blockbuster, um musical da Broadway, fato histórico tão relevante, que merecia ser narrado pelo craque Fiori Gigliotti.
“Aguenta coração, torcida brasileira!” Diria o Mestre para apontar que os impactos econômicos e jurídicos causados pelo vírus no esporte são de causar arrepios. As competições esportivas paralisadas, podem ou não continuar, tudo depende do encaixe do calendário. O famoso e polêmico calendário do futebol brasileiro volta à pauta, inúmeras teorias tentam modificá-lo sob o argumento da necessidade de “salvar o ano”. Fato é que os campeonatos estaduais e regionais continuarão existindo e devem ser concluídos em campo. O desafio será fazer caber o Campeonato Brasileiro em dois turnos e 38 rodadas, junto à continuidade da Taça Libertadores e da Copa do Brasil, até o fim do ano. Tudo indica que a temporada 2020 terminará em 2021, mas deverá ser cumprida e concluída respeitando seus regulamentos originais, ufa!
Os nefastos efeitos dessa paralisação na economia afetam direta e indiretamente clubes, atletas, membros de comissões técnicas, federações, patrocinadores, emissoras de TV e rádio, até os informais que de alguma forma vivem do futebol. A máquina do esporte foi abalada radicalmente. Com a não continuidade dos jogos, inúmeros contratos deixaram de ser cumpridos, especialmente os de transmissão com as emissoras de TVs, renda absoluta dos clubes, cujas parcelas foram suspensas. Nesse prumo outras receitas sumiram, como as de bilheteria e demais relativas ao matchday. Nem é preciso mencionar que as “vendas” de atletas minguaram por conta das competições paradas, “janelas de transferências” fechadas e recessão reinando mundialmente. Com o desiquilíbrio das relações comerciais, por força dos arts. 421-A, III e 478 do Código Civil, muitos contratos civis foram rompidos ou repactuados, inclusive os de patrocínio e de locações de espaços em suas arenas, outras fontes de receita relevante das entidades esportivas. Neste cenário, não restou outra hipótese aos clubes, a não ser se valer do disposto no art. 501 da CLT e pensar em formas de repassar parte desse prejuízo a seus atletas e membros de comissões técnicas, inegavelmente aqueles que representam a fatia maior de suas despesas. “É fogo!” Já dizia o Poeta da Locução.
Eis que no cenário de incertezas e riscos, surgem aspectos jurídicos preponderantes para se apreciar e equilibrar a relação. Em 22 de março a Medida Provisória n. 927, editada pelo Governo Federal, adotou medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade. De plano, a maioria dos clubes de futebol optou por conceder ou antecipar as férias a seus jogadores, inicialmente em 20, depois mais 10 dias, ao longo do mês de abril, permitindo que o mês de dezembro, costumeiramente conhecido por férias coletivas no calendário do futebol nacional, possa ser ocupado com jogos. Valeram-se do art. 8º. da MP para pagar o terço constitucional apenas no mês de dezembro, e postergar os depósitos das parcelas do FGTS de seus funcionários como facultou o art. 19.
Os clubes passaram a se reunir virtualmente de forma constante, provocando debate inédito. Já os atletas buscaram seus sindicatos consultando-os e pedindo auxílio sobre seus direitos, fato igualmente incomum. Divergências entre os órgãos representativos dos jogadores chamam a atenção. Sem entendimento claro sobre a matéria, estudos apontaram para o art. 503 da CLT que permitiria a redução em 25% os salários. Contudo, esse dispositivo já por inúmeras vezes foi reconhecido como inconstitucional pelo TST, tornando sua aplicação de forma impositiva, um tanto quanto temerária.
Após semanas de indefinições, a Medida Provisória n. 936 foi editada pela União para criar meios de contribuir com a manutenção dos empregos. Pela MP, os clubes empregadores podem, seguindo alguns requisitos, suspender a vigência dos contratos de trabalho ou reduzir proporcionalmente a jornada e os salários de seus empregados, inclusive jogadores e membros de comissões técnicas, entre 25% a 70%, por meio de acordos individuais ou negociação coletiva, em até 90 dias. “Agora, não adianta chorar!” Já dizia o Locutor da Torcida Brasileira.
