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Análise resumida da Medida Provisória n. 984

O Poder Executivo Federal editou há poucos dias a MP n. 984, de 18 de junho de 2020, em face da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia de Covid-19, de que trata a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Desta vez os temas são a prorrogação contratual trabalhista dos atletas e o direito de arena.

Diante do Estado de Calamidade vivido em decorrência da força maior, pandemia de Covid-19, tardava mesmo um ajuste sobre o prazo mínimo do contrato especial de trabalho desportivo. Contudo, alterar disposições da Lei Pelé (9.615/98) sobre direito de arena que envolve, acentuadamente, direitos de personalidade (direitos humanos fundamentais) dos clubes e atletas sem um debate legislativo mais democrático, possível por outros instrumentos legislativos, parece apressado, impreciso e sem nenhuma necessidade imediata.

As alterações trazidas na MP 984/20 sobre direito de arena nem sequer são motivações de urgência e relevância, uma vez que tratam da prerrogativa de negociação geral e forma de distribuição das parcelas aos atletas, não perfazendo matérias que possam causar conflitos neste momento de pandemia da Covid-19, eis a primeira violação constitucional ao art. 62, caput, da CF/88 em termos de processo legislativo (parte formal, procedimental na feitura da lei).

Nessa esfera, alguma das Casas do Congresso Nacional poderia vetar as alterações pretendidas sobre o Direito de Arena, assim como aconteceu com vários temas adicionados à MP n. 936/20, que não tinham pertinência com o seu próprio objetivo principal e para superar a crise provocada pela pandemia.

Outros temas na seara do Direito Desportivo deixaram de ter tratamento muito mais urgente, tais como as possibilidades de prorrogações dos vários tipos de contratos cíveis em torno das competições e benefícios específicos aos jogadores trabalhadores e clubes que vêm sofrendo em suas economias os impactos negativos da Covid-19.

O art. 2⁰ da recente MP n. 984/20 permite, até o dia 31 de dezembro de 2020, a contratação de um período mínimo de trinta (30) dias nos contratos especiais de trabalho desportivo, revelando-se uma exceção criada ao prazo mínimo dos três (3) meses contidos no art. 30, da Lei Pelé perante o quadro de pandemia.

Tal medida apoia a atividade econômica dos clubes e federações, viabiliza a continuidade das competições desportivas estaduais, bem como prolonga, pelo menos, por mais trinta (30) dias, os empregos dos atletas. É norma de aspecto positivo, já que tutela melhor as frágeis economias dos pequenos e médios atores da economia esportiva (clubes, jogadores, federações, terceiros contratantes do espetáculo esportivo).

No entanto, o referido dispositivo poderia ser mais aprimorado; perdeu o Executivo federal a chance de se remeter à matriz de força maior descrita nos arts. 501 a 504 da CLT para dispor sobre a exceção do prazo mínimo contratual, excepcionalmente, quando houvesse casos de pandemia ou outro tipo de força maior que paralisasse temporariamente a atividade econômica das competições e dos clubes, algo não impossível de ser novamente vivenciado pela humanidade.

O prazo mínimo deveria ser de um (1) mês, e não de trinta (30) dias, para ficar harmônico com o art. 30, caput, da Lei Pelé, que descreve um mínimo de três (3) meses e um máximo de cinco (5) anos, pois nem todo mês é constituído de trinta (30) dias, o que causa efeitos jurídicos trabalhistas diversos e relevantes nos contratos laborais atléticos.

Retornando ao Direito de Arena, o art. 1⁰ da MP n. 984/20 alinha que ele pertence ao clube mandante, o único detentor da prerrogativa exclusiva de negociá-lo. Esse preceito viola o sagrado direito à imagem, espécie de direito de personalidade (direito humano fundamental de primeira dimensão) do clube adversário (art. 5⁰, X, XXVIII, XXIX, da CF/88).

A equipe adversária, enquanto pessoa jurídica, é sujeita dos direitos de personalidade (art. 52, do CC), pois também realiza, produz o evento desportivo, expõe a sua imagem, marca, distintivo, uniforme, símbolos, incluindo as marcas dos patrocinadores, não podendo ser alijado dos proventos econômicos do espetáculo, a menos que abdicasse. O jogo somente é possível quando há um time mandante e um visitante contendor; inexiste outra fórmula competitiva.

Referida modificação do Direito de Arena causa desequilíbrio competitivo e cada vez mais certeza na maioria dos resultados, rompendo com a salutar “lógica empresarial do desporto profissional”, tornando as competições previsíveis e pouco atrativas para aquele público não fanático pelo seu time ou pela modalidade.

Ademais, o abismo econômico que essa alteração legal pode provocar entre os competidores defronta a igualdade de condições nas competições e, consequentemente, o fair play financeiro, a ética desportiva, âmagos atuais da atividade econômica do esporte profissional.

