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Agressão no ambiente de trabalho no âmbito do futebol internacional

O futebol é um esporte movido pela paixão, seja pelos protagonistas dentro de campo, como pelos próprios torcedores. Esse sentimento é a principal engrenagem que faz a máquina do desporto mais popular do planeta funcionar. Patrocinadores, investidores e emissoras de televisão, por exemplo, investem muito para poder fazer parte desse movimento do esporte. O torcedor é o combustível, pois sem energia, sem potenciais consumidores para gerar receita, não há atração de terceiros. Contudo, rapidamente, a paixão pode se transformar.

Com efeito, justamente por ser um esporte passional, os torcedores almejam sempre os melhores resultados ao seu time de coração. Entretanto, quando os objetivos não são logrados, a torcida, irresignada, tende a exercer uma forte pressão nos dirigentes, corpo técnico e nos próprios futebolistas. A ausência de resultados e a quebra de expectativas, interferem diretamente no ambiente de trabalho do clube.

Nesse sentido, na semana passada, ocorreu um caso que chamou atenção da imprensa internacional. O Boca Juniors, da Argentina, vivendo uma temporada muito abaixo daquilo que era esperado por todos, na 11ª colocação do Campeonato Nacional e já eliminado nas oitavas de final da Copa Libertadores, foi o agente principal.

Isso porque, no intervalo da partida com o Racing, pelo Campeonato Argentino, que acabou empatada, dois componentes do time se agrediram. Insatisfeito com o posicionamento defensivo, o atacante Darío Benedetto começou a discutir com o zagueiro peruano Carlos Zambrano no vestiário, que teria reagido e ambos teriam chegado à luta corporal, tendo que ser separados pelos companheiros.[1]

O atacante argentino, com passagem de sucesso pelo próprio clube, além da seleção argentina, acabara de retornar de algumas temporadas atuando na Europa, mais detidamente na França e na Espanha. No seu regresso, no entanto, ainda não apresentou o futebol de outrora, inclusive perdendo pênaltis decisivos, como foi o caso das oitavas de final do torneio continental contra o Corinthians, em plena La Bombonera.

Ato contínuo, na volta do período de descanso, os dois jogadores apresentavam marcas do conflito. O defensor com o olho claramente inchado e, por sua vez, o atacante argentino possuía marcas de arranhões e o pescoço avermelhado. Nessa semana, a direção do clube informou que suspendeu por dois jogos os dois atletas, como medida disciplinar.[2]

Desde então, vem se debatendo muito nos veículos de comunicação se a conduta dos desportistas ensejaria uma dispensa por justa causa ou não. A princípio, sob o ordenamento brasileiro, observando a normativa e jurisprudência atuais, não há margem para dúvidas.

Nesse contexto, o artigo 482 da nossa Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)[3] fixa o que constituiria justa causa. Dentre eles, mais precisamente nas alíneas j e k, os seguintes trechos, que se amoldam perfeitamente ao caso: j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem.

Sendo assim, evidentemente que os jogadores possuem níveis hierárquicos semelhantes, logo, a alínea j seria corretamente aplicável ao caso, posto que ambos praticaram um ato lesivo e ofensas físicas. Dessa forma, os dois, sob essa modalidade de dispensa, não teriam direito a sacar o FGTS, nem a dar entrada no seguro desemprego, a receber as férias proporcionais, o terço constitucional e muito menos o 13º salário. Ou seja, receberiam apenas o saldo de salário e férias vencidas mais um terço, caso tivessem.

Sem embargo, nessa seção, tratamos de temas internacionais, portanto, analisaremos com base no regulamento privado da FIFA e de alguns antecedentes do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS). Antes de começar a explicação sobre a construção do conceito de justa causa, devemos ressaltar que o atacante Benedetto, por ser argentino, não poderia atrair a competência da FIFA para solucionar um possível litígio, uma vez que não haveria o elemento internacional na relação. Para ele, seria aplicável a legislação argentina que regula as relações trabalhistas locais.

Posto isso, partimos para a explanação do conceito de justa causa no âmbito internacional. Conforme já explicado em outra oportunidade aqui mesmo[4], a FIFA instituiu como regra o cumprimento dos contratos, impondo mecanismos para garantir esse escopo principal, como a impossibilidade da terminação unilateral durante a temporada, sob pena de sanções esportivas a quem está terminando, ao clube (terceiro) que está induzindo a quebra contratual, bem como compensações financeiras que deverão ser pagas pelos infratores/indutores a parte prejudicada.

Entretanto, há uma exceção a estabilidade contratual, chamada justa causa. No caso da ocorrência dela, a parte que sofreu os efeitos da inexecução das obrigações poderia resolver o contrato, sem consequências de qualquer tipo (seja pagamento de indenização ou imposição de sanções esportivas). Por outro lado, quem foi inadimplente será responsável pelo pagamento de uma compensação financeira, sem prejuízo de uma sanção esportiva.

Apesar de ser de extrema importância para todos os componentes do mercado, o significado de justa causa e as condutas que dariam azo a esse tipo de terminação nunca foram esclarecidos pela FIFA em seu corpo normativo. A definição desse conceito foi sendo construída e aprimorada através das resoluções emitidas pela entidade suíça e pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS).

Nesse contexto, como é uma entidade privada de Direito Suíço, a FIFA, bem como o TAS, também localizado em solo helvético, se inspiraram no Código de Obrigações do país[5] para nortear suas decisões. Esse dispositivo, mais precisamente no artigo 337, indica que, na existência de falta grave, os empregadores ou empregados podem resolver imediatamente o contrato.

Se entende como falta grave tudo aquilo que não permite, por razões de boa-fé, exigir do terminador que se tenha que continuar no contrato. Em outras palavras, a conduta deve ser tão grave, que culmine em uma quebra de confiança que não pode ser restabelecida, inviabilizando qualquer possibilidade de permanência da relação.

Ao contrário da normativa brasileira, o ordenamento jurídico suíço, assim como ocorre com o Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[6], não descreveu, detalhadamente, as possibilidades do empregador/empregado para resolverem o contrato, devendo ser analisado de acordo com o caso concreto pelos órgãos decisórios da FIFA e do CAS.

Desse modo, é impositivo a observação da jurisprudência. Para isso, retornemos a uma decisão do CAS do ano de 2012, envolvendo um jogador nigeriano e um clube dinamarquês.[7] O jogador, após um desentendimento com um companheiro, desferiu uma cabeçada. Nos dias subsequentes, foi informado pelo diretor de que o clube o estaria demitindo em virtude da conduta no treinamento. Formalmente, o empregador enviou uma notificação comunicando sobre a dispensa por justa causa.

Inconformado, o jogador ajuizou uma demanda na FIFA alegando que não houve justa causa e cobrando uma compensação do clube pela quebra de contrato. A Câmara de Resolução de Disputas (RDC, em inglês) condenou o clube ao pagamento de um valor de 250 mil coroas dinamarquesas, moeda local. Imediatamente, a entidade desportiva recorreu ao CAS.

Na sua decisão, o Tribunal considerou diversos pontos para determinar se houve justa causa ou não, os principais foram: se a conduta do jogador foi muito grave, se o clube deveria ter seguido algum procedimento antes de terminar o contrato e, por último, se o empregador poderia ter sancionado o empregado de uma outra forma.

Na opinião extraída da fundamentação feita pelo painel arbitral, o ato da cabeçada em um companheiro, durante uma discussão no treinamento, não chega a ser um acontecimento extraordinário gravíssimo, pois é bem comum esse tipo de desavença durante as práticas de equipe. Igualmente, o clube poderia ter apurado antes de punir, perguntando junto ao corpo técnico, aos protagonistas da briga e aos demais jogadores antes de terminar o contrato, o que não ocorreu, não havendo a averiguação necessária antes da punição.

Outrossim, o empregador simplesmente ignorou a possibilidade de aplicar medidas menos gravosas como uma multa, prevista inclusive no contrato de trabalho, ou suspensão temporária do atleta ao considerar, sem uma investigação devida, um incidente como gravíssimo, que não o era. Por fim, mas não menos importante, foi preponderante a não existência de uma reincidência da postura equivocada do atleta. Não houve nenhum relato de brigas anteriores com companheiros que pudessem dar azo à terminação antecipada do contrato.

Recentemente, a FIFA expediu um documento com comentários pertinentes a todos os artigos da RSTJ[8], em que compilou as mais importantes decisões, que criaram uma jurisprudência bem sólida, capaz de facilitar o entendimento de todas partes envolvidas no futebol.

Nesse importante compilado, a entidade suíça estabeleceu o entendimento de que a aplicação da justa causa é uma medida excepcional, como último recurso, não podendo ser tomada de maneira abrupta. Sendo assim, exige-se uma transparência na comunicação e a adoção de outros meios menos gravosos antes de caracterizar-se a justa causa nessas situações mencionadas no parágrafo anterior.

Em outras palavras, devem ser esgotadas todas as sanções menos severas à disposição do clube, como, por exemplo, advertências, multas proporcionais, suspensões temporárias, rebaixamento ao time B ou a equipe sub-20, de modo temporário, antes de ser aplicada a terminação antecipada por justa causa.

Conforme o exposto, a ocorrência amplamente divulgada internacionalmente na última semana não poderia implicar em uma demissão por justa causa para os envolvidos, caso fosse aplicada a jurisprudência da FIFA e do CAS para lides análogas. A aplicação por justa causa deve ser em ultima ratio, o que não ocorreria com Darío Benedetto e Carlos Zambrano.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Benedetto dá soco na cara de zagueiro do Boca e gera novo escândalo (uol.com.br) – última consulta: 17.08.2022

[2] Boca pune Zambrano e Benedetto por brigas em intervalo de partida no último domingo | Esportes | O Globo – última consulta: 17.08.2022

[3] CLT – DEL5452 (planalto.gov.br) – última consulta: 17.08.2022

[4] A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 17.08.2022

[5] Código de Obrigações Suíço: Microsoft Word – 220.it.doc (admin.ch) – última consulta: 17.08.2022

[6] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 17.08.2022

[7] Arbitration CAS 2011/A/2579 Sønderjysk Elitesport A/S v. Bosun Ayeni – TAS xxx (tas-cas.org) – última consulta: 17.08.2022

[8] Comentários ao RSTJ – Commentary-on-the-FIFA-Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-Edition-2021.pdf – última consulta: 17.08.2022

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