Não se pode esquecer que por força do art. 87-A e seu parágrafo único da Lei Geral Sobre Desportos, é facultado aos atletas licenciar sua imagem em favor do clube, para que possa explorá-la institucional ou comercialmente. Deste modo, é comum que até 40% (quarenta por cento) da remuneração dos atletas seja de natureza indenizatória civil. Nesse período de “recesso esportivo”, muitos dos clubes deixaram de explorar a imagem de seus atletas, valendo-se das cláusulas contratuais para suspender, renegociar ou até romper os contrato de direito de imagem, reduzindo despesas imediatamente.
Em meio à quarentena, apreciando pedido de liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.363, o TST entendeu que os acordos individuais de redução de jornada previstos na MP 936, podem ser celebrados e são válidos sem a participação dos respectivos sindicatos. Contudo, o órgão sindical deve ser comunicado em até dez dias e deverá fiscalizar a legalidade do ato, visando a proteção do trabalhador.
Em movimento inédito encabeçado por atletas integrantes de equipes das séries C e D, formalizaram requerimento à CBF, pleiteando auxílio financeiro em favor de seus clubes. A CBF, igualmente em ação inédita, de plano, promoveu auxílio na ordem de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais) para cada clube de futebol destas séries, além de socorrer os times de futebol feminino e as federações, adiantar cotas de televisão a clubes da série B e taxas de arbitragem a todos os integrantes do quadro de árbitros, além de isentar os clubes com pagamentos de taxas de transferências de atletas. “Uma Beleeeeza de Gol!”, diria o nosso Locutor para explicar que o aporte financeiro visa minimizar as perdas dos clubes permitindo que possam manter vigentes e em dia, os contratos de trabalho com jogadores e funcionários.
“E o tempo passa…, torcida brasileira!” bradaria efusivamente Fiori Gigliotti ao apontar que com o passar do tempo, com o mundo em confinamento, sem perspectivas concretas de retorno à normalidade mas pensando no futuro, o debate passa a ser sobre os prazos de vigência dos contratos dos jogadores. Seguindo o calendário oficial do futebol brasileiro, os campeonatos estaduais já estariam encerrados e inúmeros contratos de trabalho igualmente se extinguiriam, com jogadores se transferindo a outros clubes e outros muitos ficando desempregados, pois um grande número de clubes não tem competições rentáveis e de alto nível para disputar no segundo semestre do ano. Então, como dar continuidade às competições se boa parte dos contratos estão concluídos pelo lapso temporal? Eis a questão a ser enfrentada no pós quarentena. A FIFA em circular no início do mês de abril, regulamentou a prorrogação dos contratos desportivos cujo término se desse ao final da temporada. Contudo, a norma não se aplica ao futebol brasileiro, já que a legislação desportiva/trabalhista pátria, se sobrepõe à regra internacional, posto específica, prevalecendo os ditames do art. 30 da Lei Geral Sobre Desportos que fixa prazo entre três meses e cinco anos para os contratos especiais de trabalho desportivo. Ou seja, caberá à CBF regulamentar a questão no âmbito desportivo, com as federações editando resoluções que ampliem o prazo de inscrição e a condição de jogo nos estaduais, dos atletas cujos contratos venceram no período de suspensão das competições. Inclusive o TJD do Futebol do Rio de Janeiro já se pronunciou afirmando que não reconhecerá qualquer ilegalidade de atleta que atuar cujo contrato de trabalho venceu durante o período de paralisação. Assunto interessantíssimo para o pós pandemia.
Apesar dos esforços dos entes esportivos, não será possível flexibilizar as regras trabalhistas, os prazos inicialmente estabelecidos nos contratos permanecerão válidos, exceto se forem aditados pelas partes. Há casos concretos ocorrendo, tanto de jogadores cujo prazo contratual expirou e já firmaram pactos com outros clubes, tendo, portando que se transferir, ainda que as competições suspensas voltem a transcorrer. Assim como, casos de atletas que ficariam desempregados, mas terão seus contratos prorrogados por aditivo, podendo continuar defendendo seu clube até o final dos torneios em curso.