Não se opõe a cotas diferenciadas por critérios transparentes e justificados, como a obtenção de maiores públicos, maior tempo de permanência na série A da respectiva competição, força tradicional do clube, etc. Porém, liberar negociação completamente individual e exclusiva a cada clube mandante, no curto prazo, elevará o desnível competitivo, e ocorrerá a desinteressante previsão de resultados.

O Direito de Arena é basicamente a venda coletiva da competição desportiva. Esta e seus jogos só existem porque há vinte clubes disputando-a, e em cada partida existem dois deles no embate direto querendo vencê-la. Já é injustificável e pouco atrativo o modelo vigente em que alguns pouquíssimos clubes auferem parcelas astronômicas em detrimento de seus adversários.

Os clubes mais tradicionais, de maiores torcidas, localizados em territórios do Brasil financeiramente mais favoráveis, têm uma maior capacidade de busca de outras receitas fora da venda de transmissão coletiva da competição. Portanto, é completamente desequilibrado privilegiar de saída os chamados gigantes times com intensas cotas diferenciadas do Direito de Arena, pois este é a venda de todo o espetáculo desportivo, sendo incoerente a abrupta distinção no pagamento de suas cotas.

Em 2018 a remuneração de dois jogadores da Sociedade Esportiva Palmeiras correspondia a um mês de folha de pagamento de todo o time do Ceará Sporting Club, ambos competidores na série A do Campeonato Brasileiro, o que diminui sobremaneira o equilíbrio competitivo e aumenta ao máximo uma previsão de resultados. Dessa forma, não há nenhuma coerência na acentuada disparidade do pagamento de cotas do Direito de Arena entre clubes em determinada competição, pois sempre existem dois times que promovem o evento, independentemente de quem tenha a maior torcida. Nenhum torcedor compraria os jogos do seu clube para jogar contra ninguém.

A falta de sentimento de uma “peculiar lógica empresarial do desporto profissional”, para não citar “Liga”, ajuda a explicar a pouca atração das competições profissionais brasileiras, exceto para aqueles torcedores mais fanáticos.

Diante da nova redação do art. 1⁰ da MP n. 984/20, 5% dos direitos desportivos audiovisuais permanecem distribuídos em partes iguais aos atletas profissionais, participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil, salvo se houver regulação diversa em convenção coletiva de trabalho.

Nesse escopo legal, significa que todos os atletas participantes da partida, incluindo os da equipe adversária, também detêm direito ao recebimento da sua fração do Direito de Arena. Nada mais justo, pois os jogadores que efetivamente entram para disputar o jogo também são os atores, os promotores do espetáculo desportivo; entendimento diverso a esse seria inconstitucional (art. 5⁰, X, XXVIII, da CF/88).

A norma em análise excluiu a antiga previsão de que os sindicatos recebiam e repassavam as verbas do Direito de Arena aos jogadores profissionais participantes do espetáculo e não edifica como será com a atual mudança.

A melhor interpretação a extrair é que o clube mandante, noviço detentor total do Direito de Arena, repassaria ao clube adversário para proceder ao pagamento das cotas de seus atletas que efetivamente participaram da partida. Entretanto, a redação não é clara e detalhada quanto a essa maneira de quitação, o que pode causar mais um conflito, mesmo que se possa negociar em convenção coletiva de trabalho.

O novo modelo proposto de direito exclusivo e prerrogativa única do clube mandante sobre o Direito de Arena quebra a ideia de que as parcelas a serem recebidas pelos atletas provêm de terceiros (compradores das transmissões das competições), o que mais uma vez pode provocar a corrosão da par conditio (equilíbrio competitivo), afronta à disciplina e ética desportiva por parte dos jogadores.

Imagine o atleta indo jogar na casa do adversário sabendo que receberá a sua cota-parte do Direito de Arena do próprio adversário. Seria um constrangimento, uma pressão enorme sobre um jogador profissional, ciente de que a direção do seu contendor pode não repassar corretamente e dentro do prazo regular a sua parcela de arena, por qualquer desagrado ou causa negativa que entenda a direção do clube mandante.

Entender que o clube mandante, detentor exclusivo do Direito de Arena, é o terceiro repassador direto da cota-parte dos atletas da equipe adversária se constitui em uma transgressão colossal à ética desportiva, propiciando uma série de ilicitudes laborais (art. 35, III, da Lei Pelé c/c art. 482, a, h, da CLT), penais e civis desportivas, por meio do estimulo à mala preta, mala branca, corrupção e manipulação de resultados. Esse entendimento também seria inconstitucional por infringir o direito de livre concorrência no mercado desportivo (arts. 1ª, IV, 170, IV, da CF/88).

Por fim, diante dessa nova perspectiva normativa, o art. 1⁰ da MP 984/20 acrescenta ainda uma adequação de que, na hipótese de evento desportivo sem definição de mandante, ambos os clubes contendores pactuarão sobre o Direito de Arena.

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