Por Victor Targino de Araujo [1]
Nos corredores do direito desportivo e adjacências, muito se falou a respeito de uma decisão proferida pela 11ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo), noticiada na imprensa em maio de 2020, na qual o São Paulo Futebol Clube teria sido condenado a pagar adicional noturno ao atleta Maicon Thiago Pereira de Souza, pelas partidas de futebol disputadas após as 22h.
O processo se encontra em Segredo de Justiça, impossibilitando o acesso aos fundamentos que levaram a Turma, em específico, a prolatar a decisão veiculada na imprensa.
Contudo, é preciso dizer que a discussão, como quase tudo que permeia o Direito, é interpretativa e, portanto, sujeita a teses e opiniões.
Esta é apenas uma delas.
Isso porque a redação da Lei n.º 9.615/98 (“Lei Pelé”), que rege os contratos de trabalho dos atletas de futebol, não é suficientemente clara quanto ao adicional noturno.
Diante disso, é possível argumentar, numa primeira tese – à qual, neste momento, não me filio – que a Lei Pelé seria omissa e, portanto, abriria espaço para a aplicação da CLT [2] no que tange à regulamentação do trabalho noturno para as partidas de futebol, cujo texto prevê o famoso adicional de, no mínimo, 20% (vinte por cento) [3].
Referida tese ganha força quando colocada ao lado do artigo 7.º, IX, da Constituição Federal [4]. Talvez tenham sido esses, presumo, os fundamentos adotados pela 11.ª Turma no caso em tela.
Em contraponto, Domingos Sávio Zainaghi expõe em sua doutrina que:
“É fato que a Constituição Federal determina que o trabalho noturno deverá ter remuneração superior à do trabalho diurno. Ocorre que a Lei n. 9.615/98 silenciou quanto ao adicional para o trabalho noturno. Logo, não parece que a norma celetizada tenha aplicação às relações de trabalho envolvendo atletas profissionais de futebol. E nem se afirme que a previsão contida na CLT possa ser aplicada analogicamente ou que se trate de lacuna da norma especial.
O trabalho rural tem norma especial que é a Lei 5.889/73, e essa lei foi regulamentada pelo Decreto n. 73.626, de 12 de fevereiro de 1974. Nesse decreto está previsto, em seu art. 11, que “todo trabalho noturno acarretará acréscimo de 25% (vinte e cinco por cento) sobre a remuneração normal da hora diurna”.
Pelo que se vê, a peculiaridade da atividade do trabalhador rural fez que o legislador lhe outorgasse um adicional maior que o previsto para o trabalhador urbano.
Da mesma forma, a atividade do atleta profissional de futebol traz suas próprias peculiaridades, fazendo que algumas normas da legislação comum lhe sejam aplicáveis e outras não. E é nesta última que se encaixa a possibilidade ou não de se aplicar ao jogador de futebol o adicional noturno previsto na CLT.
Conclui-se, portanto, que o adicional de 20% previsto na CLT não tem aplicação à atividade do atleta profissional de futebol, uma vez que não há previsão na Lei n. 9.615/98, e, ainda, pelo fato de ser uma atividade sui generis, não podendo, neste particular, ser equiparada a uma atividade normal de trabalho”. [5]
Vou além. Em específico aos adicionais pela participação em partidas de futebol, incluindo-se a partida em horário noturno, a Lei Pelé não é omissa.
Precisamente, o artigo 28, parágrafo 4º, inciso III, da Lei Pelé traz a figura dos “acréscimos remuneratórios”, devidos justamente pela participação em partidas, além de concentrações, viagens e pré-temporada. Ou seja, todo e qualquer adicional ao salário do atleta pela participação em partidas deve ser considerado, exclusivamente, como “acréscimo remuneratório”.
Traduzindo, a Lei Pelé, em relação ao trabalho do atleta em partidas de futebol, substituiu as figuras comuns da CLT, como hora extra e adicional noturno, por uma figura especial e única, os acréscimos remuneratórios.
Assim, na minha humilde visão, a Lei Pelé não é omissa. Ela disciplina a existência de uma verba especial, sobre o salário, pela atuação do atleta em jogos de futebol, sem excepcionar dia, horário ou local.
Tudo bem. Então o Maicon, atleta do São Paulo Futebol Clube, deveria, ao invés de adicional noturno, receber acréscimo remuneratório pelas partidas após as 22h?
Depende do teor de seu contrato.