De qualquer forma os clubes terão perda significativa, pois não previam nem a paralisação de suas atividades, nem suspensão das competições, a necessidade de prorrogação dos contratos, muito menos o calendário ainda mais longo em 2020. Times como o Guarany de Sobral (CE), o Vitória da Conquista (BA), Rio Branco (AC), Patrocinense (MG), São Caetano (SP), já dispensaram seus elencos e desistiram de disputar a série D, devendo concluir suas participações nos campeonatos estaduais com elencos de jovens jogadores das categorias de base. “Um beijo no seu coração!” seria o bordão mais adequado para que o Poeta da Locução prestasse o seu apoio aos clubes e seus profissionais nesse momento tão delicado.
Para reduzir o impacto nos clubes, tramita na câmara em regime de urgência o projeto de Lei n. 2.125/20 de autoria do Deputado baiano Arthur Maia, do Cidadania, que dentre outras propostas, altera a Lei permitindo sejam firmados contratos de trabalho de atletas com apenas 30 dias de vigência, durante o ano de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública. O projeto prevê também a suspensão do pagamento do PROFUT pelos clubes por 180 dias; também que os recursos oriundos da loteria “Timemania” sejam distribuídos entre os clubes participantes, ao invés de direcioná-los a pagamentos de tributos federais, durante o período de calamidade.
Mesmo com o cenário de guerra enfrentado no momento, com o número de mortos pelo COVID19 batendo recordes no Brasil a cada dia, os clubes, organizados, junto a algumas federações já cogitam e trabalham para a volta das competições em maio. Para isso apresentaram estudos e clamam para as autoridades públicas estaduais a liberação dos treinamentos e jogos, seguindo protocolos de segurança e saúde, garantindo que as partidas se realizem com portões fechados por data indeterminada. Em Santa Catarina, por exemplo, o Governador já indeferiu pedido da Associação de Clubes e da Federação para o retorno das competições.
Outra medida articulada é a tentativa de acordo entre as federações/confederação com os sindicatos dos atletas, para que estes permitam, excepcionalmente, a redução do intervalo mínimo entre partidas de 60 para 48 horas, viabilizando a realização de mais jogos em lapso temporal inferior, ampliando consequentemente o calendário. Mas há divergências de pensamentos entre os próprios clubes e entidades de administração, sobre as ideias e vontades postas à mesa. Não há nada de concreto ainda, o tempo trará as respostas e soluções tão procuradas para todas essas peculiares circunstâncias.
“Crepúsculo de jogo”, soltaria o saudoso Fiori Gigliotti alertando aos leitores para os emocionantes momentos finais desse belo roteiro de cinema da vida real, contado aqui nessas singelas linhas. O final que todos esperam tende a acontecer em breve, com o retorno das competições esportivas pelo mundo, mesmo que esse ainda não seja o capítulo derradeiro da trágica pandemia que assola a terra. Os profissionais do esporte e do direito desportivo trabalham incansavelmente para estudar soluções a fim de que todos esses dilemas não se tornem litígios que venham abarrotar o Poder Judiciário e os órgãos judicantes desportivos em infindáveis demandas pós pandemia.
Essa história inacreditável, é real, e seria contada de uma forma que Fiori Gigliotti nunca teve oportunidade de narrar, começando pelo fim e terminando pelo começo, ou pelo recomeço. Nesse momento, em quarentena, em casa, todos esperam ansiosamente pela voz rompante e inconfundível que dirá “Abrem-se as cortinas e recomeça o espetáculo, torcida brasileira!”
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Roberto Pugliese Jr. é advogado desportivo; sócio do Pugliese Advogados e da Agôn Sport Business; especialista em Gestão e Marketing no Esporte; gerente jurídico do Joinville E. C.; assessor jurídico do Cuiabá E. C. Ltda; assessor jurídico de clubes, atletas e empresas de agenciamento; membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD).