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Afinal, esporte eletrônico é esporte?

Para se falar em esporte eletrônico, primeiro é importante entender o que vem a ser esporte. E o que é esporte?

Segundo o dicionário Michaelis[1]esporte é “o conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticadas individualmente ou em equipe.”

O Congresso Nacional, por meio do Projeto de Lei 1.825/2022, da relatoria da Senadora Leila Barros (PDT) – que aguarda sanção presidencial – adotou posição mais restritiva, definindo esporte em seu artigo 1º, §1º, como “toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento“.

E o nosso Congresso poderia ter instituído esse conceito restritivo de esporte? É evidente que sim, afinal, a lei tem autonomia para isso. O mundo do Direito constrói sua própria realidade. Mas se me perguntarem se a restrição foi apropriada, sem margem de dúvidas, digo que não, pois deixou de contemplar o esporte eletrônico nessa definição.

Explico o porquê. O próprio artigo 1º, §3º do Projeto de Lei 1.825/2022 prevê que a Lei Geral do Esporte “deve ser interpretada à luz da Carta Olímpica” dentre outras normas. A Carta Olímpica, está para o esporte, assim como a Constituição Federal está para o cidadão brasileiro. É norma suprema, que baliza todas as ações daqueles dos praticantes de esporte. E, a Carta Olímpica, ao tratar dos seus princípios fundamentais, indica: (i) a amizade, (ii) a compreensão mútua, (iii) a igualdade, (iv) a solidariedade e (v) o “fair play“.

Quando analisamos os cinco princípios fundamentais elencados pela Carta Olímpica fica bastante evidente que o esporte busca, primordialmente, a criação de cidadãos e não de atletas profissionais. O profissionalismo é consequência. O diploma maior do esporte põe como foco valores sociais, tanto que ressalta que o esporte prima pela amizade, o respeito, a igualdade, a solidariedade e a observância às regras.

É preciso entender que definir os esportes apenas por atividade física e esforço muscular é uma definição errada, mais do que isso, excludente. E o esporte é includente, não excludente.

Vários esportes são de precisão, como o tiro esportivo e o arco e flecha. Outros envolvem pura habilidade, como o hipismo e o xadrez. Todos eles deixam o esforço muscular em segundo plano e, nem por isso, deixam de ser esportes.

O fato de o tiro e o arco dependerem de uma arma, o hipismo depender dos cavalos e o xadrez fazer uso de peças, não os diferencia dos e-Sports, que fazem uso de programas de computador. A mecânica digitalizada não tira seu caráter esportivo.

Pelo contrário. Os e-Sports são uma das linhas de evolução do esporte, com uso de artefatos eletrônicos. São atividades que incorporam competitividade, regras e objetivos bem definidos para superação de adversários, individual ou coletivamente.

Uma pessoa atleta de e-Sports não faz o mesmo esforço cardiovascular que uma atleta de futebol ou de artes marciais. Isso é óbvio. Mas o nível de esforço cognitivo-intelectual (que também é físico!) é tão grande quanto ou até maior.

Nos esportes eletrônicos, homens e mulheres podem competir conjuntamente. Pessoas com determinadas deficiências também podem disputar em pé de igualdade com pessoas sem necessidades especiais. Um paraplégico, por exemplo, pode disputar com uma pessoa sem nenhum comprometimento motoro com o mesmo grau de competitividade. Reduz a necessidade de se segregar as pessoas por categorias (homens vs. mulheres, jogos olímpicos vs. jogos paraolímpicos).

Logo, definir esporte somente como esforço muscular não faz sentido. É mais criterioso conceituar esporte como um conjunto de regras fixas dentro de ambiente competitivo e que permita uma disputa justa e equilibrada entre os jogadores, não?

É justamente isso que se propõe fazer o Projeto de Lei 205/2023 do Deputado Júlio Cesar Ribeiro (Republicanos), ao definir como esportes eletrônicos “as disputas em jogos eletrônicos em que os participantes, sendo atletas profissionais ou não, contra conhecidos ou desconhecidos, de forma online ou presencialmente, competem com recursos tecnológicos da informação e comunicação, sendo o resultado determinado preponderantemente pelo seu desempenho intelectual e destreza“.

Os e-Sports são a evolução do esporte. São atividades que incorporam competitividade, regras e objetivos bem definidos para superação de adversários

No Brasil e no mundo, já existem diversos fatores que, indiretamente, apontam para o reconhecimento da categoria como uma modalidade desportiva.

No país, o Poder Judiciário[2] já determinou que os Contratos de Trabalho Desportivos devem ser aplicados aos jogadores profissionais de e-Sports, reconhecendo-os como atletas, nos termos da Lei 9.615/98 (Lei Pelé). Além disso, os jogadores estrangeiros contratados por equipes brasileiras recebem o visto de atleta profissional previsto na Resolução Normativa nº 47/2022, publicada pelo Conselho Nacional de Imigração (CNI) do Ministério do Trabalho.

Internacionalmente, em setembro de 2022, os Jogos Olímpicos Asiáticos tiveram competições de esportes eletrônicos, não só de jogos com atividade física. Foram oito modalidades de esportes eletrônicos com distribuição de medalhas, entre elas League of Legends, FIFA e DotA 2, e duas de demonstração. Foi a primeira vez que o evento, equivalente aos nossos Jogos Pan-Americanos, deu medalhas para esports.

O Comitê Olímpico Internacional (COI)[3] anunciou os nove games que farão parte da Série e-Sports Olímpicos 2023, evento de esportes eletrônicos cujas finais serão disputadas, pela primeira vez presencialmente, na Semana Olímpica de e-Sports, em Singapura, de 22 a 25 de junho deste ano. Trata-se de competição esportiva global criada pelo COI em colaboração com Federações Internacionais do Esporte e editoras de jogos, focada em esportes simulados.

Os fantasy sports, também conhecidos como fantasy games no Brasil, são esportes nos quais se simula o papel de um técnico. Cada jogador escala seu próprio time e vence aquele que escolheu os atletas que melhor performaram no ambiente físico.

É uma competição online na qual um grupo de pessoas disputa entre si para ver aquele que obtém a melhor performance. Cada competidor escala o seu time de atletas, podendo mesclar jogadores de diferentes times, devendo, apenas, observar um teto de gastos previamente estabelecido pelo organizador.

Sua escalação irá gerar o acréscimo ou a perda de pontos a partir de estatísticas apuradas em um jogo presencial, como gols, defesas, passes, entre outros. Cada competidor ganha ou perde pontos com base no desempenho estatístico dos jogadores em competições do mundo real.

Exemplificando. se o jogador faz um gol, o competidor ganha 8 pontos a seu favor. Se o atleta dá uma assistência para o gol, o competidor marca mais 5 pontos no ambiente virtual. Por outro lado, se o jogador comete um pênalti, o competidor perde 4 pontos, se toma um cartão amarelo, o competidor perde outros 2 pontos, e assim por diante. Os critérios e pontos atribuídos a cada ação são previamente definidos pela empresa que organiza a competição, sendo do conhecimento de todos os usuários antes do início do torneio.

Nada muito diferente do que se encontra no xadrez. Esporte no qual a partir de regras pré-definidas, o atleta faz uma análise do cenário do tabuleiro, das jogadas anteriores do seu adversário, e tenta antever movimentos futuros do seu adversário, isto é, uma atividade focada em estratégia.

Não se pode negar que os e-Sports têm particularidades. Suas diversas modalidades pertencem a entidades privadas. Ou seja, cada “modalidade” tem um dono e não uma federação ou associação que toma conta. Porém, esse fato não muda a natureza da atividade, não impede sua qualificação como esporte, apenas requer um regramento específico, como diversas modalidades possuem, o futebol é um bom exemplo disso.

Senhoras e senhores, não é possível tapar o sol com a peneira.

Excluir o esporte eletrônico de políticas públicas relacionadas ao esporte é marginalizar toda uma comunidade que vem crescendo e, mais do que isso, ignorar uma potente ferramenta de transformação social para o país. O esporte eletrônico é um elemento agregador ao esporte tradicional. Permite que o atleta desenvolva habilidades complementares às desenvolvidas nos esportes tradicionais, como concentração, memória, velocidade de raciocínio e capacidade de resolução de problemas. Reconhecer os e-Sports como esportes não é pôr um fim nos esportes tradicionais. A coexistência desses esportes só tende a contribuir ainda mais para o desenvolvimento humano

Negar o presente, negar o reconhecimento do Judiciário brasileiro, do próprio Governo brasileiro por meio do Ministério do Trabalho e da comunidade esportiva internacional sobre a natureza dos e-Sports, só vai gerar mais dúvidas sobre o futuro das políticas públicas do Brasil. Vai impedir que classes sociais mais baixas tenham acesso a oportunidades e ao desenvolvimento de suas competências. Vai impedir os esportes eletrônicos de ingressar nas políticas públicas do esporte hoje e, por consequência, vai impedir o Brasil de performar nas Olimpíadas de 2032 ou 2036. Porque o futuro é logo ali!

Acredito que somente através da troca de ideias entre o Poder Público e a iniciativa privada é que se irá alcançar uma regulamentação equilibrada e alinhada com a realidade. Por essa razão, são tão importantes audiências públicas permitindo a participação de todos os envolvidos com os esportes eletrônicos. Afinal, se por um lado o diálogo requer saber escutar, por outro, ele é capaz de aproximar as pessoas e de resolver problemas difíceis.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/esporte/, acesso em 19.5.2023.

[2] http://www.csmv.com.br/evolucao-do-mercado-e-da-regulamentacao-dos-esports-no-brasil/, acesso em 19.5.2023.

[3] https://olympics.com/pt/esports/olympic-esports-series/, acesso em 19.5.2023.

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