A redação do mencionado inciso III, berço dos acréscimos remuneratórios, traz, em seu final, uma colocação muito peculiar:
“(…), conforme previsão contratual;”
Mais uma vez, a discussão é interpretativa e não há muitas decisões pelo país sobre o assunto, mas alguns precedentes dos Tribunais Regionais da 12ª Região (Santa Catarina) [6][7], da 4ª Região (Rio Grande do Sul) [8] e da própria 2ª Região (Grande São Paulo) [9], já sinalizam que se não houver previsão contratual, não são devidos os acréscimos remuneratórios.
Isso é, caso o contrato não preveja, especificamente, o recebimento de acréscimos remuneratórios pela participação em partidas, impõe-se que esta é uma obrigação contratual já remunerada pelo salário ajustado.
Trata-se, primordialmente, de uma lei especial destinada a uma atividade absolutamente peculiar. Inúmeros argumentos contrários poderão surgir, dentre eles, inaceitável supressão de direitos, possível inconstitucionalidade etc. É isso que “embeleza” o Direito.
Doutro lado, ninguém pode negar que jogar uma partida de futebol das 22h às 00h, que é o horário nobre da televisão – cuja verba se constitui importante parcela na matriz das receitas dos clubes que pagam os salários e cuja parte (5%), por lei, é repassada a título de direito de arena aos próprios atletas participantes – não é tão estafante como o trabalho de um vigilante ou porteiro que inicia às 22h sua jornada de até 12 (doze) horas na fábrica ou de um garçom que encerra sua extenuante jornada de 8 (oito) horas às 00h, a ponto de justificar a percepção de mais um adicional.
Pelo contrário. Merece, aqui, transcrição o voto do Desembargador Wanderley Godoy Junior, da 12ª Região (Santa Catarina), em acórdão [10] envolvendo o atleta Juliano Pacheco e o Figueirense Futebol Clube:
“Há de se destacar que o empregador do atleta profissional não escolhe o horário em que os jogos serão realizados, sujeitando-se às agendas estabelecidas pela entidade que organiza as competições.
Além disso, tratando-se de atleta de alto rendimento, há natural zelo e preocupação do empregador com relação ao descanso, integridade e preservação física e mental dos jogadores. Não à toa são intercalados períodos de descanso com períodos de treinamento, antes e depois dos jogos.
De mais a mais, as partidas disputadas à noite expõem menos os atletas às intempéries em comparação com os jogos realizados durante o dia, quando há incidência dos raios solares.
Ainda há de se destacar que diante da maior exposição midiática, audiência e visibilidade, os jogos realizados às 22 horas representam maiores ganhos econômicos, não só para o clube, mas também para os atletas, de forma direta (direito de arena) e indireta (possibilidade de o jogador realizar propagandas comerciais).
O atleta profissional ainda possui outros direitos não previstos para o trabalhador em comum, como “bichos” e “luvas”, não restando dúvidas quanto à sua particularidade.
Destaco que no caso em análise há cláusula contratual prevendo o afastamento de “quaisquer acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente” (destaquei), o que abrange o pedido do reclamante no que tange aos jogos em horário noturno.
Demais disso, em poucas oportunidades os jogos ultrapassavam o horário noturno, assim considerados entre 22h e 5h da manhã.” (grifos originais)
Não foi para o atleta que a norma da CLT foi concebida. Ao atleta foi concebida a Lei Pelé, norma em que, apesar do necessário aprimoramento, buscou o legislador prever todas as peculiaridades atinentes à profissão do desportista, cujo ápice é, justamente, a partida, prova ou equivalente.
Não são devidos, nesta linha de raciocínio, da qual me filio, o adicional noturno pela participação em partidas de futebol após as 22h, mas acréscimos remuneratórios e desde que previstos em contrato.
Agora, se o clube de futebol optar por agendar sessões de treinamento entre as 22h e as 5h, fora do contexto de uma concentração, viagem, pré-temporada, partida ou equivalente, ficará difícil justificar a não percepção do referido adicional.
……….
[1] Advogado do Santos Futebol Clube e Auditor na Justiça Desportiva da Federação Paulista de Basketball. Bacharel em Direito pelo Mackenzie, Master em Gestão Desportiva e Direito pelo ISDE, em Barcelona, e Pós Graduado em Direito Desportivo pela PUC, já foi palestrante na Universidade Taras Shevchenko, na Transnistria, e vencedor do Prêmio Valed Perry, do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.
[2] Artigo 28, § 4º, da Lei Pelé: “Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:”
[3] Art. 73 da CLT. Salvo nos casos de revezamento semanal ou quinzenal, o trabalho noturno terá remuneração superior a do diurno e, para esse efeito, sua remuneração terá um acréscimo de 20 % (vinte por cento), pelo menos, sobre a hora diurna. […]
- 2º Considera-se noturno, para os efeitos deste artigo, o trabalho executado entre as 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte. […]
[4] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;
[5] Os Atletas Profissionais no Direito do Trabalho. 2ª Ed. São Paulo, LTr. 2015. p. 85.
[6] ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. PERÍODOS DE CONCENTRAÇÃO E VIAGENS. PAGAMENTO DE ACRÉSCIMO REMUNERATÓRIO. NECESSIDADE DE PREVISÃO CONTRATUAL. De acordo com o inciso III do § 4º do art. 28 da Lei nº 9.615/1998, os acréscimos remuneratórios são verbas de origem contratual, isto é, é necessária a previsão em contrato especial de trabalho desportivo, firmado entre o atleta e a entidade desportiva, fixando remuneração adicional correspondente aos períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação em partida, prova ou equivalente. Se inexistente ajuste correlato no contrato, não há a possibilidade de o atleta ser contemplado com os acréscimos remuneratórios. Neste caso, prevalece a presunção de que o salário contratado entre as partes já se destina também à remuneração daqueles eventos. Quanto à concentração, especificamente, ela é uma peculiaridade da profissão de atleta de futebol e somente pode haver o pagamento adicional por este período se houver previsão contratual. (TRT-12 – RO: 00013428220145120006 SC 0001342-82.2014.5.12.0006, Relator: UBIRATAN ALBERTO PEREIRA, SECRETARIA DA 3A TURMA, Data de Publicação: 17/07/2017)
[7] ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. ACRÉSCIMOS REMUNERATÓRIOS. NECESSIDADE DE CONTRATAÇÃO EXPRESSA. Os acréscimos remuneratórios, parcela salarial que se destina à satisfação dos períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação em partidas, prova ou equivalente, são um direito assegurado ao atleta profissional, cujo pagamento, porém, depende de expresso ajuste contratual. A mera previsão legal, conforme se extrai da parte final da Lei nº 9.615/1998, art. 28, § 4º, III, é insuficiente para gerar à entidade desportiva a obrigação de adimplemento e, ao atleta, o direito ao seu recebimento. Inexistente a pactuação, inexiste o direito aos acréscimos remuneratórios. (TRT-12 – RO: 00022861320135120041 SC 0002286-13.2013.5.12.0041, Relator: LIGIA MARIA TEIXEIRA GOUVEA, SECRETARIA DA 3A TURMA, Data de Publicação: 23/08/2017).
[8] EMENTA: ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. ADICIONAL NOTURNO. Não faz jus o atleta profissional de futebol ao pagamento do adicional noturno, já que o labor em tal horário está inserto em suas atividades, nos termos do previsto nos incisos I a III do artigo 35 da Lei nº 9.615/98. (RO 00073-2007-101-04-00-9 – Rel. Des. Maria Cristina Schaan Ferreira – 6ª Turma TRT-4 – j. 08/07/2009).
[9] As peculiaridades do contrato de trabalho do atleta profissional devem ser consideradas no momento da análise de sua remuneração, bem como da jornada de trabalho, já que sua situação é completamente distinta do trabalhador comum. Não fixados contratualmente quaisquer acréscimos remuneratórios em função de períodos de concentração, viagens e participação em partidas, não cabe ao juiz arbitrar valores sequer pactuados. De igual modo, não há provas de que o autor tenha laborado em jornada extraordinária, seja pela superação da jornada normal, seja pelo trabalho em domingos ou feriados sem o devido pagamento ou compensação. (TRT-2 1000821-20.2016.5.02.0042 – Relatora: Regina Aparecida Duarte – 16ª Turma – Data de Publicação: 07/04/2018).
[10] ATLETA PROFISSIONAL. PERÍODO DE CONCENTRAÇÃO. ACRÉSCIMO REMUNERATÓRIO. CONDICIONAMENTO À PREVISÃO CONTRATUAL. Embora o §4º do art. 28 da Lei 9.615/1998 tenha estabelecido que “aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social”, ressalvou “as peculiaridades constantes desta Lei”. Uma destas peculiaridades diz respeito aos “acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme previsão contratual” (inciso III). Com efeito, o texto normativo condicionou o pagamento dos acréscimos remuneratórios à existência de previsão contratual. Fosse silente o legislador nesse aspecto, seria defensável a incidência da regra geral no sentido de que todo o tempo à disposição do empregador, nele incluído o decorrente do período de concentração, deveria ser remunerado. (0000523-24.2018.5.12.0001 – 1ª Câmara TRT-12 – Data de Publicação: 17/12/2019).