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Álvaro Melo Filho, eterno

Imagine você ao olhar para o céu, usando um dos supertelescópios que a NASA dispõe, e se depara logo com o setor destinado ao Direito Desportivo Brasileiro[1], lá sentados à mesa, aguardando o jantar ser servido, estão Álvaro Melo Filho, Marcílio Krieger, Valed Perry e João Lyra Filho – apenas quatro dos maiores que incentivaram, difundiram, criaram e lutaram por este ramo. Para nós, verdadeiros imortais, não apenas pela trajetória de vida profissional, sobretudo pelo que registraram em seus escritos, cada um a seu tempo.

Ali, confabulo, discutem o que é hoje o Direito Desportivo no Brasil e o se futuro, Lyra Filho assevera que foi o primeiro, em tempos cinzentos e severos, que arriscou dizer a sua existência. E que, através de um opúsculo sólido, mostrou que este não é um ramo novo, como comumente falam os jovens de hoje em dia. Lógico que a fome do Estado, incluindo-se o próprio Vargas, que o indicou para ser Ministro, tem sua parcela de responsabilidade no retardo da evolução do profissionalismo do Esporte e da ascensão do Direito Desportivo.

Uma salva de palma. Ele, realmente, foi um visionário, que, em tempos desprovidos de Google e internet, bebeu em fontes europeias. Em muito me recordou figuras como Aníbal Bruno – o pernambucano que é uma das maiores mentes do direito penal brasileiro, para mim –, que em seus livros traziam ricas fontes de consultas, apesar das dificuldades naturais da época.

Voltando à nossa idílica cena, Valed Perry, um primor de advogado desportivo, ícone de uma época e para todos nós, interrompe e fala da luta que significou atuar em nomes de quase todos os clubes do país, subir à tribuna de Cortes Desportivas desde 1951, assessorar inúmeras confederações e federações esportivas. Além disso tudo, ser autor de obras jurídicas e lecionar em matérias de cursos de graduação e pós-graduação. Reafirmou a crença que deixou aqui exemplos de que se respeitando a vontade dos entes privados do esporte e afastando-se deles o Estado, o esporte florescerá mais, por conseguinte o direito desportivo.

Recordou-se, por fim, com desdém, de suspensão que lhe foi aplicada pelo STJD do Futebol, atribuindo à proposição ao Congresso Nacional para que membros do Poder Judiciário e do Ministério Público não integrassem mais Tribunais Desportivos. Entendeu aquilo como uma vindita, dizendo que: “foi uma tentativa trêfega de me atingir. Mera tentativa porque o meu conceito está muito acima dessas aleivosias, venham de onde vierem”[2]. Colhendo dos comensais ali presentes, risos e aplausos.

Valed Perry e Lyra Filho se riem de quão duro foi ver o ideal de Lex Sportiva ser coarctada por um decreto de Vargas. Aquele troça com este ao dizer que ele estava lá e não segurou a mão do gaudério antes de publicar o Decreto n. 3.199[3]! Os dois botafoguenses[4] se comprazem com as peculiaridades daqueles tempos, o quão duro era se pensar como hoje se pensa o Direito Desportivo no Brasil.

Irrompe o irreverente Marcílio – catarinense de Brusque, com verve ácida, que marcou a todos no Brasil, por sua fala contagiante, sarcasmo, e genialidade[5] –, também conhecido pelo pseudônimo de “Tio Totonho” (figura criada por ele na lista de e-mails CEV Leis), ao comentar sobre a recente decisão do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol do Rio de Janeiro, que suplantou a competência prevista até na Constituição, para determinar que o Flamengo pudesse transmitir a final do campeonato por sua mídia no Youtube, mesmo contrariando as regras do campeonato[6].

Vociferou: Como é que fazem uma barbeiragem dessa??? Tudo bem que já não estamos nos tempos vetustos de vocês dois, os coroas aqui da mesa, mas ai já é demais!! Perdi tempo desde os meus antigos Comentários ao CBDF[7] e com as contribuições na Comissão de Estudos Jurídicos do Conselho Nacional do Esporte e na própria reforma!!

Todos riram largamente. Deleitavam-se sempre com as intervenções de MK.

Recentemente, a eles se juntou Álvaro Melo Filho. Ainda se adaptando à nova vida, embora seja o destino de todos nós, nem sempre mudanças são fáceis.

Álvaro olhava para seus comensais e para baixo, entendia que seu legado estava a salvo na mente, coração e pena de tantos de todos os quadrantes do país. A sua contribuição foi assaz efetiva, tal qual a de João, Valed e Marcílio. Talvez, destaque-se um pouco mais, sem quitar-lhes qualquer brilho, haja vista a sua vasta produção acadêmica dedicada ao direito desportivo, a sua atuação efetiva na construção de textos de lei em prol da consagração da Lex Sportiva – não obstante os outros também o tenham feito –, a sua visão científica e abordagem completa sobre este ramo.

Chamado a se manifestar sobre o que achava do futuro do Direito Desportivo que eles tanto amavam, com aquela serenidade habitual e firmeza na sua voz nordestina, disse: Amigos queridos, a semente está plantada, nós a regamos bem, cada um a sua maneira, forma e tempo próprios, cumprimos a nossa jornada, entre erros e acertos dos que lá estão, o Direito Desportivo não retrocederá, a Lex Sportiva será reconhecida e terá a prevalência que cremos ser própria de sua natureza.

Álvaro, com memória afiada, recorda o que pontuou em seu último livro “Direito do Futebol”, escrito com seu amigo Luiz Felipe Santoro, acerca da autonomia desportiva e o seu futuro, para simbolizar o que pensa:

Há de reconhecer-se sempre que as entidades desportivas privadas têm plena autonomia na sua organização e funcionamento, como resultado da prerrogativa jurídica especial e constitucional explícita que lhes foi concedida. (…) Enfim, é imperioso dar-se concretude a este ditame jus-constitucional-desportivo da autonomia no embate entre poderes privados e poderes públicos em sede desportiva, de modo a que este postulado não se transforme em mistificação da promessa não honrada, em “jogo de interesses” dentro do jogo ou deixe o desporto “fora do jogo”[8].

O amor e devoção de Álvaro Melo Filho pelo direito desportivo é idêntico ao que sentiam Iracema por Martin ou Peri por Ceci, apenas para ilustrar na pena de um ilustre conterrâneo seu. Forte, intenso e eterno.

A sua contribuição é visível, palpável, perene, imortal nas letras impressas nos seus vários livros, nos bytes dos artigos que pululam a rede mundial de computadores, nas memórias de quem viu e ouviu e nos corações de quem com ele conviveu.

Álvaro Melo Filho solidificou a construção e percepção brasileira do direito desportivo, sem descurar-se da sua vinculação transnacional no sistema desportivo internacional.

Findo o conclave, João, Valed, Marcílio e Álvaro aos seus aposentos retornam, satisfeitos e felizes, por mais um encontro.

Aqui embaixo, por enquanto, ficamos com as Saudade de Patativa do Assaré:

Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.

Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.

Porém, sem deixar de observar o que nos disse Belchior em Velha roupa colorida, tal qual a obra de Álvaro nos ensina identicamente:

Você não sente, não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer

Que venha este mês, a gosto, embalando nossas memórias e o carinho por quem tanto nos ensinou, momento de reverenciar e revisitar aqueles que tantos nos influenciaram a trilhar as sendas do direito desportivo.

Para Álvaro Melo Filho, o maior deles, para mim, e que nos deixou mais repentinamente, o registro sempre contínuo da sua eternidade, presença e argúcia em nossas vidas!

……….

[1] Valho-me da crença cristã de que existe um céu e troço com a imaginação ludicamente. Fique, meu amigo leitor, livre para idealizar o cenário que bem lhe aprouver, de acordo com as suas crenças.

[2] Leiam uma imperdível entrevista feita por Felipe Elzabella, para o Universidade do Futebol. Disponível em: < https://universidadedofutebol.com.br/valed-perry-um-dos-icones-do-direito-desportivo/> Acessado em 27 jul 2020.

[3] Esse instrumento normativo quitou a autonomia das entidades esportivas, submetendo-as ao Conselho Nacional de Desportos (CND). Como bem pontua Wladimyr Camargos, soa curioso analisar o que nos diz Lyra Filho em “Introdução ao Direito Desportivo”, ao ressaltar os valores próprios da lex sportiva e, no mundo real, ter sido o chefe deste órgão (in Constituição e Esporte no Brasil, 2017: Ed. Kelps, p. 57-58).

[4] João Lyra Filho nasceu em João Pessoa/PB, em 1906, mas sempre manteve fortes ligações com o Rio de Janeiro, vez que se pai era senador da República. Foi bibliotecário do Botafogo Clube de Regatas e alcançou a presidência. Valed Perry nasceu no Rio de Janeiro, tentou ser goleiro do seu clube do coração, mas terminou atuando por suas cores como Diretor Jurídico e exibindo seu talento nos Tribunais Desportivos.

[5] Marcílio foi um dos brasileiros submetidos ao exílio no estrangeiro durante o período da Ditadura Militar, regressando somente após a Lei de Anistia.  Tão logo retornou, voltou ao exercício da advocacia e passou a pensar, escrever e estudar sobre Direito Desportivo. Destacou-se, deveras, como membro de diversos órgãos da Justiça Desportiva, integrando, inclusive, o STJD do Futebol. Exerceu funções de defensor, procurador e auditor. Além de ser fonte constante para matérias jornalísticas e pesquisas acadêmicas, sobretudo por ser tão acessível.

[6] Para quem não se lembra do assunto, registro pequeno artigo que escrevi a respeito. Disponível em: < https://www.linkedin.com/pulse/volta-dos-que-n%C3%A3o-foram-peraltices-al%C3%A9m-da-justi%C3%A7a-milton-jord%C3%A3o?articleId=6679748626031423488#comments-6679748626031423488&trk=public_profile_article_view> Acessado em 27 jul 2020.

[7] Obra clássica para quem pretende estudar Justiça Desportiva: Comentário ao Código Brasileiro Disciplinar do Futebol – CBDF, Rio de Janeiro: Forense, 1997.

[8] MELO FILHO, Álvaro e SANTORO, Luiz Felipe. Direito do Futebol – Marcos Jurídicos e Linhas Mestras, São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2019, p. 86.

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